quinta-feira, 11 de junho de 2009

Há-de Chamar-se Manuel

Maia (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

A mãe de Manuel de Sousa esperava o momento de ele nascer sentada num capacho, e foi ali que ele veio à luz com a ajuda de uma velha parteira que já vira chegar a este mundo quase tanta gente como a Maia tinha então. Frequentemente, das mãos dela aos gadanhos do coveiro, ia apenas um ai de vida.
O que estava para vir seria o seu quarto filho. Antes dele, duas Marias e outro Manuel tinham chegado e partido com a pressa de quem não se sentira seduzido pela Terra. Apesar disso, o pai teimava em que, a ser rapaz, seria Manuel também. Mau agoiro, preveniam-no, que isso de baptizar um anjinho de carne e osso com nome de irmão morto era fazê-lo correr o risco de que, em breve, os outros anjos o levassem para o Céu.
Quando, com o seu choro de saudar o mundo, anunciou que chegara, foram chamar o pai para lhe dar o primeiro beijo – ritual de boa sorte que ele, a custo, cumpriu mais essa vez – e para enterrar a placenta numa cova feita no chão térreo, aos pés da cama. E, enquanto o fazia, ia dizendo: “Mas há-de chamar-se Manuel.”
Quando o cordão do umbigo secou e caiu, deitaram-no fora, como ao de todos os rapazes, porque de um homem se esperava que andasse aos sóis do trabalho e aos relentos da noite, sem medida no esforço nem limites apertados no lazeres. O das raparigas, para que fossem senhoras da sua casa, guardava-se bem guardado numa gaveta da cómoda.
Depois, em tempos de mais trabalho, uma avó velha e cansada ficava vigiando, sem cuidados de maior, o neto empanturrado de manhãzinha com pão de milho amarelo, escaldado em água simples, e uma mamada por cima. (Leite forçado a couves e muito chá.) E, às vezes, se o pão obrigado a engolir – amiúde regurgitado e devolvido por um empurrão com a ponta dos dedos até meia garganta – não bastava para deixar a criança numa modorra de empacho durante quase o dia inteiro, havia o recurso adormentador de um vinho açucarado ou de um licor caseiro. Se o levavam para a terra, o pai fazia uma pequena cova no chão onde ele ficava o dia todo, à sombra de um guarda-sol. De vez em quando, a mãe acudia aos seus gritos, limpava-lhe um pouco a cara e a boca, dava-lhe o peito e voltava a deixá-lo sozinho. “Muitos foram tratados assim...”
E os que não morriam agarravam-se à vida como os incensos ou as faias que, com raízes de sede, se apegam à pedra-queimada e vivem como um mistério.
Do livro Sobre a Verdade das Coisas (esgotado)

14 comentários:

jv disse...

A beleza e a qualidade do texto não podem minorar a dureza e a crueza da realidade de então.
O aqui contado é um retrato fiel dum quotidiano implacável, em que « os que não morriam agarravam-se à vida como os incensos ou as faias que,com raízes de sede,se pegam à pedra queimada e vivem como um mistério.»
« Raízes de sede,se apegam à pedra queimada» é uma expresão genial para definir as dificuldades e os escassos meios de sobrevivência, tornando realmente a vida num «mistério».
Escrito desta maneira, tem toda a aparência dum eufemismo, lido na sua real dimensão, é um testemunho
cruel duma realidade que alguns de nós ainda participámos quer directamente ou a conhecemos mais esbatida através da oralidade dos nossos pais e avós.
Este texto literário poderia ser utilizado com todo o rigor que se lhe poderia exigir, como um texto histórico,é aqui que reside a mais valia dos escritos do Daniel, que quando o comparo a Oliveira Martins é que este também fazia História,como dum texto literário se tratasse.

Anónimo disse...

Contava-se no Pico, no tempo em que os contos serviam para distrair da rudeza da vida, que os açorianos eram homens rijos e valentes por uma razão simples: ao nascer, atiravam-nos contra a parede mais próxima. Se morressem…não se tinha perdido nada…se sobrevivessem, então eram verdadeiros açorianos.
O exagero é claro, quase assustador, mas o propósito revela um mundo de dificuldades que o texto deste post tão bem descreve.
Quase todas as crianças dessa época, do Manuel ao José, foram-no por pouco tempo. E desde bem cedo souberam comer malaguetas no pão, porque não havia dinheiro para manteiga.
Trabalho no campo enquanto a idade para ir ao mar não chegava.
Espelho humano do abandono abjecto a que as Ilhas estavam sujeitas, entregues à sua pouca sorte e aos caprichos da Natureza, num "mar" de preocupações e necessidades.
As novas gerações podem questionar se era tanto assim.
Era.

samuel disse...

