domingo, 3 de janeiro de 2010

Magos, inocentes e fuga para o Egipto

Adoração dos Magos (Grão Vasco)

(Publico este texto especialmente dedicado à Mariana)

Os evangelhos não foram uma espécie de biografias de Jesus, escritas à maneira moderna. Talvez resultem de pequenas pregações avulsas que circularam entre os primeiros cristãos. Passando de mão em mão, copiados e recopiados para chegarem ao maior número possível de crentes, facilmente terão sido como que “contaminados” pela piedade dos copistas. Estes poderiam, por exemplo, ter recorrido a passagens do Antigo Testamento para completar a narração de São Mateus. O método estaria de acordo com o que os exegetas judeus faziam desde o último século a. C., uma certa forma de analisar os Livros Sagrados e sua interpretação total ou parcelar. A cada interpretação dá-se o nome de “midrash” (“midrashim”, no plural hebraico).

Para perceber melhor este método e sua intenção, veja-se o que acontece no início do evangelho de São Mateus. Em Oseias começa assim o capítulo 11: “Quando Israel era ainda menino, Eu amei-o, e chamei do Egipto o meu filho.” No próprio evangelho vem esta referência explícita: “Assim se cumpriu o que o Senhor anunciou pelo profeta: Do Egipto chamei o meu filho.” A partir desta ideia, seria necessário criar o cenário que teria obrigado a que a Sagrada Família, à semelhança de várias personagens do Antigo Testamento, se refugiasse naquele país. Aparece então a muito conhecida história da perseguição de Herodes a Jesus. Os magos vindos do Oriente representariam a universalidade do reino messiânico, e o choro das mães dos meninos assassinados seria como que um eco do que disse o profeta Jeremias, pensando no sofrimento dos habitantes do Reino do Norte, massacrados ou exilados pelos assírios: “Ouvem-se, em Ramá, lamentações e amargos gemidos. É Raquel que chora, inconsolável, os seus filhos que já não existem.”

Diz S. Mateus, com alguns erros na citação: “Cumpriu-se então o que o profeta Jeremias dissera: Ouviu-se uma voz em Ramá, uma lamentação e um grande pranto: É Raquel que chora os seus filhos e não quer ser consolada, porque já não existem.”

Este tipo de recursos de que os evangelistas se serviram para preencher lacunas, ou para reforçar o sentido da mensagem que pretendiam transmitir, não apaga de modo nenhum o fundo histórico dos evangelhos. O essencial dos factos narrados ou dos ensinamentos de Cristo permanece inalterado. É pouco relevante, por exemplo, que Jesus tenha nascido em Belém ou em Nazaré. Ou que tenha voltado a esta depois da apresentação no Templo, como diz São Lucas, ou fugido para o Egipto, segundo São Mateus. O importante é Ele ter vivido entre nós. Como é igualmente pouco relevante se o Sermão da Montanha foi dito numa só pregação ou se é o resumo da doutrina de Cristo feito por S. Mateus.

7 comentários:

mariana disse...

Um texto para mim?Estou tão feliz porque nunca tive um presente destes e não sei se mereço. Já mostrei aos meus pais.Muito obrigada pelo que me ensina de tanto.
Muitos beijinhos.

jv disse...

Daniel, sabes muito bem que este terreno que pisas está minado e é muito difícil passar por ele incólume, mas agrada-me muito a maneira como abordas este assunto, desmistificando o que terá sido durante muito tempo tabu. Penso que actualmente não há alternativa para outro tipo de abordagens que não comportem outra leitura que não aquela que se enquadre razoavelmente na história de então, e não simplesmente naquela para que se «cumprissem as escrituras».
Eu pessoalmente não gosto de abordar publicamente estes assuntos, mas desde muito novo que
que me habituei a reflectir neles
e tentei ser sempre o mais coerente possível no lidar com eles e sabes bem que a coerência tem por vezes um preço muito elevado. Pudesse eu acreditar, como muita gente que conheço(que não tem dúvidas) e de certeza que seria feliz.
Lembro-me uma vez de te abordar e de comentar contigo, porque eras uma referência muito importante para mim, que gostava tanto de ter
a tua racionalidade, a tua fé e de acreditar como tu e que não necessitaria de mais nada para que minha vida pudesse ter total sentido, mas a tua resposta, porque sentida e sincera « eu também tenho muitas dúvidas » me recolocou, penosamente, na minha angústia inicial.
Um abraço.
José Fernando.

Daniel disse...

Mariana e José Fernando
Tinha dado ontem uam resposta aos vossos comentários, mas houve um curto-circuito cá em casa no momento em que ia publicar. Como já estava cansado, não repeti essa resposta.
Dizia-te, Mariana, que por te teres mostrado interessada no tema eu resolvera oferecer-te esta leitura. E a ti, José Fernando, dava uma explicação que posso resumir no facto de a Igreja só muito recentemente ter disposto de investigações sérias, enquanto que os primeiros transmissores da mensagem cristã eram normnalmente pessoas bem intencionadas (mães, catequistas) mas de pouca cultura religiosa. Como muitos padres, aliás..

samuel disse...

Essa conclusão será um exclusivo para quem tem fé... e deixa-me dizer que nem será para todos.
Para os outros é apenas mais uma achega para consolidar a convicção de que as "Sagradas Escrituras" não passam de um rendilhado, mais bonito aqui, mais emaranhado ali... de estórias "convenientes". É assim em todas a "Sagradas Escrituras" de todas as religiões, segundo parece.

Abraço.

Daniel disse...

Samuel, esta é a tua opinião, e obviamente que a respeito. Tanto mais que acrescentas aquele "segundo parece"...
Um abraço.
Daniel

samuel disse...

A réstia de uma dúvida sempre foi mais excitante do que os assuntos acabados. :-)

Abraço.

Daniel disse...

Sem dúvida, Samuel. Por isso é que a fé dos que vaqcilam é mais desafiadora do que a dos "santos".
Um abraço.
Daniel