quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O teu nome Calie

Sabes daquele teu retrato que eu costumo dizer que é o dos olhos grandes? O poema para ele, que me daria direito pleno de figurar numa galeria de poetas, tentei-o começando assim:

“A perfeição, quase:

A beleza exausta de tanto o ser.”

Numa tarde de muito sol, em Santa Maria, para as bandas da Flor da Rosa, avistei de longe um homem a trabalhar, do outro lado de um daqueles insólitos e fundos barrancos com que a ilha tantas vezes nos surpreende, numa quinta onde eu sabia que havia dióspiros. Olhei com a força de um desejo infantil que nunca passou fome mas raramente tinha dessas carícias no paladar. E aconteceu o que eu não imaginara que pudesse suceder: o homem chamou-me com um gesto como quem ordena, corri até à beira do muro, e ele deu-me uns dois ou três frutos maduros, deliciosos, um milagre de doce frescura na aridez da paisagem e da minha gulodice.

Santana vista das proximidades do Clube Asas do Atlântico (Fotografia de Ana Loura)

Que tem isto que ver contigo?... Tem que eras, no tempo em que te chamei Calie pela primeira vez, um fruto ainda por amadurecer. Eu teria de enfrentar muitos barrancos antes de te me ofereceres, numa longa jornada que me parece um destino traçado por Alguém que sabe mais do que nós. Fui um Pêro de Alenquer que desconhecia por que rotas se ia à Índia mas lá chegou porque os ventos de uma monção favorável e de favor o conduziram, de cabo a cabo e de porto em porto, até às margens seguras de Calie.

Na primeira ocasião em que reparei em ti eras uma criança ainda. Sabia lá os rumos que as nossas vidas haveriam de percorrer! Eras linda e prometias sê-lo cada vez mais. Além disso, sabia-te inteligente, aluna com média de dezasseis no Liceu. E eu lembrava-me do que sempre me custara passar a barreira dos doze em todas as disciplinas, para ter direito a quadro de honra no Externato de Santa Maria. Nos quatro anos que por lá andei, consegui-o em seis períodos, algumas vezes com uma bênção condescendente na Matemática e no Desenho. Nem imaginas a alegria que isso me dava e o desalento em que os outros seis me deixaram. Daí para cima, quero dizer trepar pela pauta até um catorze ou um quinze, era coisa rara e só podia acontecer em História ou Geografia, em Português ou mesmo Física.

Procurai descobrir a personagem (fotografia de Laudalino Pacheco, Julho de 1974)

Pensarás então, talvez, que gostei de ti porque tinhas uma cara bonita e um corpo airoso... Não, meu Amor, não foi só por isso. Mas, como disse um poeta popular que eu inventei – e toma-o como se fosse eu a dizê-lo de ti –: “Os olhos amam primeiro,/ O coração vê depois.” E o meu, quando pôde ver, gostou do que viu.

(Do tal livro em longa preparação A Longa Jornada Até Calie)

25 comentários:

Unknown disse...

«Retalhos da vida»(expressão que referi no post anterior) de um ser que encanta na arte de dizer,ser,e sentir.
O diospiro é um fruto doce e áspero,duas características tão presentes em nós,seres humanos.
Tocou-me particularmente a expressão«Os olhos amam primeiro,/O
coração vê depois.»
Usavas suíças na década de70,Daniel?

Isabel Biscaia disse...

Daniel,

Foi com um grande prazer que voltei a ler este trecho. Já mo tinhas enviado e, logo de início, o admirei (como te admiro a ti desde que te conheço e a tua amizade). Reli-o e encontrei logo desde a primeira linha as fortes emoções que me soubeste trazer aquando da minha primeira leitura, há tempos.
Só não tinha a fotografia. Agora, vendo os rostos nela focados e tentando traduzir es emoções neles guardados, atrevo-me a dizer que tu estarás, com a tua Calie, em segundo plano, transmitindo um ao outro, por olhares, o que vos vai no coração, nesse preciso instante guardado para o futuro, como mais um testemunho do vosso amor.
Acertei?