A eterna arte encantatória dos poetas, que escrevendo sobre o horror e a miséria, as tornam heróicas e admiráveis.
Também tenho o nome de um irmão antes de mim. Por vezes não sei se o meu "ai de vida" é muito maior do que o dele...
Belo texto!

Abraço.

mar-ia disse...

Indo a reboque do comentário do JV, que subscrevo na totalidade, quero enfatizar que estas descrições que o Daniel faz (sempre com uma soberba naturalidade e gentileza ) ultrapassam a história, ou as “estórias” das nossas vivências. Entram noutros campos de análise, desde a filosofia à economia ou à religiosidade mais profunda. São abordagens completas e imperdíveis.
É muito forte este pedaço, “esta verdade das coisas” que me trouxe à lembrança verdades profundas e intimistas, dum mundo ao mesmo tempo tão próximo e tão distante. Dum espaço das mulheres.
Os nascimentos eram só de frequência delas. Como elas, nossas avós e mães, nos traziam ao mundo por entre atitudes escondidas e outras partilhadas, por entre terrores e desejos, num tempo em que a fertilidade feminina era bênção ou tormento. O poder patriarcal vinha depois e afirmava-se, completando a relação.
Essa dialéctica da existência está ainda na ordem do dia.
Tempos difíceis os contados, pela magreza de meios, tempos difíceis estes, com outras larguezas de ciência, mas sempre uma roda, incompleta e imperfeita. E plena.

Daniel disse...

JV, José Augusto, Samuel, Mar-ia
Estou deslumbrado com os vossos comentários. Estas memórias de um tempo absolutamente real foram-me quase todas transmitidas pela "tia" Fróis (Maria do Carmo Carvalho), avó de Maria Alice, minha mulher. Nasceu em 1905. Se não mas tivese contado, e muitas mais, e se eu não as tivesse escrito, ter-se-iam perdido para sempre. (O meu padrinho de baptismo, que nasceu por volta de 1895, passou muitos dias na terra, numa covinha, como conto. A mãe dele era irmã da bisavó do Craig Mello, prémio Nobel da Medicina.)
Mar-ia, as mulheres têm grande destaque neste livrinho. Confesso que elas são nele as minhas personagens favoritas, tanto mais que nada inventei. Posso ter inventado nomes, mas sempre
respeitando a "verdade das coisas".

Mar de Bem disse...

"...e vivem como um mistério."

Eu aqui vejo o mistério, como os nossos mistérios, à roda de S. João ou de Sta. Luzia, na ilha do Pico. Dá-me jeito que sejam esses mistérios, torrentes ressequidas de lava, onde nada medrou em 200 anos e que agora se regenera numa exuberância de verdes. Há 50 anos naquelas pedras negras, queimadas, ressequidas e ressecadas, surgia, como que praga, a urzela branca e esgroviada, único sinal de vida. Atravessar os mistérios à noite era encontro certo com almas do outro mundo. Qualquer silvo, qualquer ténue barulho, pressupunha a chegada das almas. E o povo fugia espavorido, corria desalmadamente, porque tudo valia, excepto dar de caras com as almas penadas, almas do outro mundo.

Agora a luz elétrica varre qualquer hipótese de encontros estranhos. Até o som das cagarras já se tornou menos terrífico. Era uma prova de coragem a ida nocturna à retrete, exterior à casa. Agora tudo se congrega dentro de casa, até ...os dejectos!!!

Ah, como a Vida mudou...

jv disse...

Daniel, a mãe do teu padrinho, era minha bisavó e chamava-se Maria José, ainda convivi com ela.
A narração que fazes no conto, da cova, onde meu avô e o seu irmão, foram lá deitados em bébés foi-me tantas vezes repassada, de tal maneira e tão pormenorizadamente,geralmente acompanhada por outros relatos, em vários contextos,quer por minha avó, quer por minha mãe, que criei no meu imaginário uma imagem tão forte que ainda hoje era capaz de indicar um local exacto, onde, pelo menos uma vez,isto foi suposto acontecer.
Claro,que para outros factos, ainda haverá hoje vários testemunhos válidos «sobre a verdade das coisas» que tão bem nos contas e que são de facto um verdadeiro documento histórico, dum passado recente que pela sua dureza extrema,poderá parecer tão longíncuo para as novas gerações, como afirma José Augusto Soares no seu comentário.
Realmente assim era.

Daniel disse...

