terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A Lenda dos Reis


A viagem dos Magos, de James Jacques Joseph Tissot

Em Sippar, na Babilónia, fora primeiro Baltasar quem percebera o sinal. Entre as estrelas da constelação dos Peixes, signo das terras do Mediterrâneo, uma luz mais forte predizia grandes coisas para o Ocidente. Júpiter, anunciador de fortuna e protector de reis, juntava o seu clarão ao de Saturno, a estrela de Israel. Baltasar descera, sem demora, do terraço onde estivera vigiando o céu, para despertar Gaspar e Belchior e lhes ouvir o conselho. Surpreendidos pelo vigor da mão e pela voz tremente do companheiro que assim lhes suspendia o sono, levaram tempo a compreender ao que vinha.

Baltasar explicou-lhes, perturbado, o que pensara do sinal celeste. Que talvez o Messias tivesse, enfim, nascido, nas terras da Palestina. Gaspar e Belchior subiram, com Baltasar, a perscrutar o céu. Brilhando claramente na imensidão da abóbada, a constelação dos Peixes tinha por companhia uma luz muito forte. Júpiter e Saturno, ali onde o Sol acaba um ciclo e começa outro, pareciam anunciar que um poderoso rei nascera para trazer aos homens a salvação de Deus. E assim Javé daria ao Povo Eleito, disperso pelos confins de além-Jordão, a notícia de que chegara o Messias de Israel. Os três magos contemplaram o sinal do Senhor até que o Sol, subindo para lá dos Montes Zagros, o apagou na luz.

Tinham viajado já por longes terras. Sabiam as estradas da Média e da Susiana, conheciam as ruas e os palácios de Artemita, Apolónia, Chala e Ecbátana, de Seleucia e Alexandria da Susiana. E descansando, num entardecer, à sombra dos muros orientais de Methone, sonharam com Persépolis e Passárgada. Tinham subido o Tigre e o Eufrates até Singara e Dura-Europus. Mas a viagem que agora imaginavam, em busca do Messias prometido, de Sippar à Palestina, seria mais longa e mais custosa do que todas, sobre o deserto da Síria.

Quando lhes foi propício o tempo, deixaram a Babilónia por Neopólis, a caminho do Jordão. Quase dois meses mais tarde, à vista do Monte Nebo se lhes toldou o olhar. O país dos Moabitas era vizinho já do seu destino, e ali morrera Moisés contemplando Canaã. Ao outro dia, a caravana espantou o sossego de Jericó, Betânia e Betfagé, e, depois de descer o Monte das Oliveiras e passar pelo vale do Cedron, os peregrinos entraram em Jerusalém, com os olhos sempre postos no pináculo do Templo, para louvar Javé no Átrio dos Gentios.

O brilho da estrela que os guiava perdeu-se por entre as luzes do palácio de Herodes, no outro lado da Cidade Santa. Se procuravam um rei, decerto no palácio de outro rei fora nascido. E os magos acreditaram que era ali o seu destino. Mas ainda não. Mais para o Sul, pois de Belém de Judá anunciara o Profeta que um Príncipe sairia a apascentar Israel.

Os magos, pela estrada de Belém, viram, uma vez mais à sua frente, a estrela que seguiam. E, aos pastores que pernoitavam nos prados em redor da Cidade de David, fizeram a mesma pergunta com que haviam inquirido um rei no seu palácio. Ouvindo-os dizer “Messias”, a única palavra que entendeu do culto linguajar dos estrangeiros, os olhos de um velho brilharam num lampejo de felicidade. E, correndo à frente deles como criança que fosse, morriam as estrelas já no firmamento quando parou, numa casa de pobres em Belém, e os fez compreender que era nela que vivia o Messias prometido.

E foi ali que entregaram os seus presentes de oiro, incenso e mirra.

(Em A Longa Espera, Signo, 1987)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Fala dos Magos no presépio

(fotografia retirada daqui)

Belchior:

Anunciada está para estes dias
A vinda desejada do Messias.
Será este menino? Não o creio.

