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Craig Mello e família na igreja do Divino Espírito Santo, Maia
(fotografia gentilmente cedida por
Veraçor)
Ninguém tem memória de mortos ou feridos na freguesia por causa de terramotos, e há muros velhos com décadas ou séculos, casas feitas de pedras pequenas, muitas trazidas do calhau da Gorreana ou de outros lugares da costa, e coladas umas às outras com barro, que se mantêm de pé apesar dos tremeliques do chão. Mas um tremor de terra apavora. Se é mais forte do que o costume, uns momentos antes de acontecer os cães põem-se a ganir e a correr desorientados, ou as vacas procuram fugir, sem saberem de quê e para um lugar que não sabem onde. Os ultra-sons que precedem a agitação sensível da terra ferem os seus ouvidos, de modo semelhante a como são feridos os nossos por unhas a raspar numa parede de cal ou uma navalha a alisar um folhelho, e esse arrepio provoca-lhes uma sensação de mal-estar inquietante ou um medo irracional. Um tremor mais forte podia fazer também com que se abrissem as portas das tabernas, fosse a que horas fosse da noite adormecida violentamente desperta, para que os homens, com a desculpa de matar o bicho do medo, acorressem a matar o outro, o da sede sempre pronta a emborcar um calzinho de aguardente.
Talvez nada como um tremor de terra devolva aos homens, se a têm esquecida, a consciência da sua fragilidade. O tremor de terra é breve enquanto acontece, mas tarda muito a passar depois de ter acontecido, e é a memória que o faz longo. Uns segundos apenas (dez... doze... catorze...), mas ficam as suas sensações recordadas, revividas: o chão que se sacode debaixo dos pés, as portas e as janelas que rangem, a armação da casa que ameaça desmoronar-se como ossos de um monstro gigantesco a estalarem, o tecto que se move em ondas invertidas, as chávenas que se balançam com o som de campainhas, uma leve vertigem, o urro final em que se julga que tudo vai desabar sobre a gente e que a gente se vai misturar aos escombros de um mundo desfeito. E, de repente, a quietude total, enquanto se vão calando as campainhas, como se um tropel de cavalos enlouquecidos se tivesse aproximado num galope subitamente interrompido. A memória revê cada vibração por sua vez, ouve de novo cada som em separado e não como uma sinfonia fantástica, de tubas e contrabaixos diabolicamente desafinados à mistura com pequenos címbalos que escarnecem num riso sincopado e sem ritmo, ao mesmo tempo que sabe-se lá quantas batutas de cristal se partem sucessivamente. E o temor verdadeiro, maior que o perigo quase sempre, é entre dois tremores, o que pode demorar muitos anos.
Vendo os picos altivos, os sólidos rochedos, a ilha que resiste a todas as fúrias marítimas, de ondas que mudam penedos do seu lugar, e de ventos que espatifam milharais, que queimam todas as culturas, que tornam castanhas as folhas das árvores; a ilha que não se esboroa com os dilúvios que fazem germinar os trigos antes da ceifa – ninguém entende como pode haver forças capazes de a sacudirem como se ela fosse uma peneira de coar o farelo para fazer pão da rala. Só Deus, acredita-se. E, por isso, um outro nome do tremor de terra é castigo, com a explicação popular de que nas profundezas da Terra há cavernas imensas onde se desprendem enormes rochas, fazendo estremecer tudo de tal maneira que o solo estremece também quando acontecem tão descomunais derrocadas. Embora modificada, dizendo rochas que se soltam em vez de espíritos de ventos que correm de um lado a outro em busca de uma saída, a lição de Aristóteles permanece de geração em geração há vinte e três séculos, e não será esquecida por muito tempo ainda.
Fez anos nessa mesma noite que António sentiu o maior tremor da sua vida, estava ele na igreja, uns minutos antes de começar o Te-Deum. Acabara de entrar com a mãe e as irmãs e ainda rezava saudando o Santíssimo exposto. Percebeu primeiro uma vibração das tábuas do estrado debaixo dos joelhos, como a de um sobrado quando alguém, sentado numa cadeira e com a ponta do pé assente no chão, agita a perna de cima para baixo em movimentos muito rápidos. Não entendeu de imediato do que se tratava e, olhando à volta, notou o mesmo ar de admiração em rostos que se viravam também para um lado e outro à procura de explicação. Então as grossas pilastras, que dois homens mal conseguem abraçar, foram sacudidas violentamente, com a nave da direita a parecer que tombava para sul e a da esquerda para norte. Os lustros, com as velas todas acesas, balançaram num chocalhar de pingentes, deixando rastos de fumo e fogo a riscar o ar. Um ronco tremendo subiu, como se o chão estivesse a abrir-se, as pilastras foram sacudidas com mais violência para fora e para dentro, o arco da capela-mor torceu-se como roupa molhada a ser batida pelas lavadeiras, os escarradores chocalharam nas lajes, o petróleo respingou dentro dos candeeiros, e um estrondo abalou a igreja desde os fundamentos, provocando um estoiro no tecto, ao mesmo tempo que uma nuvem de cal, que pareceu por momentos ser a abóbada a desabar, caía sobre o povo em pânico, que gritava aterrorizado, com algumas mulheres a saltarem para cima das grades do cruzeiro ou a subirem para as cadeiras ainda vazias que pertenciam às senhoras de estatuto e lhes marcavam e reservavam presença e comodidade junto ao altar do Senhor. Fugiam do medo que vinha do chão como se o perigo não estivesse no alto. António continuava de joelhos, sem tempo ainda para ter medo, e, quando viu cair a cal, julgando que era o tecto, apenas pensou: “agora é que eu vou saber como se morre num tremor de terra.” Dito isto para si mesmo, verificou que a nuvem branca fora apenas cal e que tudo permanecia tão seguro e quieto como se nada de anormal se tivesse passado. Mas as pessoas que vinham na rua a caminho da igreja mal se aperceberam do tremor. Houve quem se lembrasse de ter ouvido ranger uma cancela ou de um qualquer outro ruído estranho, mas sem ligar tais sons à sua causa. E não mais do que isso.
(Texto extraído do romance A Terra Permitida)