terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Pão Permitido


O Moinho, Rembrandt

Elvira voltou do mato sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Porque o moleiro lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo trabalho.

Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:

– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?

– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.

Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, levantou os olhos para o tecto negro do fumo de muitas cozeduras e da lareira acesa quase todo o dia. E exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:

– Ainda há gente boa neste mundo!...

Por ser a mais velha, cabiam a Elvira os trabalhos a fazer longe, porque abaixo vinham duas irmãs e só depois, com sete anos apenas, o único macho da família. Por isso ia ao mato por lenha, ou à ribeira do Calhau lavar a roupa como as mulheres casadas, ou ao moinho, para poupar a meia maquia devida pelo transporte do grão no lombo das bestas do moleiro.

O pai morrera de fome, ou dos maus tratos dela, porque muitos anos a pouco mais do que pão de milho e pimenta, com algum chicharro de vez em quando, não aguentaram com força e com vida os braços do cavador que fora, até lhe dar em tossir e escarrar sangue. De nada lhe valeu comer muito agrião cru e beber espuma de sopa de caracóis acabados de apanhar, porque alimentar-lhe o corpo a carne de vaca, ovos e leite era coisa que nem pensar.

A mãe já lhe chorava a morte mais que certa, quando teve de fazer pela vida e ganhar como podia ou como queriam pagar-lhe. E louvava a Deus e aos homens por esse pouco, embora não ficasse atrás de nenhum a amarrar vinha, a semear, a sachar e em tantos outros serviços em que importava mais o jeito do que a força. Secou as lágrimas pelo defunto, ao sol de Julho, ceifando. Fosse Deus louvado e feita sempre a Sua vontade. Ainda que não percebesse como poderia louvar-se Deus por tão grande e outras penas, às vezes choradas com lágrimas também de raiva.

Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Só podia salvá-la o amigo, ou amante, ou namorado, fosse lá o que fosse que era para ela o moleiro. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão. E a mãe aflita, a julgá-la doente – “não me morras, como teu pai, que fico sem ninguém que me valha” -, e ela feita vítima e carrasco de si mesma, sem entender sequer se tudo acontecera por desejo seu também, se apenas pela miséria de poupar uma maquia.

Batia-lhe o coração numa galopada louca, nem que tivesse vindo a correr com a carga às costas saltando pedregulhos e valados. O rapaz mostrou-se logo disposto ao que já se ia tornando um costume, mas, vendo-a naquela tristeza assustada, perguntou-lhe a causa dela.

– Vou ter um filho, José!...

– E que tenho eu a ver com isso?..

Que havia de dizer? Como havia de dizer o que tinha de dizer? Onde lhe estava a saliva que lhe soltasse a língua e os lábios, secos, secos, como pedaços de barro em Agosto? E o coração pedra viva... Disse:

– José, tens de casar comigo!..

À espera, outra vez. Ele agora com um ar de ódio, que a assustou ainda mais.

– Casar contigo?!... Sei lá quem te fez isso! Andas por todo o lado, como uma cabra!..

De repente, o medo fez-se raiva.

– Não sabes?!... Sou uma cabra, seu estupor?... Não sabes que fizeste de mim o que quiseste? Eu mato-te, excomungado!

Atirou-se a ele com a fúria de uma alcateia que defendesse as ninhadas. Tentou bater-lhe na cara, arranhá-lo, mordê-lo, enquanto o rapaz, com a cobardia da culpa, se defendia com pouco êxito. Quando, por fim, conseguiu pegar-lhe nos pulsos e dominá-la, disse:

– Não grites, que ainda te ouvem!

Ela mordeu-lhe a mão direita com tanta força que sentiu o sangue nos dentes.

– Maldita! – Foi o grito de dor e, logo em seguida, uma bofetada.

Elvira abaixou-se, pegou numa pedra e atirou-lha. Falhou o alvo por pouco, e a pedra foi cair longe, rolando pela encosta. Tentou pegar noutra, mas ele saltou-lhe para cima e imobilizou-a no chão. E falou-lhe ao ouvido:

– Não chores. Desculpa. Fiquei fora de mim. Não esperava uma coisa dessas. Eu gosto muito de ti.

Elvira percebeu como o contacto do seu corpo excitava o rapaz. E não sabia se a verdade era a de antes se a de agora. Perguntou:

– Casas comigo, José?

Ele respondeu que sim.

– Olha que o senhor padre diz que está na Bíblia que um homem tem de casar com a mulher com quem fez o que fizeste comigo.

– Deus me mate, se eu não casar contigo!

Pela primeira vez, Elvira sentiu também desejo verdadeiro. Ficara mais calma com a promessa do rapaz. E não podia acontecer mal que não estivesse feito já.

– Vamos para o moinho, que alguém pode ver-nos.