Mar de Bem
Pois é, querida amiga, essa é daquelas metáforas que eu escrevo quase só para mim, mas na esperança de que alguém as perceba. O não saber que "mistério" é o nome dado no Pico ao que aqui normalmente se diz pedra-queimada, e que Gaspar Frutuoso chamava "biscoito", que prevalece na Terceira, não prejudica de modo algum a compreensão do texto. Explicá-lo quebraria o ritmo sem necessidade. Obrigado por teres entendido.
JV
Com que então és tu! Que bela surpresa! Deixa-te ficar JV, que já se percebera que és gente boa, do melhor que há. Sabes bem que sempre foste assim julgado cá em casa.
Os teus primos (afastados), Dr. Jim Mello e Dr. Craig Mello, vão estar cá na Maia num dos dias entre seis e dez e Julho. Talvez haja um jantar com os parentes, e tu, obviamente, estarás na lista.

Mar de Bem disse...

Fiquei a pensar na cova feita na terra para albergar o bébé...
Pois então, esta gente era sábia bastante para perceber o que era isolamento térmico!

Nas arquitecturas vamos descobrindo e aprendendo coisas sempre novas, sem serem novas. Já usei jardins em tectos, porque a camada de terra isolava de tal maneira, que durante o dia era fresco no interior da edificação e à noite se prolongava o calor armazenado. Por isso sempre fui apologista de edifícios enterrados sob jardins. Que conforto e que poupança de energia!!! (Mas, cuidado, há outras valencias a ter em conta. Não é enterrar por enterrar)

Quão sábios eram nossos avós aproveitando tudo o que a Vida lhes ensinava!

José António da Silva Anónimo disse...

Mais uma homenagem ao delírio das borboletas e à beatificação da miséria. Ou será um postulado meditabundo sobre a felicidade do pão de milho?
Quem pergunta não ofende, embora saiba que isso perturba e irrita sobremaneira a pequenita escola do elogio mútuo que tanto exulta por aqui. E eu que nunca pretendi ser aqui um motivo de inspiração para 40 e tal sub-comentários!!

Unknown disse...

Embora vivendo fora dos espaços das águas açorianos, as histórias «das águas e do rebentamento delas» não diferem muito umas das outras, tratando-se sobretudo de meios onde os recursos de sobrevivência são parcos.Ainda hoje haverá destas estórias até onde há Terra.Na minha infância e adolescência convivi com mundos destes e é bom recordá-los aqui pelas tuas análises e pelas dos comentadores que te visitam.
Um forte abraço, amigo!

Mar de Bem disse...

"Mais uma homenagem ao delírio das borboletas e à beatificação da miséria."

Será que esta criatura só sabe dizer isto?
Vexa só sabe criticar? Exponha algo de bom, algo que seja construtivo!

Estive olhando os seus comentários e descobri que nenhum deles me ensinou o que quer que fosse. Homem, sei que quer dizer algo, que tenta entrar em diálogo, quer por força fazer parte desta irmandade (por isso vem até aqui), mas só consegue grunhir.

Vamos fazer um exercício de descompressão, porque você é terrivelmente tenso. Vamos tentar perceber o que é este mundo e o que são as pessoas. Você tem que perceber que, se o seu nariz, olhos e boca o identificam por serem diferentes dos dos outros, também tem de entender que cada criatura é um mundo. Todos são e pensam de modo diverso. Por isso este mundo é deveras interessante. Agora diga-me: você queria que nós pensassemos e fossemos como você? QUE TRISTEZA!!! Por acaso descobrimos sensibilidades semelhantes e por isso nos amamos. O seu problema, homem de Deus, foi ter descoberto que este amor que nos une, está a anos-luz de si e que talvez nunca venha a sentir e a partilhar tal dom de Deus. Homem, relaxe! Talvez ainda a sorte lhe sorria...

Estou deveras preocupada consigo, porque "não enxerga além da moldura" (como dizia a minha filha, aos 14 anos) e isso não é um bom augúrio...

Daniel disse...

Mar de Bem
O povo é sábio. Os sábios é que muitas vezes não sabem disso.
João
Deixa-te de patetices. Mas, se elas te fazem feliz, fico feliz por contribuir um pouco para a tua felicidade.
Mar de Bem
O tipo se calhar pensa que inventaste esse nome, que se trata de um disfarce mal enjorcado como o do nome com que se apresentou hoje.

jv disse...

Daniel, sempre pensei que estava por ti identificado.
Agradeço tua observação, sempre me considerei da tua casa, embora actulmente poucas vezes apareça, a verdade é que,como dizes noutro contexto,sinto perfeitamente que nunca cheguei a sair de lá, pois foi onde de certa maneira verdadeiramente me «formei» e onde me sinto muito ligado afectivamente.
Fiquei surpreso como o meu parentesco à família Mello, de qualquer maneira se eles são «primos» da Maia, claro que forçamente terão de ser nossos primos. Tenho relatos de acontecimentos da relação das nossas bisavós, que abrangem directamente a minha família.
Um grande abraço.
José Fernando.