O Grito (Edvard Munch)
O Manuel Pimentel amarrara o cão, com uma espadana, ao pé do galinheiro, para vigiar os pintos de uma ninhada nova. Estava o dia já mais tornado em noite do que crepúsculo, e as galinhas deitadas, quando apareceu um gato mesmo na cara do zeloso vigilante, que não o fez por menos: com um grito de guerra atirou-se na direcção do inimigo rebentando a frágil amarra, saltou o curral do porco em sua perseguição, subiu para o forno, do forno para as telhas, e, como a rua era ligeiramente a descer e as casas desciam em altura numa proporção semelhante, a fuga e a perseguição aconteceram até à última, num remover e quebrar de telhas que, dentro, ecoavam como um desastre em acto. Estando os sentidos atentos a todo o aviso de tremor, as portas foram-se abrindo uma a uma, com famílias inteiras a virem para a rua aos gritos de “Louvado seja Deus!”, “Credo em cruz, Santo Nome de Jesus!” e outras jaculatórias de imprecação e temor. A Branca, mulher do Manuel Pimentel, percebendo o que se passava nos telhados de cada um, e já temendo que, sabida a verdade e denunciados os culpados humanos pelo seu silêncio comprometedor, lhes viessem cobrar a conta do prejuízo, mandou com sentido de obediência imediata: “Vai lá, Manuel, vai louvar também a Nosso Senhor, se não queres trabalhar toda a semana para pagar as telhas.”
(Texto extraído do romance A Terra Permitida – esgotado)
O tremor de terra que só se sentiu da casa do Manuel Pimentel para baixo fora bem diferente... Durante alguns dias, a terra tremera com frequência. Uns pequenos soluços, uns ligeiros solavancos, mas nisto o que se imagina assusta mais do que a realidade. Bastava um gato passear-se no telhado, uma porta mover-se com um sopro de vento, e logo se gritava “ai Jesus!”, como se já fosse tremor ou terramoto, fim do Mundo ou juízo final. António quase nunca dera por nada, ocupado no trabalho ou dormindo profundamente.
O Manuel Pimentel amarrara o cão, com uma espadana, ao pé do galinheiro, para vigiar os pintos de uma ninhada nova. Estava o dia já mais tornado em noite do que crepúsculo, e as galinhas deitadas, quando apareceu um gato mesmo na cara do zeloso vigilante, que não o fez por menos: com um grito de guerra atirou-se na direcção do inimigo rebentando a frágil amarra, saltou o curral do porco em sua perseguição, subiu para o forno, do forno para as telhas, e, como a rua era ligeiramente a descer e as casas desciam em altura numa proporção semelhante, a fuga e a perseguição aconteceram até à última, num remover e quebrar de telhas que, dentro, ecoavam como um desastre em acto. Estando os sentidos atentos a todo o aviso de tremor, as portas foram-se abrindo uma a uma, com famílias inteiras a virem para a rua aos gritos de “Louvado seja Deus!”, “Credo em cruz, Santo Nome de Jesus!” e outras jaculatórias de imprecação e temor. A Branca, mulher do Manuel Pimentel, percebendo o que se passava nos telhados de cada um, e já temendo que, sabida a verdade e denunciados os culpados humanos pelo seu silêncio comprometedor, lhes viessem cobrar a conta do prejuízo, mandou com sentido de obediência imediata: “Vai lá, Manuel, vai louvar também a Nosso Senhor, se não queres trabalhar toda a semana para pagar as telhas.”
(Texto extraído do romance A Terra Permitida – esgotado)
12 comentários:
Noutra noite, aqui em Lisboa, diz-me a minha filha: "Mamã, um tremor de terra!"
"Tremor de terra? Não sinto nada!", digo-lhe eu. Mas fiquei de atalaia e percebi que as torres dos CD's realmente abanavam. E abanaram mais de meio minuto, que é um pedaço de tempo.
"Oh, filha, isto não é nada! Nem se compara com os nossos nos Açores!"
...pois, não se compara, mas eu não sei o que vem a seguir...
E quem dizia que eu dormia... Sempre de atalaia, sempre de ouvido alerta para pequenos ruidos (aqui não há cães e mesmo que houvesse, são urbanos, cá percebem alguma coisa da natureza!!!)
