segunda-feira, 29 de junho de 2009

O Judeu Errante

Semeador com Pôr-do-Sol (Vincent Van Gogh, 1888)

Vinha de tempo parado na sua cara só rugas, no seu cabelo só branco. Havia já longos anos que não mudava de aspecto pois que não tinha mais pele por onde entrar novo rego do velho arado do tempo, nem lhe podia ir mais neve por sob o sujo chapéu. Tinha um saco, um bordão, sapatos sujos, capote, e alguém chegou a dizer, com medo e algum desejo de a suspeita ser verdade, que aquele velho de esmola era Samuel Bolibete...

Batia a todas as portas e levava de muitas delas uma fatia de pão. E enchia o saco, com as consciências descarregadas nesse gesto obrigatório de cumprir a caridade. De vez em quando, a alguém dava para pensar que ao homem o pão não basta. E lá ia, em desagravo, um chicharrinho frito, uma unha de queijo branco, uns seis vinténs por alma de mil defuntos...

O velho arcava com tudo, o dado e o negado, subia a Maia como quem poupa as passadas, como se soubesse que em cada uma delas se derramava mais uma gota de vida, e fazia o primeiro descanso parado na Fonte Velha. Escolhia uma fatia mais branda, ia ao chicharro ou ao queijo se por ventura os havia, e com profundos goles de água fresca ganhava alento para subir o caminho. Pesava-lhe a carga e os anos – muito mais estes que aquela – e ia deixando, pelas ladeiras de vinha, o pão esfarelado entre os seus dedos trementes.

Quando se o soube, começou a soar como blasfémia a repetida e cansada “Uma esmolinha, pelo amor de Deus.” As consciências, tranquilas por tanto pão esperdiçado, puderam recusar sem remorsos “Perdoe, pelo amor de Deus.” E assim, com Deus à mistura do que se dá e se nega, lá ia o pobre vivendo debaixo do mesmo Sol, molhado pela mesma chuva, que a todos dão o sustento.

Do livro Sobre a Verdade das Coisas (esgotado)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Um Relógio com “Pandulho”

Porto da Maia, fotografia de Sérgio Lourenço

Um barco vem entrando a ponta da Baixa. Manobra com cautela, evitando ficar de través è mercê da rebentação, e fugindo de modo a que a quilha roce o fundo baixo. “É o José Raposo. – Garante Manuel de Sousa, apesar da distância. São muitos anos a ver sempre as mesmas coisas, de perto e de longe, que, por vezes, mais as pressente do que reconhece. – Quantas pragas terá dito hoje!...”

É proverbial o desmando constante da língua do José Raposo. Termos chulos, invectivas, explosões de um génio que nunca chega a vias de facto. Satisfaz-se com estoirar de raiva, muito mais na aparência do que no fundo de si mesmo. Uma vez em que fora levantar os covos das lagostas topou, no mesmo lugar, com um barco “rabão” a recolher os seus. Dificilmente se entendiam os da Maia com os de Rabo de Peixe, pelo que não é de jurar por de que banda começaram as maldições. O caso cresceu e cresceu, e o Amaral – figura bem pintada de pirata: magro, moreno e com um olho vazado – preparava-se para a abordagem que alguém da companha exigia armado com o facão de picar engodo, enquanto o mestre defendia a sua razão no meio de um bombardear de imprecações em que sobressaíam todas as “lepras” e “pelacias” deste mundo. De ambos os lados havia, ao que parece, acusação de covos roubados. A certa altura, senhor de si e dos seus argumentos, o mestre “rabão” perorou: “Eh mardite, eu sou um home sério, excomungado. Comprei uma casa por cinquenta contos e tenho um reloge de purso.”

José Raposo voltou-lhe as costas, descompôs-se e, baixando-se, gritou: “Ó… ó… e eu tenho um reloge com pandulho e tudo.”