Gaspar:

O pai um galileu? A mãe aquela
Que tem tanto de pobre quanto bela?
Viemos de tão longe, e ele não veio...

Baltazar:

Um rei forte não faz um mundo novo,
Constrói o trono sobre a morte - o povo.
Num rei igual a nós, assim, eu creio.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pai Natal sem reforma

Fotografia encontrada no blog Por Entre Montes e Vales


Os anjos estavam muito admirados com a excitação nervosa do Pai Natal. Nunca o tinham visto assim. O velho chamou por um deles: “Lucílio!” O anjinho veio prontamente: “Estou aqui, senhor Pai Natal. Que deseja?” “O Mercurino já chegou?” “Está chegando agora mesmo.” E, vendo aparecer o querubim de quem falara, perguntou: “Qual foi a resposta de Deus ao meu pedido de aposentação?” “Nosso Senhor disse – respondeu Mercurino – que nem pensar.” “Nem pensar?... – Resmungou o Pai Natal – Isso é que penso. Não tenho outro remédio senão aceitar, mas pensar é cá comigo.” Mercurino tentou acalmá-lo: “O senhor Pai Natal fala sempre em aposentar-se quando chega a vez de despachar os presentes para as crianças portuguesas. Mas depois isso passa-lhe.” “Passa-me? Desta vez não passa. Isto é demais. Tudo torto. A começar por vocês. Eu pedi cento e quarenta e quatro mil anjos para me ajudarem, e que é que Nosso Senhor me mandou? Vocês, querubins, que não querem senão brincadeira.” “Somos anjos da primeira jerarquia, não somos?” “Vocês são da primeira jerarquia, mas não é para trabalhar.” “A gente faz o que pode, o senhor não tem razão de queixa, senhor Pai Natal, julgo eu.” Disse Lucílio. “Ai não, que não tenho. E nem sequer vieram todos. Além do pouco que vocês fazem, ainda faltaram à chamada sete mil setecentos e setenta e sete.” “Devem andar por aí perdidos no meio da algazarra da festa.” Era Mercurino a tentar desculpar os amigos. Mas o Pai Natal não estava com paciência para ter paciência. “Festa, festa, mas é para os outros. Já estou nisto há mais de cem anos, e Deus não me dá a reforma.” Depois quase gritou: “Mercurino!” O anjinho assustou-se: “Senhor? Que foi que eu fiz agora?” “Não fizeste, mas vais fazer.” O querubim respondeu: “Estou às suas ordens.” O Pai Natal disse: “Antes, o Menino Jesus dava uma ajuda bem grande em Portugal. Era ele que fazia quase tudo. Agora passa toda a santa noite refastelado no calor da manjedoura.” “E quem é que tem culpa disso? Não é nada connosco, as crianças é que lhe escrevem a si, não há nada a fazer.” “Há. Vai ter com José e pede-lhe que pelo menos empreste o burrinho para ajudar a transportar algumas coisas. Mas depressa! Vai numa asa e vem na outra, percebeste” “Sim, senhor, senhor Pai Natal.” E desapareceu voando à velocidade da luz.

“Querubins, querubins e mais querubins. Para onde quer que me volte só vejo querubins e querubins e querubins.” “Tenha paciência, senhor”, disse Lucílio. “A gente há-de fazer tudo como sempre tem feito.” “Paciência?” O Pai Natal voltava a falar alto. “Para suportar vocês era preciso ter paciência de santo, e eu não sou santo. Santo é o Nicolau. E nem sei se ele aguentava esta barafunda toda.” “Vai dar tudo certo, há-de ver.”