A fotografia de Santana... pura e simplesmente teve o condão de me transportar para aqueles espaços que no meu coração parecem não ter fim. Que saudades !

Obrigada Daniel por mais este bocadinho de sol que trouxeste ao meu dia.

Um beijo de amizade e de gratidão.
Isabel

Ana Loura disse...

Daniel, o meu con«mentário não entrou :-(? Beijo

Ana Loura disse...

O dióspiro é a minha fruta preferida. Quando vim para cá os meus pais mandaram pelos correios uma caixinha com quatro que amadureceram na primeira gaveta da estante da sala. Eram coroa de rei, os mais doces e carnudos.


fico assim...meia...quando vejo as minhas fotos...obrigada pelo carinho de as usares.

Tu na foto és o moço bem parecido de casaco aberto à esuqerda

Beijo

Daniel disse...

Eduarda, aconteceu-me o mesmo que à Ana quando quis responder ao teu tocante comentário à história anterior. Vamos lá ver se agora consigo entrar no meu próprio blogue.
Pois, naquele momento eu estava a contemplar o que os olhos viam, mas algo mais para lá. Não se nota, mas a nossa filha Sara já ia connosco... (Suíças, sempre a susei curtas.)
Obrigado, Isabel, pelo carinho.
Ana, o moço bem parecido não serei, mas o de casaco aberto e camisa de gola alta fechada, sim, sou eu.
Um trio de beijos.
Daniel

Anónimo disse...

Daniel, que linda prova de amor! Deois, toda essa poesia, toda essa sinceridade e simplicidade...Bonito, mesmo, caro Amigo! A foto, sabe que acerei, talvez porque tentei dar rosto às suas palavras?

Já tinha saudades de o ler. Tem andado um pouco afastado do espólio...

Abraço da Sol

Anónimo disse...

Querida Amiga Sol
Tenho andado um pouco arredado do Espólio, como do Sarrabal e outros belos sítios por onde me passeio sempre que posso, porque estou com um trabalho de grande responsabilidade, dimensão e urgência que me foi pedido pela Gabriela Canavilhas, nossa muito querida directora regional da Cultura.
Obrigado por ter gostado do texto e das fotos. E, sobretudo, obrigado por o ter dito.
Um abraço.
Daniel

Anónimo disse...

A data da foto está errada, por distracção minha. Vou pedir ao "editor" Rodrigo para corrigir. É de Julho de 1974 (lindo ano!)
Daniel

Unknown disse...

Logo que observei a imagem do passado reconheci-te imediatamente, bem como à Maria Alice.À Sara não a reconheci.Sei que o menino que vai pela mão do cavalheiro é parecido com a tua neta Martita.
Quanto ao amor pela tua companheira, eu mesma pude testemunhá-lo em actos de grande ternura.E que mulher de força e de armas! E que rico sopa!
Quanto à gastronomia das palavras, o paladar tem a rescendência das flores das laranjeiras e da brancura dos vestidos em dia de noivado.Que lhe dizias tu, que tanta felicidade se lhe alastra no rosto?
Muito, mas muito bonito, Daniel de Sá.

Anónimo disse...

Ó Lia, a Sara foi concebida, muito provavelmente, no primeiro dia de Abril de 1974. Que belo mês, não te parece? E essa foto é de Julho seguinte (estava errada a legenda, mas agora está certa). Já percebeste onde ia a Sara?
Quanto à feitiçaria de Maria Alice na cozinha, resulta mesmo. E a minha boa sogra, uma santa, que me dizia que ela não tinha jeito para isso!...
Um abraço.
Daniel

Unknown disse...

Daniel,
Ao ler a tua resposta ao comentário da Sol,não pude deixar de reparar no nome Gabriela Canavilhas.
Grande senhora!Mulher de força,de muito saber e de uma vontade imensa de propor às ilhas rumos novos.
Estou certa?
Abraço

Daniel disse...