Passou a semana ainda em sobressaltos nocturnos e ansiedade constante durante a vigília, mas agora com alguma esperança. O pior seria quando tivesse de contar tudo à mãe. Sabia Deus com que fúria ela iria reagir, mas pior, muito pior, seria se José não quisesse casar, se a tivesse enganado. Não podia fazê-lo, não lhe faria nunca uma desfeita dessas, que a desgraçaria para o resto da vida.

Desgraçou-a... Devia casamento a uma prima, tanto como a ela e havia mais tempo ainda. Quando Elvira soube disso, pela boca da própria mãe, que lhe deu a novidade e jurou ser capaz de a matar, ou a qualquer das irmãs, se lhe acontecesse uma desgraça semelhante, fugiu para casa da tia Ascensão, a única que poderia valer-lhe e talvez compreendê-la. Era a tia mais velha da mãe, e vivia sozinha, abandonada desde os vinte anos pelo marido, que a deixara com um filho de meses e fora procurar fortuna no Brasil. A tia não soube sequer se ele chegara vivo ao destino, porque nunca teve notícias suas. Viveu necessitada de pão e de afecto, o que lhe custou a vergonha de mais um filho. Acabaram ambos por emigrar para a América, terra também de esquecimento, mas que só o foi para o filho legítimo, talvez envergonhado dos passos mal dados da mãe. O outro escrevia regularmente e mandava algum dinheiro.

Elvira só havia de voltar a ver a mãe, que nunca lhe perdoou, no dia da sua morte. Quanto à filha, que no baptismo recebeu o nome de Helena, não chegaria a ver nem mãe nem avó, nem cor ou coisa nenhuma, porque nasceu cega, o que ninguém percebeu nos primeiros tempos, porque não se notava defeito nos seus olhos escuros, quase negros. Castigo de Deus, acusava-se, que assim mostrava o Seu poder na inocente criatura, como escarmento para todas as possíveis pecadoras desta vida de enganos.

Acabando-se dez anos de casamento, morreu a mulher do pai da sua filha. Elvira ficara a viver em casa da tia, de quem cuidou até à hora da morte, e que lhe deixou aquele tecto para ter onde abrigar-se. Uns meses depois do início da sua viuvez, com cinco filhos divididos por este mundo e o outro – três cá e dois lá –, José foi rogar-lhe, pelo amor de Deus, que casasse com ele. Negou-se-lhe com desprezo, senhora do seu triunfo ao fim de tanto tempo. “Aqueles pequenos não têm quem cuide deles...” Finalmente, a pedrada atingira o alvo.

Adaptado do romance A Terra Permitida (esgotado)

14 comentários:

Unknown disse...

Daniel,

A Elvira, a Helena, a tia Ascensão, a rapariguinha na fonte que o vento envergonhou - as mulheres, os seus sofrimentos, as suas dores e o mundo aos ombros que têm de carregar...
Gostamos especialmente da forma como pinta estas mulheres reais e das estórias sentidas que nos conta.

Beijinho

Francisca e Mafalda

Mar de Bem disse...

Ah, grande Elvira. Aguentaste sòzinha, arrostando todos os anátemas que aquela sociedade te impôs. Talvez não andasses de cabeça erguida, mas quando, ao fim de 10 anos, conseguiste mostrar, a quem te tinha desprezado, que eras senhora de ti mesma e...pagaste-lhe na mesma moeda, talvez o bichinho da vingança te tenha aliviado e te tenha dado um secreto prazer de poderes pagar-lhe com a mesma moeda!
Pois, eu não devia dizer isso, mas a natureza humana também precisa dessa desforra. É uma questão de "amor com amor se paga", porque isto não é vingança, é justiça. Também ela nunca poderia confiar no homem sem carácter que a seduziu e abandonou.

E agora te pergunto, Daniel, será que a mãe era assim tão dura para não lhe perdoar, ou as convenções sociais não lhe permitiam ter outra reacção?

Quando a minha filha começou a crescer, disse-lhe que no meu tempo a pior coisa que podia acontecer a uma rapariga era engravidar. Lá no Faial houve 2 ou 3 raparigas que se enforcaram por causa da vergonha. Isto é tão cruel!!!
(claro está que disse à minha filha que se isso lhe acontecesse eu estava presente para a ajudar naquilo que ela resolvesse).

Agora os tempos são outros e talvez já nenhuma jovem dê cabo da sua vida. Já viram que desperdício???

jv disse...

Na verdade,nesta história, foram vários os alvos atingidos, e todos sem a dignidade da última pedrada, num tempo, todo ele indigno, na sobrevivência a que se sujeitavam uma grande parte das pessoas.
Como já referenciei, algumas vezes, a tragicidade das tuas histórias, porque reais e demasiados verdadeiras,dilui-se na beleza da tua escrita e apesar da sua real evidência, a desgraça e a crueza da miserável condição de vida das tuas personagens perdem algum impacto, numa leitura menos atenta, de quem não presenciou, ou pouco contactos teve com essa dura realidade, onde se morria de fome,«ou dos maus tratos dela»
Ao ler o teu texto, avivam-se na minha memória alguma desta gente,perdurando a sensação de que muito dificilmente algum dia me esquivarei a estas pedradas.
Um abraço.
José Fernando

samuel disse...

