domingo, 21 de novembro de 2010

Carta de Fradique Mendes a Eça de Queirós a propósito do discurso de Sua Excelência (FICÇÃO)


Lembra-se decerto, meu caro amigo, daquela espectral figura, homogénea de cima a baixo no seu negro vitalício, que respondia às vezes quando alguém chamava “Eugénio”. A sua morte foi o seu maior vexame. Já todos a pressentíramos, porque já todos interpretáramos os iniludíveis sinais de uma doença hepática fatal. Só ele não. Por isso se escandalizou quando o médico lhe diagnosticou que uma cirrose o extinguiria em breve: “Eu nem sequer sou bêbado, doutor!” E não era – pelo seu critério, não era. Apesar de o seu dejejum consistir em dois ou três copos de Collares, de beber uns quantos cálices de Xerez como aperitivo e meia dúzia de conhaques para ajudar a digestão, não era bêbado, jurava. O certo é que não o víamos vacilar, jamais lançou uma só gota da abundância dos néctares vertidos numa goela sem fundo, não punha um pé fora do sítio certo, nunca engordou uma libra, nunca emagreceu um arrátel. Seroava sorvendo brancos e tintos das melhores castas ou viris carrascões do Cartaxo. Nós conversávamos, e ele bebia. Até que o Martinho fechasse e fôssemos mandados embora curar os excessos no Passeio Público. A espectral figura erguia-se em linha recta, caminhava como uma estátua de bronze animada, sem um desalinho no meticuloso penteado, sem uma ruga no aprumo das calças, e, se era Inverno, tendo o paletó impecavelmente abotoado e sem dobrar as golas para o pescoço, por mais que o frio nos obrigasse ao aconchego de nós mesmos. 

Lembrei-me do senhor Dom Eugénio ao ouvir Sua Excelência falar à Nação. Num instante Sua Excelência fez ruir séculos e séculos da dúvida existencial da inscrição do templo de Delfos, que tanto impressionou Sócrates até ao fim da vida. Sua Excelência conhece o mais ínfimo pormenor da sua alma, e do seu espírito, e do seu coração, e do seu povo. Sem ela, a excelência de Sua Excelência, o país seria infinitamente mais infeliz. Na minha comoção agradecida, cheguei a imaginar que, se Sua Excelência tivesse sido rei em vez de D. João III, o miserável Sepúlveda não haveria naufragado em terra de cafres. Ou, se houvesse governado em lugar de D. Carlos, Portugal não teria sofrido a vergonha e o prejuízo do mapa cor-de-rosa. Imaginações vãs, que tanto poderiam ter alcançado estes reis e seus reinados como outros quaisquer da nossa história. Até mesmo um Afonso III, que não deveria ter-se declarado rei de Portugal e do Algarve, mas do Algarve e de Portugal.

Chegado a este ponto, meu caro amigo, nenhuma semelhança terá percebido ainda entre Sua Excelência e a espectral figura. Onde se encontram as duas personagens é na negação daquilo que obviamente um foi e o outro tem sido. O espectro era um bebedor dos mais empenhados de Lisboa, mas nunca deu provas circunstanciais de tal condição. Não o víssemos emborcar quantidades astrais de cálices e de copos, e nenhum de nós acreditaria que fosse bêbado. A sua conduta era irrepreensível e sóbria como a de um monge que bebesse leite e água somente. Pois Sua Excelência afirma que não é político. Candidamente. Com uma convicção daquela óbvia pureza filha da ingenuidade – apesar de já ter ocupado cargos no Estado suficientes para satisfazer as ambições de toda a condal família de Abranhos.
  
Façamos justiça, porém, a sua Excelência. Assim como ao senhor Dom Eugénio nunca se lhe viu um gesto que o denunciasse como bêbado, de Sua Excelência não se conhece um pensamento à maneira de Gladstone, uma ousadia à Jefferson, ou um golpe de génio à Disraeli. Em suma, Sua Excelência nunca teve um acto político propriamente dito. Por isso, meu caro amigo, curvemo-nos perante a honestidade de Sua Excelência.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Post Scriptum para os “Diários” de Fernando Aires


Fernando Aires (1928 - 2010)

Hoje a cidade amanheceu cercada de cinzento. É seu velho hábito vestir esse hábito de quase penumbra. Que incomoda. Que amolece o gosto pela vida. Que nos tira a vontade de nos levantarmos. Hoje, a cidade voltou a vestir os seus andrajos mais frequentes, como viúva pobre em permanente aliviar luto. E não me apeteceu levantar. Na minha “Ilha de Nunca Mais” não voltarei a erguer-me. O tempo… o tempo, para mim, agora já “era uma vez”. 

A notícia de que não me apeteceu levantar acinzentou de quase trevas pedacinhos de mundo aqui e acolá. Escureceu a claridade na Ponta da Galera. Arrefeceu o vento nordeste na Maia. Gelou corações em Providence ou em Lisboa, em New Bedford ou em Toronto, na Califórnia ou em Santa Catarina. Estranha sensação, esta, a de saber que eu, “uma unidade de sentimentos/ sensações”, fazia parte dos sentimentos bons de tantos amigos. 

Se for possível farei o possível para estar com ela, mas a Linda ouvirá sozinha a nossa música. Como eu amei esta Mulher! Como ela conseguiu ser o braço que me levantou tantas vezes em manhãs em que não me apeteceu levantar! Mas, hoje, não. Hoje tornou-se no nunca mais. Talvez tentem aliviar este insidioso luto cinzento com um cheiro a flores. 

Hoje não me levantei. Não volto a levantar-me, já disse. Não me cansei da vida, nem da família, nem dos amigos. Nem sequer me cansei de mim. Mas tinha de haver este dia. O dia de nunca mais.

Até qualquer dia, companheiros.

Maia, 9 de Novembro de 2010

(Daniel de Sá)