O temor apodera-se de nós, porque nunca sabemos o que vem a seguir, e qualquer barulhinho pode ser prenúncio de desgraça.
"Ah, Louvado, benzó Deus!!!"
Mas para onde foi o meu comentário que ontem deixei aqui?
Logo volto.
Beijo
Daniel,
Gostamos sobretudo do corre, corre do canino procurando um ajuste de contas com o gato. Indiferente às pessoas, que com o credo na boca se preparavam para o pior, lá perseguia o inimigo que colocava a ninhada nova em perigo.
Beijinho
Mafalda e Francisca
Ontem postei um enorme comentário e hoje, quando venho espreitar o espólio do meu amigo fiquei com temores"o que terá acontecido?"
Daniel,o título foi muito bem escolhido e, apesar da situação não ser para rir,não pude deixar de dar uma boa gargalhada, depois de lido o relato.
Amigo, vai tu também louvar ao Senhor, por brincares com humor sobre humores.
Minhas amigas
Deus tem sentidfo de humor, certamente. E esta história, embora escrita num romance cuja acção se passa quase toda nas primeiras duas décadas do séc. XX, aconteceu com um casal que morreu há pouco tempo. Foi-me contada por um filho e publicada com autorização das personagens reais.
Já agora, um pormenor. Na realidade "real" não se tratava de uma ninhada de pintainhos mas de um casal de pombinhos.
Daniel, aqui o cão não previu nada e como não sentiu ultra-sons fez ele mesmo o acontecimento. Além de cumprir muito bem o seu dever, ainda o isentou de taxas. O episódio encaixaria bem num «flagrantes da vida real»
Os animais na tua escrita, cumprem com muita naturalidade o papel para o qual realmente estavam destinados. Há no entanto dois, que não me largam pela maneira como me marcam nas histórias em que estavam envolvidos,um que resulta num acto violenta, pela simbologia implicita do culminar da tensão que leva à ruptura dos mundos a que a emigração obriga, transformando ao mesmo tempo este acto violento num acto de puro amor, refiro-me à Diana.
O outro é o Duque, que me faz rever, a aflição que ainda hoje sinto, de não ter podido valer ao «Marinheiro» de meu tio Abílio, que apesar de ter sido acolhido pelo meu avô, quando o resto da sua família emigrou para o Canadá,
todos os dias até morrer,se sentava à porta da sua casa, esperando fielmente pelos seus verdadeiros donos, e só regressando a casa do meu avô quando o dia e talvez também o seu coração se
cobriam de escuro.
Daniel, gostava de te fazer uma pergunta, que há muito gostava de a já te ter feito e ela não tem nada de inocente; quem achas que foi mais afortunado,a Diana ou o Duque?
Um abraço.
José Fernando.
Felizmente, entre desgraças, as pessoas (pelo menos algumas) são assim...
Algumas, mesmo durante as desgraças. :-)
Abraço.
Gostei muito, Daniel, como sempre porque é muito agradável de ler o que escreve e nunca cansa.
Beijinhos
José Fernando
A Diana foi inspirada na Durana, uma cadela que, 50 anos depois, ainda é lendária em Santa Maria, conforme pude verificar no Verão passado. Quando meu Pai morreu, ela velou-o como se fosse gente. Veio para São Miguel, mas ficou rigorosamente irreconhecível. Era de uma inteligência extraordinária, vivíssima, e passou a ser como uma sombra, apática, de tal modo que quando voltou a ver-me (eu fiquei em Santa Maria a acabar o 4º ano) não teve qualquer reacção.
Conclui, pois, por ti, quem foi menos infeliz. Se o Duque se a Diana.
Samuel
Esta família, com a alcunha de "Criação", era de muitos filhos, vivia com dificuldades enormes, mas era de uma alegria constante. O J. V., claro, conhece-os bem a todos.
Mariana
E nunca cansa ter-te por cá. E os teus elogios valem para mim muito mais do que podes imaginar.
Abraços.
Uma visita a um blogue recomendado por alguém que muito admiro.
Hoje é uma espreitadela rápida para dizer que anotei os seus Temores e Tremores.
Obrigado pela visita, António João.
Assim pelo nome, não sei quem seja. Será filho de um velho amigo meu que por acaso já não vejo há anos?
Como me faz bem ler-te. Consola. Beijos
Ana
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