sábado, 12 de junho de 2010

A Lenda das Sete Cidades

Pastor Com o Seu Rebanho, Charles Émile Jacque

A princesa do reino vem de passeio com a sua ama, e foge-lhe, ao perseguir uma borboleta azul. De repente dá com um pastor na ausência do sono. Pura, pára, em sossego, para não o perturbar. Fascinada pela beleza do jovem adormecido. A ama chama-a, ao descobri-la, e ela faz-lhe sinal de que se cale e não avance. Contempla o pastor, enquanto recua devagarinho, a olhar para ele, porque deseja vê-lo ainda um pouco mais e quer certificar-se de que não desperta. Inventa uma desculpa, diz talvez que um ninho. A ama acredita, voltarão no dia seguinte ao mesmo lugar. A princesa vai chegar-se ao sítio, sozinha, para não assustar o ninho, mente. O pastor desperta com qualquer ruído, ou porque se acabou o sono, e pensa que ainda sonha. A uma princesa pode conceder-se o direito de dizer a um homem “amo-te”. O pastor não o dirá, ainda que o sinta. Mas ela não fala. Os olhos bastam.

Todas as tardes se repete o passeio. Até que a desculpa já não pode ser um ninho e o amor se torna sem remédio. Na corte, há quem grite e quem emudeça, conforme os privilégios da hierarquia lhe consentem manifestar-se contra o inaudito escândalo. Três príncipes esperam uma promessa de casamento. A um deles, a princesa poderá ser dada como penhor para um tratado de paz. A outro, como garantia de um contrato de comércio. A um terceiro, para que no seu reino se abram portos a servir de abrigo às navegações dos barcos que seu pai manda a guerras e mercancias.

A princesa não entende os negócios do Estado, e só diz um nome e uma vontade. O pai convoca a corte e os três embaixadores dos príncipes pretendentes. A princesa veste os atavios da sua nobreza real, e os três embaixadores julgam que ela vale bem um reino ou uma guerra. A ama recebe ordem de a despir, e ela fica quase nua, por momentos. Contemplam-na o êxtase e a vergonha. Dá-lhe o pai, para que as vista, uma blusa pequena, verde como as ervas que há-de invejar aos animais, quando não tiver o que comer, porque a afasta da sua mesa, e uma saia grande, que lhe cai aos pés, azul da cor do céu que há-de cobri-la, quando lhe faltar abrigo, porque a expulsa do palácio.

Há quem chore, não ela. Mais real do que nunca, desliza por entre os nobres, os embaixadores, os criados, desce a escadaria sem pressa e sem temor Não corre, saboreia, calma, o primeiro passeio sem a sua ama, goza, antes do gozo, o fascínio do seu amor liberto. Não pensa nos soldados que hão-de morrer na guerra, nos cedros que o seu reino não venderá, nos barcos que hão-de correr perigos de naufrágio. E imagina-se a ser coroada rainha pelas boninas e malmequeres com que o pastor lhe cingirá a cabeça.

O pastor dorme, como sempre, àquela hora. A princesa desperta-o com um beijo. Ele estranha-lhe a roupa, o sinal de que a tomaram livre dos reais deveres, e já pode ser toda dele toda a vida. O pastor não a abraça, não exulta. Quere-a princesa e repudia-a plebeia. Ela vive apenas até ter a certeza de que ele diz o que sente.

Os deuses, que não olham a preços para conceder prémios ou exercer vinganças, revolvem as entranhas da terra com mil vulcões, que trazem à superfície todas as safiras e esmeraldas que ela guardava no seu seio. E cobrem, com milhões de pedras preciosas, como as últimas cores que a vestiram, um mausoléu enorme de basalto, que tem a forma do corpo da princesa, e muito fundo para que ninguém o veja nem perturbe o sossego dela.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Tranças


Elvira indecisa diante do espelho. Finalmente, António resolvera cumprir o desejo de mestre Abílio, e o drama da vida de Cristo estava pronto para ser representado. António tivera dificuldade em convencer a maior parte dos actores, porque nenhum deles experimentara antes a arte de representar, mas o mais complicado fora resolver o problema de Cristo e de Judas. No primeiro caso, que qualquer um até desejaria, porque ninguém mostrou coragem para um papel que requeria aprender longas falas e uma presença quase constante em palco, no segundo por causa do odioso da personagem.