Muita gente está sempre pronta a gritar a vergonha dos outros, possivelmente para tentar esconder a sucessão de vergonhas que é a sua própria vida. Felizmente, os tempos vão mudando...

mariana disse...

A minha bisavó teve de fugir da aldeia porque engravidou dum patrão que era casado.Tinha quinze anos.Foi metida numa casa de correcção até aos 21 anos e nunca mais soube do filho até sair de lá e depois foi para fora do Portugal.

Daniel disse...

Francisca
As mulheres suportaram talvez o lado mais negro dos tempos difíceis, o da humilhação. Por cada caso destes havia, claro, o parceiro macho. Mas este nunca sofria nada. Às vezes até era considerado uma espécie de herói.
Mar de Bem
A Mariana já deu um exemplo que te serve de resposta. Era assim...
JV
Não há poesia que disfarce o amargo que nos permanece na memória.
Samuel
Os piores e mais intransigentes moralistas são, muitas vezes, esses mesmos.
Mariana
Esta personagem minha não é real em concreto, mas é feita de muitas vidas reais.
Abraços.
Daniel

Ana Loura disse...

Tantos casos destes fazem parte do passado da nossa Ilha...tantos... e este tão bem contado.

Beijo, querido Amigo

mar-ia disse...

Temos de te agradecer por tão expressivo texto, que é um cântico de desagravo à mulher.
Aos poucos, as coisas vão mudando:
hoje, a legislação e a ciência dão uma preciosa ajudinha que contribui para a mudança de mentalidades. A averiguação da paternidade é obrigatória e os testes de ADN afastam muitas hesitações; por outro lado a partilha de responsabilidades parentais, aproveita a uma serenidade, do que antes era ressentimento.
São pontes frágeis, que permitem uma vertiginosa travessia que leva a um equilíbrio de felicidade na condição humana.
O processo é lento e nunca está completo.
Não se iluda quem pense, que a situação é irreversível! Ou que está concluída.
É por isso que estes retratos devem ser expostos de forma tão clarividente e hábil. E afectiva.
Discordo do JV, quando diz que a força sedutora da escrita do Daniel faz diluir o efeito da realidade. Pelo contrário, consolida e cimenta a dureza dela.

A vida é um circo de maldades e todo(a)s somos muito sentenciosos em relação aos outros. E prontos para atirar pedras.
Será um defeito cultural que carregamos desde o tal paraíso de onde alguns dizem que viemos???

Daniel disse...

Ana e Mercês
Esta Elvira foi uma daquelas personagens que de vez em quando se impõem ao seu próprio criador. Acabou por ter um papel bem maior do que eu imaginara para ela.
Abraços.
Daniel

Unknown disse...

Já aqui vim para comentar o texto uma quantidade de vezes, mas ando sempre a correr e adio sempre.
Tu sabes bem o que eu penso sobre tudo o que escreves e como é um consolo poder ter-te como amigo, não só pela beleza da tua escrita, mas também pela beleza de pessoa que ela desenha.
Quem não recorda histórias destas? Em que partes do mundo não se repetem casos destes?
Que rico espólio este,Daniel!

Daniel disse...

Que ricas amizades, Lia!
Obrigado, uma vez mais. Não apenas por seres visita habitual, mas também pelas tuas alunas e pelos teus alunos que cá aparecem com tanto carinho.
Um abraço.
Daniel

Unknown disse...

Um blog de altíssima qualidade.
Embora não pareça,esta história verídica vive-se ainda perto de nós, bem mais perto dop que se julga possível.Aina no ano passado, numa aldeia próximo de Viseu, aconteceu um caso semelhane a uma rapariguita muito pobre.O velhaco negava-se a confirmar a paternidade que depois foi obrigado a assumir, mas continua sem querer saber do filho para nada e a pobre, numa aldeia de poucos habitantes foi ostracizada pela família.Anda por lá aos caídos há-de levar mais tombos.Tem 17anos no corpo e muita pobreza e fome.

Jorge Lapela disse...

Recordações, invenções, verdades, que importa?
Partilho da opinião do Jv:
"Ao ler o teu texto, avivam-se na minha memória alguma desta gente,perdurando a sensação de que muito dificilmente algum dia me esquivarei a estas pedradas.
Um abraço.

Daniel disse...

Carla
Alguns dos melhores capítulos deste blog estão aqui na caixa de comentários. Por isso reparto o elogio com os amigos que cá vêm, embora agradeça como se fosse para mim somente. E a Carla acrescentou-lhe mais valor ainda.
Jorge
Os nossos piores remorsos são talvez por acções de que não temos culpa directa.
Abraços.
Daniel