sábado, 30 de janeiro de 2010

Os cês

Estratos geológicos (fotografia encontrada em Nuno Correia - Geologia)

(Muitos dos nossos cês atingiram o prazo de validade. No entanto, ainda é permitido usá-los enquanto nos causar arrepios ver muitas palavras despidas deles. Por isso deixo aqui uma pequena lição que dediquei à minha amiga Lélia Nunes, que, como brasileira, nunca entendeu a trapalhada dos nossos cês.)

Nós por cá, em Portugal,
Temos cês muito discretos.
E quem não quer amar mal
Tem de pô-los nos afectos.

É que esta questão dos cês
Não se faz assim à toa.
Tem razões e tem porquês,
Não é moda de Lisboa.

Eu não ato nem desato?
Pois então vamos em frente,
Que uma peça de um só acto
Não cativa muita gente.

Vou dar exemplos seguidos,
E bem deves ter notado,
Nos muitos livros já lidos
Como é o cê bem usado.

Se eu cato, ando a catar,
Mas se planto, planto um cacto.
E às vezes, para ir rezar,
Não visto um terno, é um fato.

Um pacto é um contrato.
E em opíparo jantar,
Pouco há melhor do que pato
Com arroz, depois de assar.

Um estrato é Geologia
Ou situação social.
Mas com xis e cê daria
Para saber se anda mal

A minha conta bancária.
Estes nossos cês correctos,
E de utilidade vária,
São calados, circunspectos.

Como não se nota a ausência,
Há quem se esqueça de usá-los,
Mas com alguma experiência
Sabe-se onde colocá-los.

Cateto tem? Vês que não.
Mas têm recto e compacto.
Vais aprendendo a lição?
Se não vais, já me retracto.

Mas nestas há quem os diga,
Dou o dito por não dito.
Que a nossa lição prossiga.
Se aborreço, estou contrito.

Um bom corrector corrige,
Um corretor faz dinheiro.
E, quando o mau tempo aflige,
Bom tecto é bom companheiro.

E digo-te, a concluir,
E como amigo dilecto,
Que nunca deixes cair
O cê que segura o tecto

domingo, 24 de janeiro de 2010

Temores e Tremores

O Grito (Edvard Munch)

O tremor de terra que só se sentiu da casa do Manuel Pimentel para baixo fora bem diferente... Durante alguns dias, a terra tremera com frequência. Uns pequenos soluços, uns ligeiros solavancos, mas nisto o que se imagina assusta mais do que a realidade. Bastava um gato passear-se no telhado, uma porta mover-se com um sopro de vento, e logo se gritava “ai Jesus!”, como se já fosse tremor ou terramoto, fim do Mundo ou juízo final. António quase nunca dera por nada, ocupado no trabalho ou dormindo profundamente.

O Manuel Pimentel amarrara o cão, com uma espadana, ao pé do galinheiro, para vigiar os pintos de uma ninhada nova. Estava o dia já mais tornado em noite do que crepúsculo, e as galinhas deitadas, quando apareceu um gato mesmo na cara do zeloso vigilante, que não o fez por menos: com um grito de guerra atirou-se na direcção do inimigo rebentando a frágil amarra, saltou o curral do porco em sua perseguição, subiu para o forno, do forno para as telhas, e, como a rua era ligeiramente a descer e as casas desciam em altura numa proporção semelhante, a fuga e a perseguição aconteceram até à última, num remover e quebrar de telhas que, dentro, ecoavam como um desastre em acto. Estando os sentidos atentos a todo o aviso de tremor, as portas foram-se abrindo uma a uma, com famílias inteiras a virem para a rua aos gritos de “Louvado seja Deus!”, “Credo em cruz, Santo Nome de Jesus!” e outras jaculatórias de imprecação e temor. A Branca, mulher do Manuel Pimentel, percebendo o que se passava nos telhados de cada um, e já temendo que, sabida a verdade e denunciados os culpados humanos pelo seu silêncio comprometedor, lhes viessem cobrar a conta do prejuízo, mandou com sentido de obediência imediata: “Vai lá, Manuel, vai louvar também a Nosso Senhor, se não queres trabalhar toda a semana para pagar as telhas.”