“Hei-de ver, hei-de ver… Querubins, é o que eu vejo. Que só querem é brincadeira. E onde estão os anjos a sério? Onde estão os serafins, as potestades, os principados, as dominações, as virtudes e os outros todos? Estão na gruta, cantando «Gló…ó…ó…ó… lá-lá-lará-lá-lá…» É o que fazem.” “Mas eu já disse que a gente faz o trabalho. Tenha calma.” “Lá estás com a calma…” “Não estou lá, estou aqui, senhor Pai Natal.” “Deixa de desconversar. A calma… sempre a calma. E os arcanjos?... Que é que eles fazem? Miguel deu uma sova em Satanás, e pronto. Ficou com fama e descanso para o resto da eternidade. E Gabriel?.. Levou um recado à Terra, uma vez, e reformou-se. Do Rafael nunca percebi sequer qual é o seu trabalho.” “Olhe, o Mercurino já chegou.” Informou Lucílio.

“Mercurino!” Gritou o Pai Natal. “Onde é que está o burrinho?” “São José não quis emprestá-lo.”“Também ele?... E eu é que tenho de resolver tudo, não é?” Mercurino explicou: “São José diz que o burrinho estás muito cansado da viagem.” “Ai está, coitado?... Ainda se eu pudesse contar com os camelos dos Magos… Mas estes ao menos tiram-me o trabalho de Espanha, o que é uma boa ajuda, valha-me Deus.”

Chegou outro anjinho, Almito, com os pedidos de última hora. “Estão aqui os atrasados, como de costume”, disse. “E donde vem isso?” Perguntou o Pai Natal. “Um é da Turquia.” “Da Turquia?!” O Pai Natal gritou outra vez. “Isso aí é da responsabilidade de Nicolau. Não tenho nada que ver com essa zona.” “Mas a menina é portuguesa. E é a si que faz o pedido.” “A mim? A Turquia fica em Cascos de Rolha. Indeferido.”

“Mas está em caminho para Samarcanda.” “Samarcanda?... Onde é isso?” “No Uzbequistão.” “No Uz quê cristão?” “Não, não é assim. É Uzbequistão. Quase não há cristãos lá.” “Quase não há, não é? E logo haveria de calhar um que fosse português… Essa gente anda por toda a parte.” “Pois é, senhor… Os portugueses são assim. Morrem de saudades mas vivem anos sem fim longe de casa. E há aqui outra carta que veio de Portugal.”

“E que é que me pedem nessa?” “É para pagar o IVA dos presentes.” “IVA, que é isso agora?” “É o imposto de valor acrescentado.” O Pai Natal deu o maior grito do dia. “Imposto? A essa gente já não bastam os impostos na Terra, querem vir buscá-los ao Céu também? MERCURINO! MERCURINO! Vem cá, Mercurino.” “Estou aqui, senhor Pai Natal. Que deseja?” “Vai depressa procurar Francisco.” “Que Francisco?... Não faltam Franciscos no Céu.” “Aquele meio louco, de Assis.” “Ah, o que está sempre a brincar com lobos e passarinhos.” “Esse mesmo. Ele que vá lá a Portugal tratar do assunto. Mas diga que eu não pago, não pago, não pago. Então temos aí milhões de euros de presentes para levar para eles, e ainda vamos pagar imposto? Isto aqui não é a União Europeia. Francisco que diga isso, e não se ponha com cara de santo. Pode ir de sandálias.” Mercurino partiu em mais esta missão.

“Que pedidos fazem essas crianças da Turquia e do Uzbomcristão?” “Uzbequistão, Uzbequistão.” “Como queiras. E eles que querem?” “A menina que vive na Turquia quer uma boneca que chore.” “Uma boneca que chore?... Já não basta o choro de verdade, ainda hei-de dar uma boneca que chore? Nem pensar! Vai dar-se uma boneca, mas calada como uma pedra. Ainda mando alguma coisa, ou não?” “Como queira, senhor.” “E o menino do Uz… Uz… pronto, essa terra que fica em Cascos de Rolha de Cascos de Rolha?” “Pede uma metralhadora.” O pai Natal deu uns gritos ainda maiores que o grito de antes. “Uma metralhadora?... Não dou metralhadoras, não dou metralhadoras, não dou metralhadoras. E não se fala mais nisso.” “Mas é uma metralhadora de brincar.” “Não dou, não dou e não dou.” “E fica sem oferta, o pequeno?” “Vai ter uma lira.” “Uma lira? Onde é que vamos comprar uma lira a esta hora? “Desenrasca-te. Se não encontrares nenhuma damos a tua.” “Isso é uma oferta muito cara, não lhe parece?” “Não íamos tão longe, até esse Uz… Uz… para dar um traste qualquer, não é?”

