quinta-feira, 29 de abril de 2010

Finalmente iguais


Caspar David Freiderich, Ruína de Eldena (cortesia de www.casparfriederich.org)

Apesar dos cerca de noventa quilos, distribuídos mais em largura do que em altura, com que exibia o seu estatuto social, e de ter mais de quarenta anos, continuava a ser chamado “menino Horácio”. No entanto não foi assim que mestre Abílio o tratou, mas por “senhor”. A mulher estava com os dias contados, e ele mesmo queria encomendar um caixão que fosse digno da desditosa senhora, cujas entranhas iam sendo roídas por um bicho, salvo seja, que só deixaria para os vermes, a quem deveria ser dada a carne, pouco mais do que os ossos sob uma pele translúcida como papel molhado.

Chamava-se Maria do Carmo, e era filha de um morgado da Ribeira Grande, daqueles que só conseguiram sê-lo porque havia sido inventada, somente para a zona daquela vila, a vara pequena, que retirava a cada alqueire de terra mais de um quarto da superfície dos alqueires de vara grande, pelo que um hectare valia mais de dez, dos falsos, bem medidos, em vez de pouco mais que sete dos verdadeiros. Mas título era título, ainda que extinto pelo governo do duque de Loulé, e, se ela trazia o sangue meio azulado, o marido tinha a riqueza que lhe faltava para que a baixa fidalguia não lhe fosse inútil, ainda para mais prejudicada pela sua condição de mulher. Desde que casara, passara a ser apenas “Dona Maria”. Chamá-la “Dona Maria do Carmo” não a distinguiria em mais do que uma vintena de mulheres com esse nome, mas fazê-la “Dona Maria” era proclamar a sua vantagem sobre todas, porque todas eram Marias e apenas ela a “Dona”.

A sua morte seria, de alguma forma, uma consolação para a fatalidade dos pobres. Não que a detestassem, pois se a senhora nunca fora notável por grandes rasgos de virtudes tão-pouco o fora por defeitos, mas porque viam nela cumprida aquela lei de igualdade de que nem todo o açúcar de que precisou a salvaria. Mas essa mesma morte assustava também, porque se nem os ricos, que podiam comer toda a carne e todo o doce que quisessem, escapavam à gadanheira aos trinta e seis anos, que poderiam esperar os crónicos famintos de sopa, pão de milho, chicharros e pimenta?

A senhora sempre fora frágil, mãe de dois filhos que morreram com uns dias de vida e de outros dois nados-mortos, com certeza porque o sangue, que mal parecia sustê-la, não tinha força para valer como devia a uma criatura gerada no seu ventre. De nada lhe serviram as gemadas frequentes, as sopas de cavalo cansado feitas com vinho tinto do Douro e adoçadas com açúcar inglês, nem as papas de farinha Santa, que o estabelecimento de George W. Hayes, de Ponta Delgada, anunciava como “ferruginosa e substancial devidamente analisada e classificada pelo Laboratório de Higiene de Lisboa e recomendada por distintos clínicos da capital. Superior a qualquer outra farinha deste género. Útil para a cura de tosses, anemias, debilidades, etc. e um completo alimento para crianças e convalescentes.” Nem sequer se podia dizer que a pobre senhora morria consolada porque, apesar do cálice de vinho do Porto tomado em jejum para lhe abrir o apetite, sofrera sempre de fastio, um mal estranho que, na freguesia, talvez fosse a única pessoa que sabia o que era.

(Do romance A Terra Permitida)

terça-feira, 20 de abril de 2010

Rita Gorda




Rita da Silva não era a noiva que Frank Lewis desejara. Quando ele deixou o Faial a caminho dos Estados Unidos, prometeu a sua irmã Carolina que a chamaria logo que tivesse dinheiro suficiente. Os anos passaram sem uma palavra de Frank. Cansada de esperar, Carolina emigrou por sua conta e risco e casou-se com outro.

Inesperadamente, Frank mandou cinquenta dólares para pagar a viagem da noiva para os Estados Unidos. A resposta foi a de que ela estava casada. A única que restava era a irmã chamada “Rita Gorda”. Com 1,77m de altura e 90 kg de peso, essa última irmã solteira não era bonita, mas, como Frank tinha enviado já o dinheiro, concordou em que ela deveria ir.

