Caspar David Freiderich, Ruína de Eldena (cortesia de www.casparfriederich.org)
Apesar dos cerca de noventa quilos, distribuídos mais em largura do que em altura, com que exibia o seu estatuto social, e de ter mais de quarenta anos, continuava a ser chamado “menino Horácio”. No entanto não foi assim que mestre Abílio o tratou, mas por “senhor”. A mulher estava com os dias contados, e ele mesmo queria encomendar um caixão que fosse digno da desditosa senhora, cujas entranhas iam sendo roídas por um bicho, salvo seja, que só deixaria para os vermes, a quem deveria ser dada a carne, pouco mais do que os ossos sob uma pele translúcida como papel molhado.
Chamava-se Maria do Carmo, e era filha de um morgado da Ribeira Grande, daqueles que só conseguiram sê-lo porque havia sido inventada, somente para a zona daquela vila, a vara pequena, que retirava a cada alqueire de terra mais de um quarto da superfície dos alqueires de vara grande, pelo que um hectare valia mais de dez, dos falsos, bem medidos, em vez de pouco mais que sete dos verdadeiros. Mas título era título, ainda que extinto pelo governo do duque de Loulé, e, se ela trazia o sangue meio azulado, o marido tinha a riqueza que lhe faltava para que a baixa fidalguia não lhe fosse inútil, ainda para mais prejudicada pela sua condição de mulher. Desde que casara, passara a ser apenas “Dona Maria”. Chamá-la “Dona Maria do Carmo” não a distinguiria em mais do que uma vintena de mulheres com esse nome, mas fazê-la “Dona Maria” era proclamar a sua vantagem sobre todas, porque todas eram Marias e apenas ela a “Dona”.
A sua morte seria, de alguma forma, uma consolação para a fatalidade dos pobres. Não que a detestassem, pois se a senhora nunca fora notável por grandes rasgos de virtudes tão-pouco o fora por defeitos, mas porque viam nela cumprida aquela lei de igualdade de que nem todo o açúcar de que precisou a salvaria. Mas essa mesma morte assustava também, porque se nem os ricos, que podiam comer toda a carne e todo o doce que quisessem, escapavam à gadanheira aos trinta e seis anos, que poderiam esperar os crónicos famintos de sopa, pão de milho, chicharros e pimenta?
A senhora sempre fora frágil, mãe de dois filhos que morreram com uns dias de vida e de outros dois nados-mortos, com certeza porque o sangue, que mal parecia sustê-la, não tinha força para valer como devia a uma criatura gerada no seu ventre. De nada lhe serviram as gemadas frequentes, as sopas de cavalo cansado feitas com vinho tinto do Douro e adoçadas com açúcar inglês, nem as papas de farinha Santa, que o estabelecimento de George W. Hayes, de Ponta Delgada, anunciava como “ferruginosa e substancial devidamente analisada e classificada pelo Laboratório de Higiene de Lisboa e recomendada por distintos clínicos da capital. Superior a qualquer outra farinha deste género. Útil para a cura de tosses, anemias, debilidades, etc. e um completo alimento para crianças e convalescentes.” Nem sequer se podia dizer que a pobre senhora morria consolada porque, apesar do cálice de vinho do Porto tomado em jejum para lhe abrir o apetite, sofrera sempre de fastio, um mal estranho que, na freguesia, talvez fosse a única pessoa que sabia o que era.
(Do romance A Terra Permitida)
8 comentários:
Na morte não há fidalgaria que se salve para consolo dos vermes da terra que lhe chamam um figo.
E nem vinho do porto ou gemedas salvam na hora da largada.
E eu a acalentar esperanças de imortalidade...
Lia/Ibel, só mesmo tu "p'rágora" me fazer rir!!!
Achei graça à nomeação "Dona Maria"...
É que agora, já entrando nos sessenta, me tratam por D. Margarida, coisa que eu acho uma subida de estatuto, já que fui trinta e tal anos a Senhora Arquitecta. Este tratamento de arquitecta era apenas para a minha condição profissional (falsa veneração e tecnicamente frio). Agora o D. Margarida tem outra ternura, não acham?
Isto é Literatura!
Muito bom, Caro Daniel.
:)
Paulo Assim,
Com o Daniel é sempre assim...
"sofrera sempre de fastio, um mal estranho que, na freguesia, talvez fosse a única pessoa que sabia o que era".
Que ironia... que maldade fina... :-)
Abraço.
Meus Caros Amigos
Tenho-vos deixado por aqui sozinhos... Desculpai-me a ausência, mas o tempo está cada vez mais apressado.
Para além dos devidos agradecimentos, só umm recado para o Samuel, que irá mais em pormenor em correio particular. Recebi o recado vindo da Ilha-Mãe, e trazido pelo Zeca Medeiros. Obrigado.
Abraços.
Daniel
Mais uma «Dona Maria» de muitas «Donas» deste país.
E Elas estão de volta...
Belo texto,Daniel!
Eduarda, obrigado pelo adjectivo.
Quanto às "Donas Marias", não voltaram. Sempre por cá andaram. E os "Dons" são sem conta.
Um abraço.
Daniel
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