O Pai Natal acalmou, e deu ordens em tom meigo, como era normal. “E agora nada de conversas. Vamos ao trabalho.”

A publicar na imprensa regional e a emitir como teatro radiofónico na Antena 1 Açores.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Suor Alheio


Paisagem com canas (fotografia retirada do blog Bis Bis)

Ficaram os dois no canto sem que ninguém os contratasse. António, porque era muito novo, o José “Pinta a Pulga”, porque já era velho.

Aquela era a primeira vez que António oferecera o corpo para ser avaliado músculo a músculo, tinha muito tempo ainda para esperar que as coisas mudassem. Mas ao outro já iam recusando a oferta de vez quando, dias de ganho a menos a somar aos de chuva e de nada haver nas terras para ser feito.

– Um velho também come... – Foi o lamento do “Pinta a Pulga”. E meteu pela rua abaixo enquanto António ficava no canto a olhar os últimos homens que partiam para mais um dia de pão garantido. Vinte passos dados, se tanto, o “Pinta a Pulga” voltou para trás.

– Vou falar com o senhor Vicente. Pode ser que ele tenha a caridade de me dar trabalho hoje.

António debatia-se com a velha raiva que sentia contra o senhor Vicente. Via o pai trazido numa padiola, mal limpo o sangue da cabeça, e, uns dias mais tarde, a mãe, que não parara de o chorar ainda, toda vestida da cor da casa, a agradecer como grande esmola as últimas três maquias de milho que ele ganhara antes de cair pela Rocha do Tamujo. Mas o orgulho é um luxo para os pobres. A mãe e as irmãs tinham bocas para alimentar e corpos para cobrir, e António não era menos apressado na hora de ter fome, embora menos exigente no ano de vestir. Cuspiu o orgulho com a saliva e disse que sim.

– Não tenhas vergonha, rapaz, nem esmoreças. Tens a vida toda pela frente, ainda vais ser dos primeiros a serem escolhidos, não tarda nada. Eu é que vou cada vez para pior.

Fora isso que pensara, mas, quanto à vergonha, não era por ela que ia acabrunhado. Era por aquele orgulho sempre cuspido ou engolido, no silêncio dos pobres, sabendo que o senhor Vicente lhe contaria as horas uma a uma, os quartos de hora, até a noite preparar a cama onde havia de deitar-se o Sol. Tentou por isso uma desculpa para evitar a humilhação a que estava quase resignado a submeter-se.

- Mas o tio João já não pegou nos homens de que o senhor Vicente precisa?...

Referia-se ao capataz do senhor Vicente, que era sempre o primeiro a escolher os trabalhadores.
– Pois pegou. Mas o senhor Vicente é capaz de nos dar um jeito.

... E disposto a dar um jeito estava, mas só a um, ao rapaz, impondo a sentença de mandar o velho embora. António pensou que talvez o fizesse por remorso antigo, e lutou na indecisão de acompanhar o “Pinta a Pulga” no regresso triste, enfrentando o orgulho da sua raiva arrimado ao pensamento da necessidade da mãe, das irmãs e dele mesmo, e à vergonha de voltar para casa sem ter sujado o sacho nem derramado uma pinga de suor. O senhor Vicente tinha o cerrado das Canas Vieiras para cavar, mas tinha de ser bem cavado, fundo, e sentenciou que o “Pinta a Pulga” não podia fazer o serviço como ele queria. E, apesar de saber que António estava muito acostumado a trabalhar com o padrinho desde que o pai morrera, mostrou-se um pouco desconfiado também a seu respeito. António disse:
– Se o senhor Vicente quiser, cavo-lhe esta terra a trato.