(Texto extraído do romance A Terra Permitida – esgotado)

sábado, 16 de janeiro de 2010

Um tremor de terra na Maia

Craig Mello e família na igreja do Divino Espírito Santo, Maia
(fotografia gentilmente cedida por Veraçor)

Ninguém tem memória de mortos ou feridos na freguesia por causa de terramotos, e há muros velhos com décadas ou séculos, casas feitas de pedras pequenas, muitas trazidas do calhau da Gorreana ou de outros lugares da costa, e coladas umas às outras com barro, que se mantêm de pé apesar dos tremeliques do chão. Mas um tremor de terra apavora. Se é mais forte do que o costume, uns momentos antes de acontecer os cães põem-se a ganir e a correr desorientados, ou as vacas procuram fugir, sem saberem de quê e para um lugar que não sabem onde. Os ultra-sons que precedem a agitação sensível da terra ferem os seus ouvidos, de modo semelhante a como são feridos os nossos por unhas a raspar numa parede de cal ou uma navalha a alisar um folhelho, e esse arrepio provoca-lhes uma sensação de mal-estar inquietante ou um medo irracional. Um tremor mais forte podia fazer também com que se abrissem as portas das tabernas, fosse a que horas fosse da noite adormecida violentamente desperta, para que os homens, com a desculpa de matar o bicho do medo, acorressem a matar o outro, o da sede sempre pronta a emborcar um calzinho de aguardente.

Talvez nada como um tremor de terra devolva aos homens, se a têm esquecida, a consciência da sua fragilidade. O tremor de terra é breve enquanto acontece, mas tarda muito a passar depois de ter acontecido, e é a memória que o faz longo. Uns segundos apenas (dez... doze... catorze...), mas ficam as suas sensações recordadas, revividas: o chão que se sacode debaixo dos pés, as portas e as janelas que rangem, a armação da casa que ameaça desmoronar-se como ossos de um monstro gigantesco a estalarem, o tecto que se move em ondas invertidas, as chávenas que se balançam com o som de campainhas, uma leve vertigem, o urro final em que se julga que tudo vai desabar sobre a gente e que a gente se vai misturar aos escombros de um mundo desfeito. E, de repente, a quietude total, enquanto se vão calando as campainhas, como se um tropel de cavalos enlouquecidos se tivesse aproximado num galope subitamente interrompido. A memória revê cada vibração por sua vez, ouve de novo cada som em separado e não como uma sinfonia fantástica, de tubas e contrabaixos diabolicamente desafinados à mistura com pequenos címbalos que escarnecem num riso sincopado e sem ritmo, ao mesmo tempo que sabe-se lá quantas batutas de cristal se partem sucessivamente. E o temor verdadeiro, maior que o perigo quase sempre, é entre dois tremores, o que pode demorar muitos anos.

Vendo os picos altivos, os sólidos rochedos, a ilha que resiste a todas as fúrias marítimas, de ondas que mudam penedos do seu lugar, e de ventos que espatifam milharais, que queimam todas as culturas, que tornam castanhas as folhas das árvores; a ilha que não se esboroa com os dilúvios que fazem germinar os trigos antes da ceifa – ninguém entende como pode haver forças capazes de a sacudirem como se ela fosse uma peneira de coar o farelo para fazer pão da rala. Só Deus, acredita-se. E, por isso, um outro nome do tremor de terra é castigo, com a explicação popular de que nas profundezas da Terra há cavernas imensas onde se desprendem enormes rochas, fazendo estremecer tudo de tal maneira que o solo estremece também quando acontecem tão descomunais derrocadas. Embora modificada, dizendo rochas que se soltam em vez de espíritos de ventos que correm de um lado a outro em busca de uma saída, a lição de Aristóteles permanece de geração em geração há vinte e três séculos, e não será esquecida por muito tempo ainda.