Elvira queria sacrificar o seu cabelo para oferecer a Jesus na figura daquele que ia representá-lo. O pecado que a marcara para toda a vida começara com uma brincadeira das mãos do moleiro nas pontas das suas longas tranças. Por elas suavemente se lhe insinuara o demónio, sem pressas nem maldade aparente. Fora subindo pelas tranças acima, chegara à cabeça, com ternura, tocara-a depois na face com um ar de espanto e de súplica.

Se gostava de que o tempo voltasse para trás, de que tudo não tivesse passado de um sonho mau?... Se preferia ter casado, como as outras raparigas da sua idade, de ter vivido pelo menos um dia a ilusão de ser feliz, de ser considerada uma mulher séria e respeitável?... Quem não o haveria preferido?... Os olhos húmidos por causa desses pensamentos do que fora e do que não fora... E Helena?... Helena não seria sua. Helena talvez não fosse de ninguém se não tivesse sido o seu pecado. Mudaria tudo, mas não a trocaria por nada, só lhe daria uns olhos que pudessem ver. Pelo preço de não ter Helena não mudaria um segundo que fosse da sua vida. Que Deus lhe perdoasse a sinceridade íntima de que era testemunha apenas a sua imagem no espelho, com os cabelos caídos pelos ombros, belos e negros, como se tivesse vinte anos, apesar de estar perto dos cinquenta. Uma beleza que ninguém aproveitou depois daqueles devaneios inconscientes no moinho. Pagara tudo tão caro... E, se mais houvesse ainda para pagar, que a oferta do seu cabelo para fingir que era o de Jesus, embora fingido também, fosse a última prestação, porque com mais nada teria com que pagar fosse o que fosse.

Talvez viesse a arrepender-se. Afinal, para Deus o seu cabelo contaria tão pouco, muito menos do que para ela mesma... Ou seria aquela oferta como o óbolo da viúva pobre de que Jesus falava no Evangelho? Seria Deus tão exigente que uma vida inteira de sacrifício não bastasse para apagar a memória de uns momentos? Quantas vezes fora feliz, e quanto fora feliz nessas poucas vezes? Um vale de lágrimas, o seu percurso neste mundo. É certo que António secara algumas, Deus lhe pagasse tão grande bondade. Ou seria António a janela que Deus abrira depois de se lhe ter fechado a porta da felicidade possível? Era António uma dádiva de Deus, ou uma dádiva de si mesmo? Seria que tudo o que é bom na vida é dado por Deus, e aos homens e mulheres só lhes resta decidir entre fazer ou não fazer coisas mal feitas? Não dissera Jesus à mulher adúltera que fosse em paz e não voltasse a pecar?... Ela não voltara a pecar, pelo menos pecados grandes, desses da carne, ou dos da alma, feitos de ódios e malquerenças.

Deus já lhe teria perdoado, de certeza. Ia chegando ao fim de fazer seis tranças, para que fosse mais fácil cortar o cabelo mais ou menos todo por igual pela base delas. Quando percebessem como estava curto, haveriam de anotar-lhe mais essa leviandade. Não se importava. Nem sequer diria, em sua defesa, a quem o dera. E, se o dissesse, talvez ainda pensassem que cometera um sacrilégio, ou que a sua intenção fora esconder um acto de vaidade por detrás de uma aparente boa intenção. Hesitou ao tocar com a tesoura na primeira trança. Valeria a pena o sacrifício? Ao fim de tantos anos ainda serviria de alguma coisa apagar uma recordação?

A trança caiu quase ao mesmo tempo que duas lágrimas.

(Do romance A Terra Permitida)