– Olha que cinco homens cavam esta terra num dia. Podes levar sete ou oito que só te pago cinco, entendeste?

Entendeu e aceitou. E esfalfou-se de crepúsculo a crepúsculo, com a velha raiva sempre no fio do sacho, como se a cada cavadela pudesse atingir a alma do senhor Vicente.

Quatro dias bastaram para fazer o serviço que era feito por cinco homens num dia.

Na hora de pagar, o senhor Vicente mediu alqueire e meio de milho.

– E as outras seis maquias?

O senhor Vicente, em tom de justiça definitiva, bem lembrado de que aquele era serviço de cinco homens num dia, respondeu:

– Pensas que eu sou tolo ou quê? Não foi só quatro dias que trabalhaste? Aí tens.

António não encontrou modo de dizer a sua revolta, o seu desprezo. E foi o senhor Vicente que lhe despejou em cima:

– O que essa canalha me tem roubado! Um fedelho como tu cava-me a terra em quatro dias, e andavam para aí sempre cinco malandros a fazer ronha para aguentarem até às trindades!

António sentiu vontade de o esganar. Ainda disse, a medo:

– Mas o trato não era de me pagar como se fosse cinco dias?

– Isso era se levasses mais tempo a cavar. Ou querias ganhar cinco dias em quatro? Ou amanhã ganhavas o dia sem trabalhar porque eu já tinha pago adiantado?

António foi-se embora sem ter dito mais nada porque tinha as esponjas das lágrimas quase a rebentar-lhe nos olhos.

(Adaptado do capítulo VII de A Terra Permitida)

domingo, 6 de dezembro de 2009

Pedido de Casamento


Os Comedores de Batatas, Vincent Van Gogh

Bateu à porta com a inquietação como fronteira entre o receio e a esperança. Não se importou que os últimos olhares curiosos à luz dos restos do crepúsculo se dirigissem para si, estranhando a visita, ou talvez não, porque muita gente já teria com certeza ouvido e contado tão improvável amor.

Foi recebido com pouca surpresa, bem menos do que imaginara. Helena mexeu-se na cadeira, inquieta, enquanto ele caminhava em direcção à cozinha, mal iluminada pela luz minúscula da lamparina, que tinha a torcida, acabada de acender, reduzida ao mínimo. Para a cega eram iguais os dias e as noites, e a mãe sabia também os cantos da casa palmo a palmo sem precisar de luz ou de olhos abertos, pelo que poupava no petróleo o mais que podia. Distraíra-se, no entanto, ao recebê-lo com tão vaga claridade e, por isso, pediu desculpa e deu um pouco mais na torcida.

– Ainda está praticamente de dia. – Disse António, apenas para mostrar que nada havia a ser desculpado.

Estava resolvida a dificuldade de começar a conversa. Cumprimentou Helena com um simples “olá”, a que ela correspondeu, envergonhada, dizendo “olá, António”. No prato de Helena havia duas batatas cortadas ao meio, no de Elvira nenhuma.

– Quando dei por mim, só tinha quatro batatinhas em casa. A gente amanha-se assim mesmo. – Deu sinal a António para que não fizesse comentários, e convidou por delicadeza: – És servido?

Aquela mulher era muito diferente do seu retrato falado.

– Interessa é encher a barriga. – Disse António com um nó na garganta.

Elvira pareceu querer sossegar nele a compaixão pressentida.

– Daqui a dias, não me há-de faltar trabalho a ceifar, se Deus quiser, e a respigar, que sempre trago uns braçadinhos de trigo para casa.