Fez anos nessa mesma noite que António sentiu o maior tremor da sua vida, estava ele na igreja, uns minutos antes de começar o Te-Deum. Acabara de entrar com a mãe e as irmãs e ainda rezava saudando o Santíssimo exposto. Percebeu primeiro uma vibração das tábuas do estrado debaixo dos joelhos, como a de um sobrado quando alguém, sentado numa cadeira e com a ponta do pé assente no chão, agita a perna de cima para baixo em movimentos muito rápidos. Não entendeu de imediato do que se tratava e, olhando à volta, notou o mesmo ar de admiração em rostos que se viravam também para um lado e outro à procura de explicação. Então as grossas pilastras, que dois homens mal conseguem abraçar, foram sacudidas violentamente, com a nave da direita a parecer que tombava para sul e a da esquerda para norte. Os lustros, com as velas todas acesas, balançaram num chocalhar de pingentes, deixando rastos de fumo e fogo a riscar o ar. Um ronco tremendo subiu, como se o chão estivesse a abrir-se, as pilastras foram sacudidas com mais violência para fora e para dentro, o arco da capela-mor torceu-se como roupa molhada a ser batida pelas lavadeiras, os escarradores chocalharam nas lajes, o petróleo respingou dentro dos candeeiros, e um estrondo abalou a igreja desde os fundamentos, provocando um estoiro no tecto, ao mesmo tempo que uma nuvem de cal, que pareceu por momentos ser a abóbada a desabar, caía sobre o povo em pânico, que gritava aterrorizado, com algumas mulheres a saltarem para cima das grades do cruzeiro ou a subirem para as cadeiras ainda vazias que pertenciam às senhoras de estatuto e lhes marcavam e reservavam presença e comodidade junto ao altar do Senhor. Fugiam do medo que vinha do chão como se o perigo não estivesse no alto. António continuava de joelhos, sem tempo ainda para ter medo, e, quando viu cair a cal, julgando que era o tecto, apenas pensou: “agora é que eu vou saber como se morre num tremor de terra.” Dito isto para si mesmo, verificou que a nuvem branca fora apenas cal e que tudo permanecia tão seguro e quieto como se nada de anormal se tivesse passado. Mas as pessoas que vinham na rua a caminho da igreja mal se aperceberam do tremor. Houve quem se lembrasse de ter ouvido ranger uma cancela ou de um qualquer outro ruído estranho, mas sem ligar tais sons à sua causa. E não mais do que isso.

(Texto extraído do romance A Terra Permitida)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Janela

Fotografia de Carlos Sousa

(Texto extraído de uma novela que anda por aí.)

Foi pela casa da Rita que Manuel Cordovão começou a tentar manter a aldeia com ar de estar ainda viva, ou pelo menos em condições de receber a vida, se a vida voltasse algum dia a precisar de abrigar-se nela.

Estava com um vidro partido, na janela onde Rita esperou muitas vezes o pôr do Sol e o namorado. E em algumas dessas muitas vezes Manuel vira-a à espera, e pensara em como seria bom se a janela fosse outra em outra casa, e essa outra casa fosse a da Graça e na janela fosse ele o esperado. Mas o tempo de isso ser possível passara havia anos, e, quando o tempo passa, o milésimo de segundo mais perto no passado está infinitamente mais longe que mil anos no futuro. Podiam ter-lhe acontecido alguns remendos na alma, mas nada mais. Com a Rita, por exemplo.

Na pressa com que tudo começou a acontecer em mudança na aldeia, chegou um dia em que se apercebeu de que a Rita era a única rapariga solteira e sem namoro. Mas talvez tivesse estragado tudo com aquele maldito feitio de ser impulsivo no pensar e ponderado em demasia no agir. Trocaram uns sorrisos de vez em quando. O velho Simeão, vizinho dela, sabedor dessas coisas de sentimentos retribuídos, disse-lhe que tinha a certeza de que ela gostava dele. Fariam um bom par, de que estava então à espera? De nada, um raio o partisse. Rigorosamente de nada, porque foi isso que lhe sobrou quando viu o Carlos, um rapaz da Aldeia Nova do Vale, pela primeira vez a conversar com a Rita em jeito de namoro. O mal fora ter pensado demasiado se gostava dela porque gostava mesmo ou se era por não haver outra por perto.