A viagem foi um horror. No barco, Rita esteve sempre enjoada e custou-lhe muito arranjar um lugar reservado que servisse de quarto de banho. A família prevenira-a para não comer a comida de bordo porque o barco era muito sujo, e assim ela alimentou-se de pedacinhos de pão e queijo que levara de casa. Só falava Português, e não teve ninguém com quem conversar durante a longa jornada. A sua única companhia era um livrinho de orações.

Desembarcou em Boston, mas tinha ainda um longo caminho a percorrer. A etiqueta da mala pequenina que era toda a sua bagagem dizia Frisco, USA. Agora ia dirigir-se para Ventura, Califórnia, centenas de milhas a sul, mas era sempre o mesmo caminho para os viajantes de Leste. A única coisa que conduzia Rita pelo país fora era o bilhete pregado no casaco, que explicava quem ela era e para onde ia. Quando alguém lhe perguntava, apenas o mostrava. Teve medo também de comer no comboio. Apesar de os revisores terem sido simpáticos quando lhe ofereciam das suas sanduíches, ela pensou que estavam a tentar envenená-la. “Não comas nada, se não souberes o que é”, havia sido prevenida muitas vezes. Sacudia a cabeça e dizia: “No, no, no.” Os desconcertados revisores insistiam: “É bom. Come.” Mas Rita continuava a negar.

Comida de estranhos não foi a única perturbação da viagem. O comboio parou em Chicago antes da mudança para um linha que atravessaria o sul dos Estados Unidos. Os passageiros deveriam sair, mas Rita desesperadamente teimava em ir para a sala de espera. Agarrando-se à mala e andando cuidadosamente com o primeiro par de sapatos que tivera, apressou-se a ir para o depósito de bagagens. Aí, um negro que tocava banjo “saltou na sua direcção”, contava aos filhos mais tarde. “Ele era como um macaco pequeno.” Aos ouvidos de hoje, isto soa como um terrível preconceito, mas Rita nunca vira um negro. Estava tão assustada que molhou as cuecas.

Quando finalmente saiu do quarto de banho, agarrando ainda as suas coisas com medo de ser roubada, não sabia que caminho tomar para voltar ao comboio. Ficou de pé chorando, aterrorizada por poder ser deixada atrás. O comboio estava prestes a partir quando o revisor reconheceu a portuguesa perdida e a trouxe de volta.

Certamente que as suas tribulações deveriam ter acabado quando alcançou a Califórnia, pensou ela, mas ia apanhar outra desilusão. A grande e humilde mulher foi recebida por um homem pequeno com um casaco de couro. Tinha 1,65m e ficava-lhe pouco acima do ombro. Fumava e conduzia uma mota. Ela olhou-o de relance e explodiu em lágrimas. Mas não tinha escolha. Ele pagara-lhe para vir, portanto tinha de tornar-se sua mulher.

(Excerto do livro Stories Gandma Never Told, de Sue Fagald Lick, escritora americana de ascendência açoriana. A tradução correu por minha conta. Esta escritora tem uma página pessoal com o endereço http://www.suelick.com/)

domingo, 11 de abril de 2010

Parati, Madrinha, ou Florianópolis

Agualva (fotografia de Tibério Dinis, In Concreto, 31 de Outubro de 2009)

(Como a Isabel me pediu um cheirinho do Francisco Cota Fagundes, aqui o deixo neste excerto da narrativa cujo título acima está. Não pedi licença ao autor, mas peço desculpa do abuso.)

Fui criado com uma dieta de estórias brasileiras que tu ouviras no teu Brasil; ou estórias que, decalcadas sobre outras que terás ouvido, inventavas para me fascinar e, quando te convinha, me amedrontar. Era a mula sem cabeça, eram os caiporas que, se bem me lembro, eram criaturas humanóides, miudinhos, que, às tantas da madrugada, tu punhas a sair do mar, de charuto aceso, e se espalhavam pelos bairros do Rio, incluindo o teu. E nunca se sabe! Um dia podiam vir, das bandas da Vila Nova, já mais cresciditos, e aparecer na Agualva, pois caiporas há por toda a parte! “Lá nessa tens razão”, dizia a Tia Chica, tua mãe, aludindo ao significado de caipora na Terceira, que é desgraçado ou infeliz. Não pronunciavas essa e outras palavras brasileiras – alamoa, curupira, boitatá – saboreava-las, deglutia-las, como se elas fossem frutos tropicais. E fazias-me repeti-las, ingeri-las. E tantos eram os bichos, alguns deles indubitavelmente inventados por ti, que tiravas do alforge da memória para me tornares um pequeno bem ensinado, que era um dos teus sonhos – a bernunça, o corpo seco, o bumba-meu-boi – para os quais a tua dadivosa e inventiva memória de imediato fabricava estórias. Lobisomens também os tínhamos na Agualva, mas os teus falavam com sotaque brasileiro, impunham respeito: sô fiu di padre! diziam eles quando eram trancados e interpelados.