Depois de os ceifeiros porem em descanso as foices e o corpo, às vezes já noite alta se era de lua cheia, ela ficaria ainda colhendo as espigas esquecidas, mais abundantes nas searas segadas por mãos habituadas à caridade, no cumprimento de uma recomendação bíblica que talvez ninguém conhecesse mas que era cumprida como um mandamento divino.

Elas iam comendo em silêncio, devagar, naquele silêncio e naquele vagar habituais de quando a refeição é de iguarias raras ou de sustento insípido. António, que continuava sem saber o que dizer, e nem sequer sabia se convinha dizer alguma coisa, decidiu falar de outro modo. Pegou na guitarra e tocou o “Fado da meia-noite”. Quando acabou, as duas mulheres disseram que tinham gostado muito.

– É muito bonito. – Disse Helena.

– Tu és tão bonita como ele. A tua cara é tão bonita como ele. – Atreveu-se António.

– E é triste, também, não é?

Ter-se-ia referido à música ou à sua cara?...

Passados uns instantes, Elvira disse:

– Talvez te admires de eu não ter perguntado o que vieste aqui fazer. Acho que deves mudar de ideias.

António percebeu quanto lhe custou dizer aquilo.

– Mudar de ideias, não mudo.

Elvira enrolou na boca as couves e engoliu-as com dificuldade.

– Pois então ela que diga. Pergunta-lhe.

Ele pensava que era inútil perguntar. Mas fez a cena como pôde.

– Helena, tu queres casar comigo?

Helena baixou a cabeça, como se os seus olhos pudessem ver e ela não quisesse que eles vissem. E disse duas vezes “não”, com o nome de António pelo meio. Estranhou não se sentir atingido na alma ou no coração, ou lá onde é que essas coisas doem. O certo é que não o surpreendera aquela resposta, sem dúvida ensaiada pela mãe. Helena levantou-se logo a seguir, para se refugiar no quarto onde a sua noite era a mesma mas não podia ser vista por ninguém. Sem tempo para pensar no que fazia, António segurou-a pela mão direita. Ela não se esforçou muito para se libertar, e Elvira, apanhada de surpresa, ficou calada a olhar para os dois. Quando ela ia falar, António disse muito calmamente:

– Ó senhora Elvira, pela alma dos seus e pelo amor de Deus, mande-a sentar-se e acabar de comer. Não se fala mais nisso agora.

Condescenderam ambas, e acabaram a ceia em silêncio. Estavam os dois frente a frente. Dois pares de olhos que se viam muito bem. E foi nos dela que leu o tamanho da mentira que Helena dissera sem querer. Mas não estava disposto a negociar Helena.

– A senhora Elvira pensa que eu sou capaz de fazer algum mal a Helena!?...

Ela levantou os olhos. Eram tão bonitos como os de Helena e, se as suas lágrimas não causassem pena, seriam mais bonitos assim.

– Eu acredito em ti, não desconfio das tuas boas intenções, mas sei que vocês iam ser dois desgraçados.

Protestou com convicção mas serenamente.

– A desgraça fica por minha conta. E com a ajuda de Deus há-de ser a desgraça mais feliz do Mundo.

Elvira sorriu.

– Bem dizem que palavreado não te falta...

Elvira falou em tom de elogio.

– Eu sei que Helena gosta de mim. Então por que teima contra a gente?

Elvira olhou-o com a sua tristeza resignada.

– Não teimo contra vocês. Não teimo contra ti, porque és bom rapaz, e oxalá que Nosso Senhor te faça muito feliz como mereces. E não teimo contra a minha rica filha que, se pudesse, até lhe dava os meus olhos para ela deixar de ser uma infeliz.

António percebeu que era essa a oportunidade para um novo argumento.

– É disso mesmo que Helena precisa. A senhora não vai ficar a viver sozinha, há-de viver com a gente, não é? Há-de ajudar a tomar conta da casa e dos filhos que Nosso Senhor nos quiser dar.