Eduarda, não fosse eu reconhecer nela tudo isso, além da honra de sermos amigos, e não teria aceitado a incumbência. O pior é que agora temo defraudá-la... mas ela parece acreditar mais em mim do que eu mesmo. Trata-se de criar uma exposição permanente sobre poetas e escritores açorianos, para inaugurar em Novembro!
Um abraço.
Daniel

Unknown disse...

Belíssima incumbência,Daniel.Não,não vais de forma alguma, defraudá-la.Sabemos que não.Olha,de repente,deste-me uma ideia.Depois digo.
Bom trabalho!
Abraço grande.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Daniel,

Se tivesse lido a primeira resposta que deste à Eduarda teria percebido onde estava a Sara, tanto mais que já lá estavam as reticências...
O texto é mesmo daqueles levezinhos e densos como eu gosto.
Dá um grande beijo à Maria Alice.
O texto do recreio das letras tem sido um scesso.
Abraço.

jv disse...

Daniel, claro que para mim, Calie, é um anagrama.
Quanto aos diospiros, ao seu sabor, e a todos os outros gostaria de dizer que fomos uns priviligiados, pois tivemos a oportunidade de realmente e verdadeiramente saborear.Costumo dizer às minhas filhas que um único gelado que tenha saboreado, valeu por todos os que elas comeram ao longo de toda as suas vidas. A diferença é que nós não comíamos gelados, saboreavamos, assim como a tudo na vida. Por isso nós sabemos valorizar muito melhor do que eles, o que a vida nos deu e dá.
Um abraço
José Fernando.

Anónimo disse...

Lia, já dei o beijo a Maria Alice. O teu e mais algum meu.
José Fernando, é isso, amigo. Por isso é que a maior parte das coisas hoje não tem o sabor de antigamente. Estão demasiado à vista e à disposição. E refiro-me a tudo o que é bom. Só a amizade permance com igual sabor.
Abraços.
Daniel

samuel disse...

Grandes são os poetas populares que nós próprios inventamos!

Anónimo disse...

Daniel,

Ficamos a imaginar como brilhariam os seus olhos de criança, olhando os frutos desejados. Em boa hora, o dono da árvore deverá lido o desejo inconfessado deste menino e proporcionou-lhe essa carícia no paladar e a nós leitores, o paladar dessa carícia.

Beijinho


Mafalda e Francisca

Anónimo disse...

Samuel, o povo é o grande mestre, bem sabes.
Mafalda e Francisca
Que lindo o que vocês escreveram!
Beijinho recebido. Vão dois.
Daniel

Ibel disse...

Fancisca e Mafalda,

Que belíssimo comentário, meninas do meu coração!É por isso que ler faz muito bem.Como vocês crescem harmoniosas!

Mar de Bem disse...

Chegada, das chuvas em cascata das Flores, deparo-me com este lindo texto e com os versos que me emprestaste para o catálogo da minha Exp. de pintura "Porque me olhas assim?"

“Os olhos amam primeiro,/ O coração vê depois.” pôs muita gente a pensar.

...e quero, Daniel, agradecer-te aqui, diante de toda estes amigos, a graça que me deste ao emprestar-me estes versos. Cumpriram aquela missão e... cumprirão outras, se Deus deixar.

Obrigada, meu precioso Amigo!

Unknown disse...

Daniel"Porque escreves assim?"

Cris disse...

Daniel
Foi um longo caminho até encontrar o aconchego de Calie.
O menino que testemunhou o caminho dos ventos, as pedras das fontes,a poeira da solidão,o peso em excesso na mão da gestante,as perninhas do menino Jesus em fuga,o coelhinho de lata a comer na horta,e tantas coisas mais...tenho certeza que valeu a pena tudo isso e mais um pouco para encontrar o que os olhos amam primeiro...e por um milagre da vida tatua a imagem no coração.
Beijos a Daniel e a Calie.

Daniel disse...

Mar de Bem, Lia, Cristina
Bendito trio!
Estive sem Internet desde Domingo e até há momentos. Uma segunda avaria, ainda relacionada com a primeira, numa altura em que tanto precisei de comunicar por este meio!
Beijos a vocês, queridas amigas.
Ah, Lia, escrevo assim prque não sei escrever de outra maneira!
Daniel