quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A Janela

Fotografia de Carlos Sousa

(Texto extraído de uma novela que anda por aí.)

Foi pela casa da Rita que Manuel Cordovão começou a tentar manter a aldeia com ar de estar ainda viva, ou pelo menos em condições de receber a vida, se a vida voltasse algum dia a precisar de abrigar-se nela.

Estava com um vidro partido, na janela onde Rita esperou muitas vezes o pôr do Sol e o namorado. E em algumas dessas muitas vezes Manuel vira-a à espera, e pensara em como seria bom se a janela fosse outra em outra casa, e essa outra casa fosse a da Graça e na janela fosse ele o esperado. Mas o tempo de isso ser possível passara havia anos, e, quando o tempo passa, o milésimo de segundo mais perto no passado está infinitamente mais longe que mil anos no futuro. Podiam ter-lhe acontecido alguns remendos na alma, mas nada mais. Com a Rita, por exemplo.

Na pressa com que tudo começou a acontecer em mudança na aldeia, chegou um dia em que se apercebeu de que a Rita era a única rapariga solteira e sem namoro. Mas talvez tivesse estragado tudo com aquele maldito feitio de ser impulsivo no pensar e ponderado em demasia no agir. Trocaram uns sorrisos de vez em quando. O velho Simeão, vizinho dela, sabedor dessas coisas de sentimentos retribuídos, disse-lhe que tinha a certeza de que ela gostava dele. Fariam um bom par, de que estava então à espera? De nada, um raio o partisse. Rigorosamente de nada, porque foi isso que lhe sobrou quando viu o Carlos, um rapaz da Aldeia Nova do Vale, pela primeira vez a conversar com a Rita em jeito de namoro. O mal fora ter pensado demasiado se gostava dela porque gostava mesmo ou se era por não haver outra por perto.

Estava na palheira, acabando a ordenha, quando a Rita aparecera, encostando-se primeiro ao umbral e mandando um pouco mais de sombra lá para dentro. Olhou-a, e viu o Sol, começando a avermelhar, que lhe desaparecia como uma auréola por detrás do laço da cintura. Ela disse: “Venho convidar-te para o meu casamento.” Depois deu um passo para dentro e meio para o lado, apoiando as costas na parede. Manuel levantou-se e disse, quer dizer não disse nada, porque aquilo era o mesmo que nada ter dito: “Então já vais casar!...” Foi andando devagar em direcção à rapariga, e sentiu de repente um enorme desejo de a beijar. Teve um pressentimento, uma quase certeza, de que ela percebeu isso e o desejou também. Chegou a centímetros dela, que não mexeu o corpo nem desviou o olhar.

Parou assim, fixando-a, como que fascinado. E a Rita igual. Então pensou que ela iria casar por aqueles dias. Que, quando lhe acontecesse zangar-se com o marido, ou por qualquer razão tivesse razões de se arrepender do casamento feito, imaginaria que talvez tivesse sido mais feliz com ele mesmo. A fruta que não se prova é sempre a melhor, quando a que saboreamos tem bicho. Pôs-lhe a mão no ombro. Mas estava era como que a defender-se a si mesmo de encostar o seu corpo ao dela. “Desculpa ter-te sujado. Foi sem querer.” Não fazia mal, estivesse descansado. “Que sejas muito feliz.” Havia de fazer o possível. E foi-se embora com os primeiros sinais do crepúsculo. Ia a meio caminho entre a palheira e a casa quando Manuel disse: “Eu não vou, Rita. Não posso.” Ela parou, voltou-se para ele e perguntou: “Não podes ou não queres?” Confirmou “não posso”, e a rapariga retomou o ir-se embora sem protestar mais do que num fingido “está bem”.

11 comentários:

jv disse...

Daniel,chegamos a uma altura, que percebemos que as verdadeiras oportunidades que a vida nos forneceu, não foram assim tantas, e muito menos foram, aquelas que verdadeiramente aproveitamos, especialmente para aqueles que fizeram das suas vidas uma racionalização completa,até das emoções.
Que tristeza...

Ibel disse...

Adoro estas tuas histórias.Não tenho muito para comentar porque o jv disse tudo.Mas sente-se o coração apertado, como se todos tivéssemos experimentado estas vivências.E fica-se a gostar do Manuel e lamenta o leitor a frustração da Rita...

Mariana disse...

O que aconteceu depois? Acaba assim?Conte, por favor.

Anónimo disse...

"Não podes ou não queres?" provavelmente não podia por muito a querer, já que "o tempo de isso ser possível passara havia anos".
O tempo, sempre o tempo de fazer/dizer a coisa certa no momento próprio e na ausência dessa oportunidade, disperdiçada, o amargo de boca, a alma acanhada que todos nós já sentimos, nas mais variadas situações...

Beijinho

Francisca e Mafalda

Unknown disse...

Quantas criaturas não tiveram já infortúnios como este...talho do destino?Amores de semente aziaga?Amores conservados/abrigados para sempre?
Quem sabe,o tempo...?O tempo,quem sabe?
(Hoje o tempo,meu amigo,ofereceu-me mais um aninho e é sempre bom vir aqui escutá-lo, vê-lo,senti-lo ...).Estória amarga e doce,como gosto.
Saudoso abraço.
Dica

samuel disse...

Quem é que pode querer uma coisa assim?

Abraço.

Daniel disse...

Per tutti (como diz por vezes o Samuel no seu "Cantigueiro")
Só pus este capítulo aqui para justificar a apresentação da excelente e nostálgica fotografia do Carlos Sousa. Que aproveito para dizer que é um amigo do coração (tratamo-nos um ao outro por "irmigão", palavra que ele criou), um compositor e director de coro magnífico (sucedeu ao lendário Dr. Edmundo Machado de Oliveira na direcção do orfeão do seminário de Angra, por ele mesmo escolhido), e fundou e dirige o Belaurora, já considerado no estrangeiro como um dos melhores grupos de música com raiz popular da Europa.
Quanto à curiosidade da Mariana, talvez eu traga mais algum capítulo da novela.
Abraços.
Daniel

Unknown disse...

Para a Eduarda, que fez ontem mais uma Primavera em violetas,deixo aqui um grande beijo, numa janela emoldurada de sonhos que eu espero que ela cumpra, porque a vida a talhou para ser maior que ela(em altura, claro!)
É bom ser tua amiga, mana!

Daniel disse...

Então deixo o meu abraço também à Eduarda. Que sejas sempre muito feliz, e por muito tempo, amiga!
Daniel

Unknown disse...

Muito obrigada,amigos,pelos votos que me dirigis.
Abraço

Mar de Bem disse...

(continuo sem computador...)
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Que bela esta janela!

De risco limpo, ortogonal, sem molduras ou adereços, um vidro embutido naquela parede tosca, rude e verdadeira, pois que, nem revestimento tem. A limpidez deste desenho contrasta com a poeira do Tempo, com a teia de aranha que emoldura, na janela, aquele candeeiro que já fora a petróleo... e assim a guardou o PASTOR DAS CASAS MORTAS...