– Se isso desse para fazer vocês felizes, eu fazia isso e muito mais. Mas olha, António, eu digo-te para teu bem... Pensa no que fazes. Mereces melhor do que Helena.

– Quanto tempo pensa que é preciso para poder acreditar em mim?

– Muito!...

– De vez em quando hei-de vir perguntar se já passou muito tempo.

Teriam uma maneira diferente de medir esse tempo, mas Elvira acedeu.

(Adaptado do capítulo V de A Terra Permitida)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Pão Permitido


O Moinho, Rembrandt

Elvira voltou do mato sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Porque o moleiro lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo trabalho.

Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:

– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?

– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.

Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, levantou os olhos para o tecto negro do fumo de muitas cozeduras e da lareira acesa quase todo o dia. E exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:

– Ainda há gente boa neste mundo!...

Por ser a mais velha, cabiam a Elvira os trabalhos a fazer longe, porque abaixo vinham duas irmãs e só depois, com sete anos apenas, o único macho da família. Por isso ia ao mato por lenha, ou à ribeira do Calhau lavar a roupa como as mulheres casadas, ou ao moinho, para poupar a meia maquia devida pelo transporte do grão no lombo das bestas do moleiro.

O pai morrera de fome, ou dos maus tratos dela, porque muitos anos a pouco mais do que pão de milho e pimenta, com algum chicharro de vez em quando, não aguentaram com força e com vida os braços do cavador que fora, até lhe dar em tossir e escarrar sangue. De nada lhe valeu comer muito agrião cru e beber espuma de sopa de caracóis acabados de apanhar, porque alimentar-lhe o corpo a carne de vaca, ovos e leite era coisa que nem pensar.

A mãe já lhe chorava a morte mais que certa, quando teve de fazer pela vida e ganhar como podia ou como queriam pagar-lhe. E louvava a Deus e aos homens por esse pouco, embora não ficasse atrás de nenhum a amarrar vinha, a semear, a sachar e em tantos outros serviços em que importava mais o jeito do que a força. Secou as lágrimas pelo defunto, ao sol de Julho, ceifando. Fosse Deus louvado e feita sempre a Sua vontade. Ainda que não percebesse como poderia louvar-se Deus por tão grande e outras penas, às vezes choradas com lágrimas também de raiva.

Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Só podia salvá-la o amigo, ou amante, ou namorado, fosse lá o que fosse que era para ela o moleiro. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão. E a mãe aflita, a julgá-la doente – “não me morras, como teu pai, que fico sem ninguém que me valha” -, e ela feita vítima e carrasco de si mesma, sem entender sequer se tudo acontecera por desejo seu também, se apenas pela miséria de poupar uma maquia.

Batia-lhe o coração numa galopada louca, nem que tivesse vindo a correr com a carga às costas saltando pedregulhos e valados. O rapaz mostrou-se logo disposto ao que já se ia tornando um costume, mas, vendo-a naquela tristeza assustada, perguntou-lhe a causa dela.

– Vou ter um filho, José!...

– E que tenho eu a ver com isso?..

Que havia de dizer? Como havia de dizer o que tinha de dizer? Onde lhe estava a saliva que lhe soltasse a língua e os lábios, secos, secos, como pedaços de barro em Agosto? E o coração pedra viva... Disse:

– José, tens de casar comigo!..

À espera, outra vez. Ele agora com um ar de ódio, que a assustou ainda mais.

– Casar contigo?!... Sei lá quem te fez isso! Andas por todo o lado, como uma cabra!..

De repente, o medo fez-se raiva.

– Não sabes?!... Sou uma cabra, seu estupor?... Não sabes que fizeste de mim o que quiseste? Eu mato-te, excomungado!

Atirou-se a ele com a fúria de uma alcateia que defendesse as ninhadas. Tentou bater-lhe na cara, arranhá-lo, mordê-lo, enquanto o rapaz, com a cobardia da culpa, se defendia com pouco êxito. Quando, por fim, conseguiu pegar-lhe nos pulsos e dominá-la, disse:

– Não grites, que ainda te ouvem!