Estava na palheira, acabando a ordenha, quando a Rita aparecera, encostando-se primeiro ao umbral e mandando um pouco mais de sombra lá para dentro. Olhou-a, e viu o Sol, começando a avermelhar, que lhe desaparecia como uma auréola por detrás do laço da cintura. Ela disse: “Venho convidar-te para o meu casamento.” Depois deu um passo para dentro e meio para o lado, apoiando as costas na parede. Manuel levantou-se e disse, quer dizer não disse nada, porque aquilo era o mesmo que nada ter dito: “Então já vais casar!...” Foi andando devagar em direcção à rapariga, e sentiu de repente um enorme desejo de a beijar. Teve um pressentimento, uma quase certeza, de que ela percebeu isso e o desejou também. Chegou a centímetros dela, que não mexeu o corpo nem desviou o olhar.

Parou assim, fixando-a, como que fascinado. E a Rita igual. Então pensou que ela iria casar por aqueles dias. Que, quando lhe acontecesse zangar-se com o marido, ou por qualquer razão tivesse razões de se arrepender do casamento feito, imaginaria que talvez tivesse sido mais feliz com ele mesmo. A fruta que não se prova é sempre a melhor, quando a que saboreamos tem bicho. Pôs-lhe a mão no ombro. Mas estava era como que a defender-se a si mesmo de encostar o seu corpo ao dela. “Desculpa ter-te sujado. Foi sem querer.” Não fazia mal, estivesse descansado. “Que sejas muito feliz.” Havia de fazer o possível. E foi-se embora com os primeiros sinais do crepúsculo. Ia a meio caminho entre a palheira e a casa quando Manuel disse: “Eu não vou, Rita. Não posso.” Ela parou, voltou-se para ele e perguntou: “Não podes ou não queres?” Confirmou “não posso”, e a rapariga retomou o ir-se embora sem protestar mais do que num fingido “está bem”.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Magos, inocentes e fuga para o Egipto

Adoração dos Magos (Grão Vasco)

(Publico este texto especialmente dedicado à Mariana)

Os evangelhos não foram uma espécie de biografias de Jesus, escritas à maneira moderna. Talvez resultem de pequenas pregações avulsas que circularam entre os primeiros cristãos. Passando de mão em mão, copiados e recopiados para chegarem ao maior número possível de crentes, facilmente terão sido como que “contaminados” pela piedade dos copistas. Estes poderiam, por exemplo, ter recorrido a passagens do Antigo Testamento para completar a narração de São Mateus. O método estaria de acordo com o que os exegetas judeus faziam desde o último século a. C., uma certa forma de analisar os Livros Sagrados e sua interpretação total ou parcelar. A cada interpretação dá-se o nome de “midrash” (“midrashim”, no plural hebraico).

Para perceber melhor este método e sua intenção, veja-se o que acontece no início do evangelho de São Mateus. Em Oseias começa assim o capítulo 11: “Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egipto o meu filho.” No próprio evangelho vem esta referência explícita: “Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: Do Egipto chamei o meu filho.” A partir desta ideia, seria necessário criar o cenário que teria obrigado a que a Sagrada Família, à semelhança de várias personagens do Antigo Testamento, se refugiasse naquele país. Aparece então a muito conhecida história da perseguição de Herodes a Jesus. Os magos vindos do Oriente representariam a universalidade do reino messiânico, e o choro das mães dos meninos assassinados seria como que um eco do que disse o profeta Jeremias, pensando no sofrimento dos habitantes do Reino do Norte, massacrados ou exilados pelos assírios: “Ouvem-se, em Ramá, lamentações e amargos gemidos. É Raquel que chora, inconsolável, os seus filhos que já não existem.”

Diz S. Mateus, com alguns erros na citação: “Cumpriu-se então o que o profeta Jeremias dissera: Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: É Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada, porque já não existem.”

Este tipo de recursos de que os evangelistas se serviram para preencher lacunas, ou para reforçar o sentido da mensagem que pretendiam transmitir, não apaga de modo nenhum o fundo histórico dos evangelhos. O essencial dos factos narrados ou dos ensinamentos de Cristo permanece inalterado. É pouco relevante, por exemplo, que Jesus tenha nascido em Belém ou em Nazaré. Ou que tenha voltado a esta depois da apresentação no Templo, como diz São Lucas, ou fugido para o Egipto, segundo São Mateus. O importante é Ele ter vivido entre nós. Como é igualmente pouco relevante se o Sermão da Montanha foi dito numa só pregação ou se é o resumo da doutrina de Cristo feito por S. Mateus.