quarta-feira, 22 de julho de 2009

As "Velhas"

(João Ângelo - o mais alto - numa festa do Espírito Santo. Foto cedida pela Ver Açor)
No dia dez de Junho deste ano da graça de 2009, João Ângelo Vieira, um agricultor de São Bartolomeu dos Regatos, foi condecorado com a Ordem de Mérito. Quase de certeza que não terá havido ninguém a não concordar com essa distinção.

João Ângelo é um talentoso cantador popular, herdeiro de uma longa tradição de míticas figuras terceirenses. Álamo Oliveira, poeta de outras letras, disse que a sua fascinante personalidade se caracteriza pela “simplicidade sedutora, que o superioriza sem que ele disso se aperceba”. João Ângelo tem-se distinguido sobretudo a cantar as “velhas”, um costume exclusivo da Terceira que se assemelha às cantigas trovadorescas de escárnio e mal-dizer. As “velhas” são normalmente um desafio entre dois cantadores, e devem o nome à referência frequente a uma velha, quase sempre dita avó do adversário no despique. Compostas por estrofes de dez versos, com dois tercetos e uma quadra, a sua principal característica são os segundos sentidos e as alusões brejeiras. Isto mesmo está explicado na primeira das duas “velhas” de João Ângelo, a seguir reproduzidas, e exemplificado na segunda.

Vamos cantar umas velhinhas
Um pouco atrevidinhas,
Mas não fiquem ofendidos.
Porque quando as velhas vêm
Quase sempre elas têm,
Meus senhores, dois sentidos.
Saudar-vos é o meu desejo,
Sem que haja excepção,
A toda a gente que vejo
Nas festas de São João.

Às velhas deste lugar
Eu as quero saudar
E dar o meu cumprimento.
Há solteiras e casadas
E as que estão lembradas
Do dia do casamento.
E alguma sem marido
Nunca faça má acção.
Eu também tenho vivido
Das esmolas que me dão.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Praia, a da Vitória

Praia da Vitória (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

Três vezes o mar desceu. Três vezes o mar subiu. Deixou primeiro à vista destroços de naufrágios, cargas perdidas, desperdícios deitados à água. E, arremessando-se pela terra acima, destruiu quinze casas, entupiu caminhos com os detritos que levava, deixou estéreis cerrados e quintais. Entre a Praia e Porto Martins matou seis pessoas, as únicas que se sabe terem morrido nos Açores por causa dessa pavorosa inquietação do mar. Uns vinte minutos antes, ele galgara a rocha nos Fenais da Luz e subira as ruas ribeirinhas de Ponta Delgada. Outros vinte depois, inundaria a Horta. De passagem por Angra quase fizera naufragar os navios ancorados, e chegara à Praça dos Cosmes, que ainda não tinha idade para ser Velha. Umas seis ou sete horas mais tarde a sua fúria inaudita extinguir-se-ia no Golfo do México e nos fiordes da Noruega.

Dizem as crónicas que à mesma hora Lisboa ruía até aos alicerces, por causa do maior terramoto de que havia memória, e que destruiu vidas e cidades no Algarve, no Norte de África, na Andaluzia, onde a enorme onda ou maré, a que mais tarde se chamaria tsunami, completou a obra devastadora. Nesse dia um de Novembro de 1755, também o fogo, ardendo a partir dos limites aonde o Tejo não chegara, se dispôs a queimar pessoas e bens durante cinco dias de horribilíssimo inferno. Se a hora foi a mesma, tê-lo-á sido tendo em conta a que o Sol marcava. Porque cada terra só sabia do tempo exacto pela viagem da sombra de Oeste para Leste. No Reino, do Minho ao Algarve, a hora de Lisboa era a referência a respeitar. Por cá, cada ilha e cada lugar não teriam outra que não fosse a sua própria.

Mas esta Praia não é apenas a da Vitória guerreira, nome que receberia mais tarde por ali os absolutistas terem sofrido uma derrota vergonhosa. É também a vencedora deste e de outros desastres, o mais tristemente notável dos quais foi o terramoto de 1841, que a destruiu na sua maior parte, e que por isso ficou conhecido como a “caída da Praia”. Dois anos depois, estava “reedificada, com mais elegância que dantes tinha”. Disse-o a própria Câmara, em carta para a Rainha, D. Maria II. Nessa carta, de 16 de Agosto de 1843, era pedido à soberana que concedesse o título de “Barão da muito notável Vila da Praia da Vitória” ao governador civil, ou administrador-geral, José Silvestre Ribeiro, natural de Idanha-a-Nova, onde talvez já nesse tempo as touradas de rua fossem também a principal festa popular. Foi ele que teve a vontade e o talento de em tão pouco tempo fazer levantar do chão a vila e os povoados do concelho que como ela haviam caído. José Silvestre, que na Praia da Vitória tem um belo e merecido monumento com estátua desde o século XIX, foi um político brilhante. Ele mesmo, como soldado do Batalhão de Voluntários Académicos, tomara parte na batalha que valeu à vila os títulos que a disseram muito notável e vitoriosa. Deputado pela Terceira e por outras terras do Reino, além de muitos mais talentos teve também o de escritor.

Apesar de a Praia ser povoação muito antiga, pensa-se que o traçado das suas ruas é no essencial o primitivo. O que, pelo seu equilíbrio e funcional aspecto, prova que, como em Angra, aqui houve clarividente visão urbanística dos que a fundaram e nos primeiros tempos a desenvolveram. E este desenvolvimento foi tão rápido que já em 1498 tinha a sua Misericórdia, uma das primeiras que houve em Portugal.