Do livro Sobre a Verdade das Coisas

sábado, 20 de junho de 2009

O Senhor de Tudo

Fotografia de Nuno Sá, gentilmente cedida pela editora Ver Açor

“Um homem passou necessidade de tudo, até de verter águas.” Diz Manuel de Sousa, com um ar de lástima e ironia que não alcanço imediatamente. “Doença?”, pergunto. “Qual doença!...” Sorri. E não sei se é um escárnio ou um disfarce. Mas então, para isso, um homem arranja-se em qualquer parte, basta uma barreira, um muro, uma árvore que lhe encubra a frente... Manuel de Sousa faz uma espera, adensa o mistério, revolve as algibeiras à procura do tabaco, do folhelho e da navalha., e explica-se, por fim.
A bexiga inchava-lhe, inchava-lhe, como a querer rebentar, e o Sol a demorar a pôr-se... “Aquela vontade toda foi do chá sem açúcar do jantar. Pão de milho e uns chicharrinhos assados na brasa. Lembro-me como se fosse hoje. Ela tinha aquela paciência de me assar o peixinho, e trazia-o embrulhado numa folha de milho, ainda suando do calor das brasas.” Mal se podia dobrar, mas queria aproveitar um pouco mais a luz. E ia aguentando o trabalho. O roçar das mãos pelas tabuas e canas secas aumentava-lhe a dor da vontade de urinar contida. Depois, quase correu pelo atalho, pelas ruas, entrou em casa numa pressa... “...E foi de vez no talhão. Não tive tempo de esperar mais. Parece que estoirava.
O senhor Júlio Francisco de Sales Pacheco do Couto era dono de meia freguesia. A casa de Manuel de Sousa era dele, que tinha lá, como em muitas outras, um talhão de Santa Maria onde lhe iam guardando a urina. Uma vez por semana, um trabalhador do senhor vinha numa carroça, com uns bidões, e recolhia o adubo humano para culturas das suas posses. Manuel de Sousa acabou por arranjar uma bilha, que levava consigo e trazia à noitinha, com a recolha do dia. Nunca mais se deixou passar por uma tal atrapalhação nem desperdiçou uma micçãozinha que fosse. Se alguma coisa se perdia era com o suor do trabalho. “Se fosse hoje...”
E fica-lhe no rosto a expressão tristonha de quem percebe que a única vida que teve a não viveu como homem.

(Do livro Sobre a Verdade das Coisas)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Aldrabões


Os soldados continentais do destacamento militar iam partir. Tinham deixado bem marcada a sua presença na Maia, fogachos de amor postos em muitos corações a quem abalara o falar de gente fina, a quem persuadira a aparente convicção de promessas de que nenhuma se cumpriu. Raparigas houve que ficaram com mancha para toda a vida, mesmo algum filho nos braços, de riscos mais assumidos, mas outras desfizeram-se dos desgostos e das famas... porque, como dizia o “tio” João Carvalho em sentença brejeira sem certidão de origem, “Os abraços vão na roupa,/ os beijos a água lava,/ as falas o vento leva,/ fica a moça como era.”
“Mestre” Luís “Perneta”, sapateiro habilidoso apesar de obrigado à profissão por defeito de que lhe veio a alcunha, e língua de trestampar com requinte, recebeu encomenda de um sargento para fazer-lhe uns sapatos do coiro mais vistoso e com a forma mais perfeita que possível lhe fosse. Queria-os para o dia do embarque e para exibir na viagem.
A encomenda satisfez-se a tempo da partida e a gosto do solicitante. Os sapatos brilhavam, obra de aspecto bem acabado, dignos do brio de um militar de carreira. No velho cais de embarque, em Ponta Delgada, o destacamento esperou em vão a partida que não se fez nesse dia, porque veio temporal. A chuva desalinhava o aprumo das companhias, e não poupou os sapatos novos, e logo na estreia. Foi então que aconteceu o desastre… O negro da tinta foi-se diluindo, o coiro encolheu e dobrou-se todo, ganhando uma cor indefinida de tons de azul-escuro e de verde-azeitona, com uns laivos de amarelo duvidoso a insinuar-se também. Tinha sido enganado, o senhor sargento: aquela maciez flexível e aquele brilho lustroso eram aparência somente da qualidade requerida. Sentiu-se ridículo pela figura real e pelo abuso a que “mestre” Luís se atrevera.
No outro dia, entrou-lhe na tenda a espumar raivas de mil razões que resumiu neste berro: “Garoto! Aldrabão!” “Mestre” Luís empertigou-se na perna sã, apontou-lhe o dedo acusador com fúria igual à da afronta que lhe era feita, e defendeu-se de pronto no mesmo tom de falar: “Garoto e aldrabão é o senhor, que disse que se ia embora ontem e não foi!”

