segunda-feira, 25 de abril de 2011

Camões em duzentas e tal palavras



Se eu disser que ontem encontrei Camões, quem ouvir espanta-se até ao infinito ou chama-me doido. Corro o risco. Encontrei o vate, sim. “Um perdigão depenado”, como no filme de Leitão de Barros. Incapaz de fazer uma canção, uma endecha, uma estrofe que lhe não enxovalhe a fama. Insisti. Dei-lhe a minha palavra de que não venderia o autógrafo. Que valeria uma fortuna maior do que ele ganhou a poetar a vida inteira. Seria um insulto. O original, guardo-o ciosamente. A transcrição vai abaixo. Talvez com falhas. A sua caligrafia é mais difícil de entender que a do Vergílio Ferreira.

Sam taes os dões na Lingua Portugueza,
Tam forte, femenil, e tam fermosa,
Como erão na latina. Tal belleza,
Despois na nossa posta, é mais famosa.
Mas a patria christã da-me a certeza
D’esta sentença fea e desditosa:
Se eu vivera outra vez, morria à mingua,
Pois ja ninguém entende a minha lingua.

Forão sutis mudanças a mudalla,
A pouco e pouco sempre em crecimento,
Que ja eu nam consigo bem uzalla
Porque foi mui disforme tal augmento.
Mas inda assi nam deixarei de amalla
Que a lingua tãobem é um sintimento.
E por tanto da lingua estar ja morto,
Eu sinto, por ser morto, algum conforto.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A Academia Popular da Língua

Fac-símile da carta original de Pero Vaz de Caminha quando do aportamento da expedição de Cabral em terras brasileiras. (imagem de domínio público)






Houve um tempo em que muito mais que agora se estimava a Língua Portuguesa. Por isso no 2º Ciclo do Liceu se estudava a sua evolução e os seus autores mais notáveis, desde os gentis trovadores ao magnífico Aquilino. Mas nessa viagem que acompanhava a cronologia estava um dos tropeços do programa. O percurso teria sido mais fácil se feito ao contrário, começando na linguagem familiar dos contemporâneos e acabando no suave trovar dos antigos. E assim, sem mais penas que as necessárias, teríamos ido do morrer de amor de Ana e Simão até ao “moiro d’amor” de D. Dinis, passando pelo “moura e pereça” de Luís Vaz.

Faz parte da natureza da Língua evoluir. Nem o Latim deixou de mudar quando se tornou numa língua dita morta, pois continua vivo na herança directa das sete línguas latinas e seus dialectos, nas várias que receberam dele grande parte do léxico e até na taxonomia. Mas os legionários que Roma recrutara nos quatro cantos do Império, e que nos trouxeram uma língua já algo distinta da que se falava no Lácio, tê-la-ão feito evoluir? Ou corromperam-na, conforme pensava Vénus pela pena de Camões? E, se talvez nenhum deles falasse da mesma maneira que por esse tempo Cícero escrevia ao seu amigo Ático, ainda falariam Latim?

Foi nessa transfiguração da língua do Lácio que continuou a ser forjado o Português. De celtas e outros povos tinham ficado vocábulos que permaneceriam até hoje, e mais tarde se lhe iriam juntando muitos de árabes, guaranis, chineses, quimbundos, de todos os povos com quem aprendemos novidades, fosse a do ornamental azulejo ou a do exótico maracujá, a do reconfortante chá ou a da pobre senzala. E por onde íamos também íamos ajudando a cumprir esse fadário das línguas, o de serem mudáveis. Mas se a Língua não é imutável no léxico, tão-pouco o são em si mesmas as palavras que o constituem, até porque desse pecado original é que todas nascem e se desenvolvem. E é também nessa inconstância que os apoiantes do Acordo Ortográfico encontram abrigo para a defesa das suas posições. Mas será legítimo impor regras politicamente legisladas ao que por sua natureza é património colectivo e responsabilidade partilhada da nação? A primeira grande intromissão do poder político nas leis que regem a Língua aconteceu com a iconoclasta República, que não se limitou a mudar de rei para presidente, mas mudou também a bandeira, o hino, a moeda e a própria ortografia, tendo tentado mesmo intervir no espírito religioso popular. Como se do Portugal com quase oito séculos nada pudesse ficar para memória futura.

