Paisagem com canas (fotografia retirada do blog Bis Bis)
Ficaram os dois no canto sem que ninguém os contratasse. António, porque era muito novo, o José “Pinta a Pulga”, porque já era velho.
Aquela era a primeira vez que António oferecera o corpo para ser avaliado músculo a músculo, tinha muito tempo ainda para esperar que as coisas mudassem. Mas ao outro já iam recusando a oferta de vez quando, dias de ganho a menos a somar aos de chuva e de nada haver nas terras para ser feito.
– Um velho também come... – Foi o lamento do “Pinta a Pulga”. E meteu pela rua abaixo enquanto António ficava no canto a olhar os últimos homens que partiam para mais um dia de pão garantido. Vinte passos dados, se tanto, o “Pinta a Pulga” voltou para trás.
– Vou falar com o senhor Vicente. Pode ser que ele tenha a caridade de me dar trabalho hoje.
António debatia-se com a velha raiva que sentia contra o senhor Vicente. Via o pai trazido numa padiola, mal limpo o sangue da cabeça, e, uns dias mais tarde, a mãe, que não parara de o chorar ainda, toda vestida da cor da casa, a agradecer como grande esmola as últimas três maquias de milho que ele ganhara antes de cair pela Rocha do Tamujo. Mas o orgulho é um luxo para os pobres. A mãe e as irmãs tinham bocas para alimentar e corpos para cobrir, e António não era menos apressado na hora de ter fome, embora menos exigente no ano de vestir. Cuspiu o orgulho com a saliva e disse que sim.
– Não tenhas vergonha, rapaz, nem esmoreças. Tens a vida toda pela frente, ainda vais ser dos primeiros a serem escolhidos, não tarda nada. Eu é que vou cada vez para pior.
Fora isso que pensara, mas, quanto à vergonha, não era por ela que ia acabrunhado. Era por aquele orgulho sempre cuspido ou engolido, no silêncio dos pobres, sabendo que o senhor Vicente lhe contaria as horas uma a uma, os quartos de hora, até a noite preparar a cama onde havia de deitar-se o Sol. Tentou por isso uma desculpa para evitar a humilhação a que estava quase resignado a submeter-se.
- Mas o tio João já não pegou nos homens de que o senhor Vicente precisa?...
Referia-se ao capataz do senhor Vicente, que era sempre o primeiro a escolher os trabalhadores.
– Pois pegou. Mas o senhor Vicente é capaz de nos dar um jeito.
... E disposto a dar um jeito estava, mas só a um, ao rapaz, impondo a sentença de mandar o velho embora. António pensou que talvez o fizesse por remorso antigo, e lutou na indecisão de acompanhar o “Pinta a Pulga” no regresso triste, enfrentando o orgulho da sua raiva arrimado ao pensamento da necessidade da mãe, das irmãs e dele mesmo, e à vergonha de voltar para casa sem ter sujado o sacho nem derramado uma pinga de suor. O senhor Vicente tinha o cerrado das Canas Vieiras para cavar, mas tinha de ser bem cavado, fundo, e sentenciou que o “Pinta a Pulga” não podia fazer o serviço como ele queria. E, apesar de saber que António estava muito acostumado a trabalhar com o padrinho desde que o pai morrera, mostrou-se um pouco desconfiado também a seu respeito. António disse:
– Se o senhor Vicente quiser, cavo-lhe esta terra a trato.
– Olha que cinco homens cavam esta terra num dia. Podes levar sete ou oito que só te pago cinco, entendeste?
Entendeu e aceitou. E esfalfou-se de crepúsculo a crepúsculo, com a velha raiva sempre no fio do sacho, como se a cada cavadela pudesse atingir a alma do senhor Vicente.
Quatro dias bastaram para fazer o serviço que era feito por cinco homens num dia.
Na hora de pagar, o senhor Vicente mediu alqueire e meio de milho.
– E as outras seis maquias?
O senhor Vicente, em tom de justiça definitiva, bem lembrado de que aquele era serviço de cinco homens num dia, respondeu:
– Pensas que eu sou tolo ou quê? Não foi só quatro dias que trabalhaste? Aí tens.