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Há-de Chamar-se Manuel

Maia (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

A mãe de Manuel de Sousa esperava o momento de ele nascer sentada num capacho, e foi ali que ele veio à luz com a ajuda de uma velha parteira que já vira chegar a este mundo quase tanta gente como a Maia tinha então. Frequentemente, das mãos dela aos gadanhos do coveiro, ia apenas um ai de vida.
O que estava para vir seria o seu quarto filho. Antes dele, duas Marias e outro Manuel tinham chegado e partido com a pressa de quem não se sentira seduzido pela Terra. Apesar disso, o pai teimava em que, a ser rapaz, seria Manuel também. Mau agoiro, preveniam-no, que isso de baptizar um anjinho de carne e osso com nome de irmão morto era fazê-lo correr o risco de que, em breve, os outros anjos o levassem para o Céu.
Quando, com o seu choro de saudar o mundo, anunciou que chegara, foram chamar o pai para lhe dar o primeiro beijo – ritual de boa sorte que ele, a custo, cumpriu mais essa vez – e para enterrar a placenta numa cova feita no chão térreo, aos pés da cama. E, enquanto o fazia, ia dizendo: “Mas há-de chamar-se Manuel.”
Quando o cordão do umbigo secou e caiu, deitaram-no fora, como ao de todos os rapazes, porque de um homem se esperava que andasse aos sóis do trabalho e aos relentos da noite, sem medida no esforço nem limites apertados no lazeres. O das raparigas, para que fossem senhoras da sua casa, guardava-se bem guardado numa gaveta da cómoda.
Depois, em tempos de mais trabalho, uma avó velha e cansada ficava vigiando, sem cuidados de maior, o neto empanturrado de manhãzinha com pão de milho amarelo, escaldado em água simples, e uma mamada por cima. (Leite forçado a couves e muito chá.) E, às vezes, se o pão obrigado a engolir – amiúde regurgitado e devolvido por um empurrão com a ponta dos dedos até meia garganta – não bastava para deixar a criança numa modorra de empacho durante quase o dia inteiro, havia o recurso adormentador de um vinho açucarado ou de um licor caseiro. Se o levavam para a terra, o pai fazia uma pequena cova no chão onde ele ficava o dia todo, à sombra de um guarda-sol. De vez em quando, a mãe acudia aos seus gritos, limpava-lhe um pouco a cara e a boca, dava-lhe o peito e voltava a deixá-lo sozinho. “Muitos foram tratados assim...”
E os que não morriam agarravam-se à vida como os incensos ou as faias que, com raízes de sede, se apegam à pedra-queimada e vivem como um mistério.
Do livro Sobre a Verdade das Coisas (esgotado)

domingo, 7 de junho de 2009

"Já não há trigo, Manuel..."


A paisagem, agora, é incompleta. Faltam-lhe as searas com o cheiro sensual do trigo, de papoilas a gritar em rubro a importância inteira das coisas inúteis. Há um amor que se agita na gente, ante as espigas maduras ondeantes a farfalhar ao Sol, que é mais verdadeiro na sua provocação de estímulos – como o de toda a natureza que sente sem ser humana. São os cheiros, as cores, o calor, as estações do ano, que lembram ao instinto dos outros seres que é tempo de amar ou de ter adormecidos os seus impulsos de vida. (O homem estraga o que faz quando não o faz somente por ser tempo de o fazer.) E, às papoilas, fica apenas o refúgio de algum muro velho, um recanto de barreira onde não molestem, ridículas como viúvas garridas e gaiteiras.

Os bois, idos à canga sem recusa, já não puxam o arado naquela paz dolente, pé ante pé, como quem pisa a terra com carinho para não magoá-la, como quem ama com coração humano. Podia medir-se o tempo por cada rego aberto. Ápis castrados, com cuja dor imensa também se amassava o pão, companheiros, amigos, confidentes até de longos sóis e férvidos suores. Lavraram, gradaram, acarretaram o trigo num cantar de eixos a arder, e voltearam, por fim, nas eiras, com os velhos trilhos, já esquecidos entre o pó dos museus que os guardam na memória. Por isso o pão já não tem o sabor do trigo...

Passa, no atalho, o José “Dourado”. Aquele fez o primeiro filho com um amor sem sacramento ainda. E foi numa seara de trigo, seu tálamo e dossel, que profanou as núpcias. “Aonde foste, José?” Pergunta-lhe Manuel de Sousa. “Estive a abarbar uma nica de batatas.” Malicioso, entre uma fumaça e outra a cheirar a rústico e a folhelho, Manuel de Sousa diz-lhe: “Já não há trigo, José...” E o velho, olhando o corpo decrépito e a não prestar, agora, para nada, dá esta voz à alma: “Já não há trigo, Manuel...”

E essa queixa é mais densa, mais sentida, do que quantas lamentam a morte das searas.
(Do livro Sobre a Verdade das Coisas – esgotado.)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Ilha a Ilha: Flores e Corvo


Fajãzinha, Flores (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

E agora as Flores?... É preciso dizer outra vez deslumbramento e fascínio, maravilha ou paixão... É preciso ter os sentidos preparados para o imprevisível, os sentimentos ainda capazes de esperar o inesperado... Esta ilha seria um dos piores lugares do Mundo para se perder a visão – ou um dos melhores, para quem pudesse viver de recordações.

