Vinha de tempo parado na sua cara só rugas, no seu cabelo só branco. Havia já longos anos que não mudava de aspecto pois que não tinha mais pele por onde entrar novo rego do velho arado do tempo, nem lhe podia ir mais neve por sob o sujo chapéu. Tinha um saco, um bordão, sapatos sujos, capote, e alguém chegou a dizer, com medo e algum desejo de a suspeita ser verdade, que aquele velho de esmola era Samuel Bolibete...
Batia a todas as portas e levava de muitas delas uma fatia de pão. E enchia o saco, com as consciências descarregadas nesse gesto obrigatório de cumprir a caridade. De vez em quando, a alguém dava para pensar que ao homem o pão não basta. E lá ia, em desagravo, um chicharrinho frito, uma unha de queijo branco, uns seis vinténs por alma de mil defuntos...
O velho arcava com tudo, o dado e o negado, subia a Maia como quem poupa as passadas, como se soubesse que em cada uma delas se derramava mais uma gota de vida, e fazia o primeiro descanso parado na Fonte Velha. Escolhia uma fatia mais branda, ia ao chicharro ou ao queijo se por ventura os havia, e com profundos goles de água fresca ganhava alento para subir o caminho. Pesava-lhe a carga e os anos – muito mais estes que aquela – e ia deixando, pelas ladeiras de vinha, o pão esfarelado entre os seus dedos trementes.
Quando se o soube, começou a soar como blasfémia a repetida e cansada “Uma esmolinha, pelo amor de Deus.” As consciências, tranquilas por tanto pão esperdiçado, puderam recusar sem remorsos “Perdoe, pelo amor de Deus.” E assim, com Deus à mistura do que se dá e se nega, lá ia o pobre vivendo debaixo do mesmo Sol, molhado pela mesma chuva, que a todos dão o sustento.
Do livro Sobre a Verdade das Coisas (esgotado)