António não encontrou modo de dizer a sua revolta, o seu desprezo. E foi o senhor Vicente que lhe despejou em cima:
– O que essa canalha me tem roubado! Um fedelho como tu cava-me a terra em quatro dias, e andavam para aí sempre cinco malandros a fazer ronha para aguentarem até às trindades!
António sentiu vontade de o esganar. Ainda disse, a medo:
– Mas o trato não era de me pagar como se fosse cinco dias?
– Isso era se levasses mais tempo a cavar. Ou querias ganhar cinco dias em quatro? Ou amanhã ganhavas o dia sem trabalhar porque eu já tinha pago adiantado?
António foi-se embora sem ter dito mais nada porque tinha as esponjas das lágrimas quase a rebentar-lhe nos olhos.
(Adaptado do capítulo VII de A Terra Permitida)
9 comentários:
Claro que este texto é ficcional,mas poderia perfeitamente não o ser, porque perfeitamente verosímil e perfeitamente enquadrado numa realidade, de quem tinha o poder, podia manipular, a seu belo prazer, a miséria do outro,que na luta pela sua sobrevivência se sujeitava a todas as indignidades ou ser totalmente ostracizado e como consequência ficar por sua conta e risco, às agruras do destino, sem que mais alguém lhe desse a mão. Quem se ousasse insurgir minimamente, contra um senhor,o preço a pagar seria, muito elevado, cruel e impiedoso.
O Daniel conta-nos muito bem isto, numa personagem, com quem convivi, muito de perto e por quem tinha um carinho muito especial, estou falar do «Tio Alfredo», do seu livro «Sobre A Verdade Das Coisas».
Os escritos do Daniel, são duma importância muito significativa para mim,funcionam quase como catarse, porque repõem alguma justiça, a quem nunca teve em vida,a possibilidade de ser ressarcido das injustas indignidades a que forem sujeitos.
Ao menos, hoje são heróis da nossa memória...
Um grande abraço.
José Fernando.
AI, QUE RAIVA!!!
Olá Daniel,
Esta frase nunca iremos esquecer "Mas o orgulho é um luxo para os pobres", não só porque já tinhamos constatado que assim é, ainda hoje, mas porque nunca teríamos encontrado forma tão "certeira" de dizer esta verdade.
O que escreve continua a ser, infelizmente, a realidade dura e humihante de muitos. E o que mais magoa é saber que tantos, apesar de terem trabalhado uma vida inteira, continuam pobres e nas mãos dos Senhores Vicentes desta vida.
Beijinho
Francisca e Mafalda
Conheci e conheço tantos Vicentes,Deus meu!
"Mas o orgulho é um luxo para os pobres".Como conheces bem eese mundo , Daniel e como a tua escrita se faz quase palavra bíblica.E sem interpretações simbólicas.É o real, é a vida, é o mundo dos homens de boa e de má vontade retratada a nu.
Estas são as histórias que devem continuar a ser contadas, até que os demónios sejam esconjurados da face dos Vicentes.
Caro Daniel
O seu conto faz-me recordar um Leitão, não dos que se comem ,mas dos que gostam de comer a carne dos pobres e de lhes beber o suor.
Este teu texto é uma extraordinária denúncia do que, ainda hoje, o patronato quer realmente quando fala de aumentos de produtividade. Para além, obviamente, de encher os bolsos, é a criação de novos tectos de exploração que, primeiro disfarçados de níveis de excelência, rapidamente passam a ser a média exigida. Há sempre quem, por ingenuidade ou absoluta necessidade, acabe por cair nessa armadilha.
Bela estória!
Gente amiga
Obrigado pela amizade e pelos comentários. E seja-me permitido responder com uma citação da epístola de São Tiago, escrita há quase dois milénios.
"A jorna dos operários que ceifaram os vossos campos, defraudada por vós, clama, e os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor."
Abraços.
Daniel
Uma história muito triste e tanta exploração.Há gente muito má.Por causa dela é que os meus pais emigraram.
Beijinho
Mariana, que bom ver-te por aqui. O meu pai também emigrou, no final da II Guerra Mundial, mas para muito mais perto, para a Ilha-Mãe dos Açores, Santa Maria. E no ano seguinte a minha mãe, a minha irmã e eu fomos juntar-nos a ele.
Beijinho recebido, beijinho retribuído. Deixo aqui o meu também.
Daniel
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