Também trouxeras do Brasil muitos exemplares de literatura de cordel – em que aprendi as primeiras letras. A História Nova do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França – Contém a grande Batalha que teve com Malaco, Rei de Fez, a qual venceu Reinaldos de Montalvam e dos muitos trabalhos que este padeceu por traição de Galalão, sendo sempre leal, constante na Fé, o melhor dos doze Pares, editado em São Paulo pela Livraria Magalhães, Rua do Comércio, 27. Que pena não ter data! Tal o teu fascínio com os Doze Pares de França, fascínio esse que trouxeste do Brasil e divulgaste na Agualva, que até o nosso cão, que o Padrinho queria chamar Calçado e eu o Cagunças, tu insististe que se chamasse o Roldão. E foi abraçado a ele e banhado em lágrimas que no dia em que emigrei prometi: “Volto um dia, Roldão. Hás-de ver!” Mas não viu, pois pouco depois morria.

Talvez fosse do Brasil que também havias trazido o preconceito que tinhas contra morenos. Escurinho como sempre fui, tu imaginavas – digo mal: sabias dum saber todo teu e de experiência feito – que mulher nenhuma jamais se interessaria por mim. “Jeitosinho mas trigueirinho!” era uma maneira que – quantas vezes ta ouvi! – utilizavas para me caracterizar e, quem sabe, para me incutires a ideia de que não deveria esperar muito das mulheres; que não devia andar ao sol, que só deveria andar na rua no Verão com o meu chapéu de palha, que os tinha à escolha, pois tu comprava-los de vários feitios e cores para me protegeres. E, quando tudo o mais falhava, tu tinhas a urina.

― Faz chichi na mão e lava à cara! ―, gritavas tu. Ou:

― Não faças chichi ainda para poderes fazer na mão antes de te deitares!

Era a tua maneira de me esbranquiçar a cara, de me tornar bonito, de me tornar desejável para as mulheres, lindas como tu eras e de pele tão alva como Branca de Neve, como a tua. Infelizmente, foram nove anos desperdiçados de lavar a cara com chichi – que poucos, ou quase nenhuns futuros resultados positivos me trouxeram!

Daí que ultimamente, Madrinha, tenha pensado muito em Florianópolis. Não, nunca me falaste desse lugar, ou pelo menos não me recordo de jamais o teres feito. Quero que saibas, porém, que é um lugar muito lindo – nunca lá estive, mas já vi em fotografias. Mas a sua beleza não é o que me interessa, Madrinha. É que – coisa de todas a mais curiosa de entre todas as que tenho ouvido! – em Florianópolis, que também é uma ilha, as pessoas gostam de açorianos! Ouviste mal, Madrinha? Repito: naquela terra abençoada, as pessoas gostam de açorianos! Tanto, tanto, que até parece que os italianos, os polacos, os alemães (sim, até eles!) e diabos a quatro todos querem ser, ainda que não sejam, açorianos. E lá têm festas açorianas, e outras que não são mas que as pessoas insistem que podem ser, talvez sejam, com certeza que são – açorianas. E até há agora uma festa chamada Açor! E olha, Madrinha, não me importo muito que as festas do Espírito Santo – que por lá se chamam do Divino – sejam diferentes das nossas! E que importa que a farra do boi e o pão-por-Deus não sejam iguais aos nossos? Sabes que nunca me importei com touros e que o pão-por-Deus era para a gentalha pobre a que tu não me querias ver associado. Lembras-te das estórias que eu te contava, nas minhas visitas à Terceira depois de anos e anos de América, a muitos anos da tua morte, que na América os açorianos disfarçavam os nomes, às vezes a naturalidade, porque ninguém sabia o que era açoriano e, quando sabiam, não gostavam de nós? Ainda te lembras, pois não, de eu te contar a história daquela moça arménia-américas, que tinha umas sobrancelhas que pareciam um silvado por roçar, que conheci em Los Angeles e que gostava de mim mas suspeitava que, sendo dos Açores, eu era com certeza um indígena – e que, sendo-o, podia conspurcar-lhe o útero com o meu esperma e infectar-lhe os filhos com as minhas taras primitivas de selvícola?