O Moinho, Rembrandt
Elvira voltou do mato sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Porque o moleiro lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo trabalho.
Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:
– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?
– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.
Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, levantou os olhos para o tecto negro do fumo de muitas cozeduras e da lareira acesa quase todo o dia. E exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:
– Ainda há gente boa neste mundo!...
Por ser a mais velha, cabiam a Elvira os trabalhos a fazer longe, porque abaixo vinham duas irmãs e só depois, com sete anos apenas, o único macho da família. Por isso ia ao mato por lenha, ou à ribeira do Calhau lavar a roupa como as mulheres casadas, ou ao moinho, para poupar a meia maquia devida pelo transporte do grão no lombo das bestas do moleiro.
O pai morrera de fome, ou dos maus tratos dela, porque muitos anos a pouco mais do que pão de milho e pimenta, com algum chicharro de vez em quando, não aguentaram com força e com vida os braços do cavador que fora, até lhe dar em tossir e escarrar sangue. De nada lhe valeu comer muito agrião cru e beber espuma de sopa de caracóis acabados de apanhar, porque alimentar-lhe o corpo a carne de vaca, ovos e leite era coisa que nem pensar.
A mãe já lhe chorava a morte mais que certa, quando teve de fazer pela vida e ganhar como podia ou como queriam pagar-lhe. E louvava a Deus e aos homens por esse pouco, embora não ficasse atrás de nenhum a amarrar vinha, a semear, a sachar e em tantos outros serviços em que importava mais o jeito do que a força. Secou as lágrimas pelo defunto, ao sol de Julho, ceifando. Fosse Deus louvado e feita sempre a Sua vontade. Ainda que não percebesse como poderia louvar-se Deus por tão grande e outras penas, às vezes choradas com lágrimas também de raiva.
Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Só podia salvá-la o amigo, ou amante, ou namorado, fosse lá o que fosse que era para ela o moleiro. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão. E a mãe aflita, a julgá-la doente – “não me morras, como teu pai, que fico sem ninguém que me valha” -, e ela feita vítima e carrasco de si mesma, sem entender sequer se tudo acontecera por desejo seu também, se apenas pela miséria de poupar uma maquia.
Batia-lhe o coração numa galopada louca, nem que tivesse vindo a correr com a carga às costas saltando pedregulhos e valados. O rapaz mostrou-se logo disposto ao que já se ia tornando um costume, mas, vendo-a naquela tristeza assustada, perguntou-lhe a causa dela.
– Vou ter um filho, José!...
– E que tenho eu a ver com isso?..
Que havia de dizer? Como havia de dizer o que tinha de dizer? Onde lhe estava a saliva que lhe soltasse a língua e os lábios, secos, secos, como pedaços de barro em Agosto? E o coração pedra viva... Disse:
– José, tens de casar comigo!..
À espera, outra vez. Ele agora com um ar de ódio, que a assustou ainda mais.
– Casar contigo?!... Sei lá quem te fez isso! Andas por todo o lado, como uma cabra!..
De repente, o medo fez-se raiva.
– Não sabes?!... Sou uma cabra, seu estupor?... Não sabes que fizeste de mim o que quiseste? Eu mato-te, excomungado!
Atirou-se a ele com a fúria de uma alcateia que defendesse as ninhadas. Tentou bater-lhe na cara, arranhá-lo, mordê-lo, enquanto o rapaz, com a cobardia da culpa, se defendia com pouco êxito. Quando, por fim, conseguiu pegar-lhe nos pulsos e dominá-la, disse:
– Não grites, que ainda te ouvem!
Ela mordeu-lhe a mão direita com tanta força que sentiu o sangue nos dentes.
– Maldita! – Foi o grito de dor e, logo em seguida, uma bofetada.
Elvira abaixou-se, pegou numa pedra e atirou-lha. Falhou o alvo por pouco, e a pedra foi cair longe, rolando pela encosta. Tentou pegar noutra, mas ele saltou-lhe para cima e imobilizou-a no chão. E falou-lhe ao ouvido:
– Não chores. Desculpa. Fiquei fora de mim. Não esperava uma coisa dessas. Eu gosto muito de ti.
Elvira percebeu como o contacto do seu corpo excitava o rapaz. E não sabia se a verdade era a de antes se a de agora. Perguntou:
– Casas comigo, José?
Ele respondeu que sim.
– Olha que o senhor padre diz que está na Bíblia que um homem tem de casar com a mulher com quem fez o que fizeste comigo.
– Deus me mate, se eu não casar contigo!
Pela primeira vez, Elvira sentiu também desejo verdadeiro. Ficara mais calma com a promessa do rapaz. E não podia acontecer mal que não estivesse feito já.
– Vamos para o moinho, que alguém pode ver-nos.
Passou a semana ainda em sobressaltos nocturnos e ansiedade constante durante a vigília, mas agora com alguma esperança. O pior seria quando tivesse de contar tudo à mãe. Sabia Deus com que fúria ela iria reagir, mas pior, muito pior, seria se José não quisesse casar, se a tivesse enganado. Não podia fazê-lo, não lhe faria nunca uma desfeita dessas, que a desgraçaria para o resto da vida.
Desgraçou-a... Devia casamento a uma prima, tanto como a ela e havia mais tempo ainda. Quando Elvira soube disso, pela boca da própria mãe, que lhe deu a novidade e jurou ser capaz de a matar, ou a qualquer das irmãs, se lhe acontecesse uma desgraça semelhante, fugiu para casa da tia Ascensão, a única que poderia valer-lhe e talvez compreendê-la. Era a tia mais velha da mãe, e vivia sozinha, abandonada desde os vinte anos pelo marido, que a deixara com um filho de meses e fora procurar fortuna no Brasil. A tia não soube sequer se ele chegara vivo ao destino, porque nunca teve notícias suas. Viveu necessitada de pão e de afecto, o que lhe custou a vergonha de mais um filho. Acabaram ambos por emigrar para a América, terra também de esquecimento, mas que só o foi para o filho legítimo, talvez envergonhado dos passos mal dados da mãe. O outro escrevia regularmente e mandava algum dinheiro.
Elvira só havia de voltar a ver a mãe, que nunca lhe perdoou, no dia da sua morte. Quanto à filha, que no baptismo recebeu o nome de Helena, não chegaria a ver nem mãe nem avó, nem cor ou coisa nenhuma, porque nasceu cega, o que ninguém percebeu nos primeiros tempos, porque não se notava defeito nos seus olhos escuros, quase negros. Castigo de Deus, acusava-se, que assim mostrava o Seu poder na inocente criatura, como escarmento para todas as possíveis pecadoras desta vida de enganos.
Acabando-se dez anos de casamento, morreu a mulher do pai da sua filha. Elvira ficara a viver em casa da tia, de quem cuidou até à hora da morte, e que lhe deixou aquele tecto para ter onde abrigar-se. Uns meses depois do início da sua viuvez, com cinco filhos divididos por este mundo e o outro – três cá e dois lá –, José foi rogar-lhe, pelo amor de Deus, que casasse com ele. Negou-se-lhe com desprezo, senhora do seu triunfo ao fim de tanto tempo. “Aqueles pequenos não têm quem cuide deles...” Finalmente, a pedrada atingira o alvo.
Adaptado do romance A Terra Permitida (esgotado)