Lagoas no fundo dos precipícios das crateras, reflectindo o verde das chaminés vulcânicas esculpidas a fogo. Montanhas que de repente tombam numa queda abrupta. Ribeiras que se atiram em vertiginosas cataratas. Cento e quarenta e três quilómetros quadrados onde se repete o que há de mais belo em cada uma das outras ilhas, como se elas fossem os esboços de um artista em busca da perfeição.

Aqui, acaba-se a Europa a Ocidente. A ilha das Flores é o seu último espaço habitado, o ilhéu de Monchique o seu último recife. Mas a regra foi a mesma: dos oito mil habitantes de meados do século XX, restava metade em 2001. Muitos não resistiram à sedução das “Califórnias perdidas de abundância” - como escreveu Pedro da Silveira num poema em que disse, quase definitivamente, o que é ser ilha e desejar o Mundo.


Vila do Corvo (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

Ter nascido no Corvo é um privilégio. Em cinco séculos de povoamento, não terão vivido nesta ilha mais do que umas três mil pessoas. Os seus nomes caberiam todos em meia dúzia de folhas de papel, e não seria difícil conhecê-los um a um.

São pouco mais de dezassete quilómetros quadrados onde, no entanto, há espaço para terra de pão e de paisagem, e de dois cumes montanhosos que foram cone de vulcão, um de 550 metros de altitude, o outro de 729, com duas lagoas no fundo – o Caldeirão – que têm pelo meio umas pequenas ilhotas em que há quem consiga ver a representação das nove ilhas dos Açores.

Talvez cause estranheza a linguagem serena com que os corvinos - que são pouco mais de quatrocentos residentes no único povoado da ilha – são capazes de falar da vida e do Mundo com admirável sabedoria. Mas um dos seus hábitos mais antigos é a leitura, pela qual venciam todas as distâncias e afastavam todos os fantasmas de um isolamento que, visto de fora, parece assustador. Mas não é. Apesar de o Corvo ser a ilha absoluta.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Ilha a Ilha: Faial


Vulcão dos Capelinhos (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

“Chamar-te adormecida? A bela?”

“...as classes sociais diluídas no inglês polícromo dos iates, no generoso gin do Peter. O cosmopolitismo urdindo um certo rosto liberal, mas tão-só. Os turistas afogam-se no azul das hortênsias. E depois? Quem nos acode? A fruta do Pico tem já um internacional sabor a plástico.”

É assim que a Horta é dita por Urbano Bettencourt, poeta da ilha em frente, a da “montanha emboscada na sua teia de nuvens”, a quatro milhas mal medidas de distância.

A Horta foi ela mesma e outros mundos. Nasceu portuguesa e flamenga, da imaginação e da vontade de Josse van Hurtere, senhor do Faial por mercê do infante D. Fernando, de quem a formosa vila do século XV também terá recebido o nome. Foi porto de paragem e aguada para os navios da América, descanso de marinheiros que andavam à ventura e desventura dos sete mares, repouso de missionários que iam para o Brasil ganhar o Céu para as suas e outras almas. Ligou pelo telégrafo as duas margens do Atlântico, abasteceu de carvão os barcos a vapor, estreou o correio aéreo trazido num avião da Pan American que amarou na sua baía. Acolhe a maior parte dos veleiros que percorrem estas velhas rotas e recebe no Café Sport – o “Peter” – os seus tripulantes, que fazem do paredão da doca um enorme painel onde deixam pintado o registo da sua passagem.

É na cidade da Horta que está o parlamento açoriano e que vive quase metade dos quinze mil e quinhentos habitantes da ilha, que falam talvez o mais belo português de Portugal, apesar de terem sido flamengos muitos dos primeiros povoadores.

Quem acredita que havia alguma exactidão nos portulanos do século XIV identifica o Faial como a ilha da Ventura. Provavelmente não o será de facto, mas poderia ter justificado o nome tanto quanto este que recebeu pala abundância de faias que havia nela. Também é conhecida por Ilha Azul, a cor das hortênsias que ornamentam caminhos e servem para dividir pastagens e terrenos agrícolas, como longas pinceladas na suave paisagem que sobe desde o mar até mais de mil metros de altitude, nos limites de uma impressionante cratera, a Caldeira. Os seus 172 Km2 de superfície foram ligeiramente acrescentados pelo vulcão dos Capelinhos, onde pode assistir-se à tenacidade com que a vegetação pioneira começa a conquista dos solos vulcânicos.

O Faial é o vértice de um triângulo que se completa com o Pico e São Jorge. Uma beleza alucinante a que ninguém fica insensível.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)