Sim, esta língua tem vindo a mudar sempre, desde que o Latim perdeu as declinações e se adaptou ao rude falar dos legionários e dos povos conquistados, tornando-se no latim dito bárbaro ou vulgar. E todas essas mudanças e as que aconteceram depois se deveram à necessidade de facilitar a comunicação, a características naturais da fonação ou a erros dos falantes, que de tão repetidos passaram a ser norma. Mas esta alteração da norma não surgia por acaso nem por geração espontânea. Os portugueses enamorados não adormeceram numa qualquer noite morrendo de soydade pela mulher amada, para despertarem na manhã seguinte com a saudade tão viva como na véspera. Diferentes formas para a escrita, ou a própria prosódia, da mesma palavra têm coexistido sem conflito durante décadas, talvez séculos. Segundo os escrivães de D. Manuel I, o poderoso rei ora regulava o comércio do “assucar”, ora oferecia umas quantas arrobas de “açucar” a quem lhe aprouvesse. Ainda no mesmo século, o XVI, não faltou quem satisfizesse a gulodice com doces torrões de “assuquere”. Mas, no século XVII, já não havia dúvidas. E todas as palavras que em Árabe começassem como aquela (as’sukkar) haveriam de ficar no Português com o princípio em “aç”, como açucena ou açude. Por vezes, ao fim de muito tempo de tal coexistência, os dicionaristas – definitivos sancionadores do padrão da Língua –, vencidos pela persistência de diferentes grafias, registavam as variantes. E assim temos, por exemplo, “disfrutar” e “desfrutar”, ou “lâmpada”, “lampa” e “alâmpada”, todas elas de curso legal segundo os dicionários. (São vários os casos da prótese do artigo com o substantivo, alguns mesmo da preposição com o verbo. E foi muito comum a escrita de preposições, copulativas e artigos juntando-os às palavras que regiam. Ainda no século XVIII acontecia, v.g. “o padre tirando-o com toda areverencia, o entregava com toda a decencia” – Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia, transcrição de Alícia Duhá Lose. Ou “todas asindulgências que osenhor capelão”, “efoi corista en oanno demil equinhentos” – relatório do vigário do Cartaxo sobre o estado em que ficou o concelho depois do terramoto de 1755, transcrição do autor.)

Para a evolução da Língua, no princípio foi o povo, que nunca se demitiu dessa função. Para a fixação da norma, embora muitas vezes transitória, terão servido de modelo cronistas de El-Rei, poetas e escritores como Camões ou Vieira, Camilo ou Herculano. O século XX tornou-se sobretudo o tempo do império dos jornais, para a grafia, e da rádio e da televisão, para a prosódia. Acerca desta surge uma das polémicas do Acordo. Há os que dizem que a alteração da grafia talvez a altere também, e há os que o negam. Se do futuro nada se pode afirmar, do passado temos exemplos variados de como a grafia muitas vezes condiciona a pronúncia. Dois casos recentes são “paisagem” e “saudade”. Aquela, que deriva de “país”, embora por via do Francês, escrevia-se com trema para que a raiz fosse respeitada – “PAÏSAGEM”. E “saudade”, também para desfazer o ditongo, tinha direito a trema igualmente – “SAÜDADE”. Desaparecido um e outro, poucos são os que ainda dizem “pa-i-za-jem”, enquanto que alguns já pronunciam “sau-da-de”. A nossa “idéia” já foi assim, acentuada como ainda é a brasileira. O que se justificava pela diferença prosódica em relação ao mesmo ditongo, em “cheia” ou “areia”, por exemplo. Eis, pois, outro caso em que a perda do acento exerceu influência em alguns falantes do português de Portugal. E, se a pronúncia do Norte tivesse persistido na prosódia nacional, pois então o Porto certamente haveria de ser uma “NAÇAÕ”, tendo-se mantido o til sobre a vogal final, que aí era o seu lugar. Curiosamente, foi ainda assim que foi escrito no referido Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia.

Quanto ao “e” em sílaba inicial, tem-se tornado uma vítima do sistema… É frequente não ser lido com o som de “i” em casos em que assim deveria ser. Por exemplo “Emanuel” que, no entanto, já se escreveu “Immanuel” ou “Imanuel”, acontecendo o contrário com “igreja”, que já foi “egreja”. Prova de que “Emanuel” sempre foi para ser dito “IMANUEL” e “igreja” já seria assim, mesmo quando era “egreja” devido à sua origem greco-latina.

O grande argumento dos defensores do Acordo é o da conveniência de harmonizar o Português em todo o espaço onde se o fala. Mas não serão as ausências de uns velhinhos “pês” ou de uns inocentes “cês” que facilitarão a comunicação com quem tiver aprendido Português depois de adulto. A maior dificuldade está relacionada com a riquíssima diferença do léxico e da prosódia dos países lusófonos em relação a Portugal. Com essas características o Acordo, obviamente, não se atreve a bulir. E felizmente não poderia fazê-lo, ainda que o tivesse querido. Por isso apenas resolve uma ínfima e superficial parte do problema. Tanto mais que, permitindo grafias duplas, acaba por criar alguma confusão entre prosódia (pessoal ou de grupo social) e ortografia. Os jornais que aderiram de imediato às novas regras têm demonstrado isso mesmo.

Nenhuma mudança repentina é fácil de aceitar. Uma experiência curiosa, e de certo modo extravagante, foi feita por Juan Ramón Jiménez, que chegou a usar sempre a letra “z”, para representar a fricativa dental surda, e o “j” em vez do “g” gutural. E se isto não adulterou a qualidade da tradução de Tagore, feita por Zenóbia, sua mulher, e por ele, tão-pouco trouxe algo de novo à língua castelhana, que de modo algum se interessou por tal simplificação. O pior incómodo, no entanto, era de natureza estética. Porque a estética também é um hábito.

Enfim, a República, que tirou à Língua o “p” de Egipto e o devolveu em 1945, agora que o apagou novamente bem poderia voltar a pô-lo no seu lugar. Por razões muito faladas já. E que nos fosse permitido continuar a distinguir os olhos dos ouvidos (óptico e ótico), ou que o “c” segurasse o tecto, contra todas as dúvidas… Porque o que é novo nem sempre é melhor do que o antigo.