Ela mordeu-lhe a mão direita com tanta força que sentiu o sangue nos dentes.

– Maldita! – Foi o grito de dor e, logo em seguida, uma bofetada.

Elvira abaixou-se, pegou numa pedra e atirou-lha. Falhou o alvo por pouco, e a pedra foi cair longe, rolando pela encosta. Tentou pegar noutra, mas ele saltou-lhe para cima e imobilizou-a no chão. E falou-lhe ao ouvido:

– Não chores. Desculpa. Fiquei fora de mim. Não esperava uma coisa dessas. Eu gosto muito de ti.

Elvira percebeu como o contacto do seu corpo excitava o rapaz. E não sabia se a verdade era a de antes se a de agora. Perguntou:

– Casas comigo, José?

Ele respondeu que sim.

– Olha que o senhor padre diz que está na Bíblia que um homem tem de casar com a mulher com quem fez o que fizeste comigo.

– Deus me mate, se eu não casar contigo!

Pela primeira vez, Elvira sentiu também desejo verdadeiro. Ficara mais calma com a promessa do rapaz. E não podia acontecer mal que não estivesse feito já.

– Vamos para o moinho, que alguém pode ver-nos.

Passou a semana ainda em sobressaltos nocturnos e ansiedade constante durante a vigília, mas agora com alguma esperança. O pior seria quando tivesse de contar tudo à mãe. Sabia Deus com que fúria ela iria reagir, mas pior, muito pior, seria se José não quisesse casar, se a tivesse enganado. Não podia fazê-lo, não lhe faria nunca uma desfeita dessas, que a desgraçaria para o resto da vida.

Desgraçou-a... Devia casamento a uma prima, tanto como a ela e havia mais tempo ainda. Quando Elvira soube disso, pela boca da própria mãe, que lhe deu a novidade e jurou ser capaz de a matar, ou a qualquer das irmãs, se lhe acontecesse uma desgraça semelhante, fugiu para casa da tia Ascensão, a única que poderia valer-lhe e talvez compreendê-la. Era a tia mais velha da mãe, e vivia sozinha, abandonada desde os vinte anos pelo marido, que a deixara com um filho de meses e fora procurar fortuna no Brasil. A tia não soube sequer se ele chegara vivo ao destino, porque nunca teve notícias suas. Viveu necessitada de pão e de afecto, o que lhe custou a vergonha de mais um filho. Acabaram ambos por emigrar para a América, terra também de esquecimento, mas que só o foi para o filho legítimo, talvez envergonhado dos passos mal dados da mãe. O outro escrevia regularmente e mandava algum dinheiro.

Elvira só havia de voltar a ver a mãe, que nunca lhe perdoou, no dia da sua morte. Quanto à filha, que no baptismo recebeu o nome de Helena, não chegaria a ver nem mãe nem avó, nem cor ou coisa nenhuma, porque nasceu cega, o que ninguém percebeu nos primeiros tempos, porque não se notava defeito nos seus olhos escuros, quase negros. Castigo de Deus, acusava-se, que assim mostrava o Seu poder na inocente criatura, como escarmento para todas as possíveis pecadoras desta vida de enganos.

Acabando-se dez anos de casamento, morreu a mulher do pai da sua filha. Elvira ficara a viver em casa da tia, de quem cuidou até à hora da morte, e que lhe deixou aquele tecto para ter onde abrigar-se. Uns meses depois do início da sua viuvez, com cinco filhos divididos por este mundo e o outro – três cá e dois lá –, José foi rogar-lhe, pelo amor de Deus, que casasse com ele. Negou-se-lhe com desprezo, senhora do seu triunfo ao fim de tanto tempo. “Aqueles pequenos não têm quem cuide deles...” Finalmente, a pedrada atingira o alvo.

Adaptado do romance A Terra Permitida (esgotado)