A Praia da Vitória é bem o exemplo do que disse um dos seus filhos mais ilustres, Vitorino Nemésio: “A geografia, para nós, vale tanto como a história”. Muito do que ela sofreu e parte da sua glória devem-se às circunstâncias da sua geografia. E essa frase de Nemésio serviria muito melhor como divisa dos Açores do que aquela que consta no brasão de armas da Região Autónoma. Porque contém uma definição do que somos e do que podemos querer, muito mais do que a frase guerreira de Ciprião de Figueiredo, que nem sequer era natural destas ilhas e aqui esteve mais para defender os interesses do rei, primeiro, ou do pretendente a sê-lo, depois. E se lhe ficou bem, como fiel amigo de D. António, escrever a Filipe II que “Antes morrer livres que em paz sujeitos”, talvez tenha sido demasiada temeridade ou ligeira consciência sacrificar a leal gente da Terceira por uma causa perdida. Esta mesma ideia expressou J. G. Reis Leite quando escreveu, na Enciclopédia Açoriana: “Ficou no orgulho angrense esta primeira experiência de ser capital de Portugal, sede do portuguesismo e do nacionalismo exacerbado, esquecendo-se frequentemente do preço que pagou por esta ousadia.”

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Touradas à Corda na Terceira


Se alguém tivesse ajudado o João dos Ovos a ter sorte, assim como Manuel Benítez foi conhecido por “El Cordobés”, talvez ele tivesse ficado na história como “O Angrense”. Durante décadas foi a figura mais popular das touradas à corda. A sua fama terá tanto de mítica quanto de controversa, porque o seu equilíbrio mental parecia precário e a sua figura era de saltimbanco de feira sem consciência de o ser. No entanto, milhares e milhares têm passado pela arte da vida ou dos toiros sem deixar uma frase ou um gesto que sejam recordados. João dos Ovos era capaz de encenar uma “chicuelina” no canto de uma rua com tanto cuidado a desviar o corpo do toiro imaginário como se estivesse mesmo a evitar-lhe a armação. Ou de enfrentar a fera a sério com passes de guarda-sol, num bailado que valia a “faena” de um “diestro” na praça de São João. E chegou a comungar duas vez no mesmo dia, justificando que, nas coisas de Nosso Senhor, quanto mais melhor. Anos mais tarde, esse acto, que então era considerado um sacrilégio, viria a ser autorizado pela Igreja…

Apesar de temer mais o mar do que um toiro bravo, João dos Ovos acompanhou a São Miguel a primeira embaixada taurina que veio a esta ilha, em 1965, para várias touradas à corda e uma de praça. A sua simplicidade, o ser para os outros sem fingimentos aquilo que era no fundo de si mesmo, deixaram um rasto de simpatia e de ternura. Porque o João dos Ovos era uma espécie de criança grande, capaz de expor as pernas ao sol na Avenida Marginal de Ponta Delgada, explicando a todos os que passavam que o senhor doutor lho recomendara por causa das varizes; ou de fazer grandes reverências e uma elaborada oração em voz alta no altar da Virgem, na igreja de São Pedro, antes de deixar na caixa das esmolas os cinquenta escudos que quisera dar ao bondoso padre José Baptista Ferreira, que fora pároco da Conceição de Angra, e o acolheu em sua casa durante esses dias. Chamar “João dos Ovos” ao belo paquete “Angra do Heroísmo”, que a Insulana comprou a um armador israelita por oitenta mil contos em 1966, foi com mais frequência uma homenagem ao famoso capinha do que uma manifestação de desrespeito pelos terceirenses.

A essas touradas em terras de São Miguel, como em outras mais recentes, que atraíram muita gente, não faltou entusiasmo mas abundaram os actos inconscientes e temerários. Mas faltou-lhes o sabor que só a tradição consegue dar e a Terceira cumprir, faltaram os espontâneos que compreendessem os toiros. Por isso é célebre na minha Maia a história de um militar que foi artilheiro em Angra durante a Segunda Guerra Mundial. Estando ele de namoro à janela, numa rua onde havia tourada, a moça disse-lhe que entrasse para evitar algum desgosto com o toiro. Ora, se é verdade, como diz Camões, que, nos perigos grandes, o temor é muitas vezes maior que o próprio perigo, também há momentos em que o medo é bem menor do que requerem as circunstâncias. Foi este o caso. O heróico soldado permaneceu firme no seu posto. Mas o toiro não estava para romantismos, e fez o que lhe cumpria. Arremetendo contra o destemido marialva, mandou-o pelo ar, atirando-o para o quintal. A viagem demorou o suficiente para que o rapaz gritasse enquanto voava: “Adeus, São Miguel, que nunca mais te vejo!”

Cada uma das cerca de duzentas e cinquenta touradas à corda que por ano há na Terceira é um espectáculo em que o toiro se diverte pelo menos tanto como as pessoas. Que muitas vezes passam o tempo tentando conquistar alguma moça namoradeira ou à volta de uma mesa farta, com bons petiscos e cerveja fresca, que destronou o tradicional vinho de cheiro. Por isso muitos voltam para casa sem terem visto a cor ao menos de um dos quatro toiros. E, se calha alguém de fora da ilha ser instado a entrar no convívio, o que com frequência acontece, também correrá o risco de, como qualquer terceirense em iguais circunstâncias, só ver “o quinto toiro”, como eles por graça dizem. O que, como se percebe, é o mesmo que dizer toiro nenhum. Mas uma tourada à corda é sempre uma festa de movimento, cor, convívio, alegria. O suficiente para valer a pena o risco de algum osso maltratado. Sobretudo se for em corpo alheio…

(Do livro em preparação Terceira, Terra de Bravos, a publicar pela Ver Açor)