O senhor Melo Nunes deixou nome numa rua e memória de ser rico e sabido. Não foi avaro de nada do que teve, fez bem, como entendeu e pôde, a pobres e ignorantes. Como o tempo lhe sobrava e saber tinha o bastante para isso, andou toda a vida metido em política, progressista estreme, único guardião influente do seu partido na zona inteira dos Fenais ao Porto. Foi presidente vitalício da assembleia de voto que funcionava na Maia, aonde vinham votar também os eleitores dos Fenais da Ajuda, Lomba da Maia e Porto Formoso.
Por umas eleições, disse-lhe o governador civil, progressista como ele, que era preciso ganhar na Maia. “Mas como?!...” lamentava Melo Nunes. O padre do Porto Formoso era regenerador; os Câmaras, da Lomba da Maia, igual; os Bettencourt, dos Fenais da Ajuda, iam, interessadamente, pelos mesmos caminhos. Que fazer?... Nem que tenha de anular as eleições…” alvitrou, como recomendação, o governador. Havia de ver-se…
No dia das eleições, oito horas certas, Melo Nunes abriu a assembleia e preparou-se para nomear os restantes membros da mesa. Chamou parece que o regedor dos Fenais da Ajuda para um dos cargos, e ele logo disse que não podia, era incompatível. Melo Nunes sabia-o bem, mas folheou demoradamente o livro dos regulamentos, até que lhe pareceu que era de mais, “encontrou” a lei. “Tem razão, sim senhor.” Entretanto, combinação feita com o padre e o sacristão, dera de olhos a este que disfarçadamente foi adiantar uns minutos ao relógio da igreja. Fez nomeações de incompatibilidades sucessivas, procurou sempre do mesmo modo o artigo de lei respectivo, o sacristão foi sempre, igualmente, viciando as horas do relógio da igreja, o único que marcava o tempo para todos os presentes.
Última nomeação feita, o incompatível a protestar: “O senhor sabe que não posso fazer parte da mesa!” E Melo Nunes, avisado de que o relógio chegara às nove: “E os senhores sabem que, passada uma hora, se não está composta a mesa não há eleições.”
E não houve. Mas, quando os rivais perceberam o logro, quase o matavam, com o padre do Porto Formoso a esgrimir a bengala no comando dos descontentes.
A Melo Nunes tiveram os amigos leais de guardar-lhe a casa durante três dias.
(Do livro Sobre a Verdade das Coisas, esgotado)
11 comentários:
A política tem sempre destas histórias engraçadas e pouco honestas.Ao menos fazem-nos rir, sobretudo quando o narrador suplanta o génio do manhoso Melo.
Man(l)has da escrita para quem pode e sabe.
E saber que já andei por esses sítios torna tudo mais aliciante e mais caseiro.
Abraço, amigo!!!
Deliciosa história" A nossa política está cheia de "bettencourt" que vão interessadamente pelos caminhos...
Mudam-se os tempos. Mudam-se as vontades?
Abraço.
Lia e Samuel
Confesso que desconto um pouco no mau procedimento de José Melo Nunes, porque ele foi uma pessoa de bem... e progressista. Mas, talvez pelas mesmas eleições, as Feteiras do Sul receberam como prémio (prometido) da vitória dos regeneradores a magnífica talha de um altar da igreja do Colégio (que era propriedade particular) e um fontenário que estava em Ponta Delgada e era, portanto, pertença da Câmara Municipal. Àquela igreja falta outro altar e um púlpito que foram oferecidos à matriz de Ponta Delgada.
José Melo Nunes foi presidente da Câmara da Ribeira Grande e, nessa qualidade, coube-lhe saudar D. Carlos quando passou por lá. Tenho o discurso aí algures em casa.
Daniel,digamos, que neste caso os fins justificavam os meios.
abraços José Fernando.
"Quem tem amigos não morre à fome"...nem apanha tareias...(risos) Sempre a tua escrita saborosa, com cheiros e cores.
Beijo
Daniel,
Hoje seria impensável uma situação destas e não apenas porque o relógio da igreja era "o único que marcava o tempo para todos os presentes".
Curiosidade: mas afinal porque eram "incompatíveis" a totalidade dos presentes?
Beijinho
Francisca e Mafalda
JV
Naquele tempo toda a gente aceitava estas e outras fraudes como fazendo parte do jogo. E os cacetes depois, claro.
Ana
Deu sempre jeito ser amigo de alguém que tenha a chave do granel.
Mafalda e Francisca
Eram incompatíveis porque ocupavam cargos públicos.
Abraços.
Daniel
Plano bem ardiloso este do presidente da mesa da assembleia de voto para levar a bom porto as intenções do governador civil.
Hoje,como é sabido,é a Câmara Municipal que nomeia os elementos que fazem parte da mesa,incluindo o presidente,obviamente.Se o Sr.Melo Nunes tivesse estado comigo na mesa de voto nestas legislativas e autárquicas,ia ser o bonito... :)))
Acreditam que vi muita gente (ainda)com o(s) boletim(ns) de voto na mão a perguntar,meio aflitos:
-E agora?Em quem vou votar?
Outros,o marido para a mulher:
-Vota....-dito bem alto e com a maior descontracção.Outros maridos houve que esticavam o pescoço para verificarem se a sua senhora estava a votar como o combinado.
Cheguei a levantar a voz a dois indivíduos mais ousados.
E assim é o português na hora de votar...
É sempre um prazer lê-lo, Daniel! E estas recordações do que já passou merecem bem ser «retratadas» nessa sua tão apetecível forma de escrever.
Abraço da Sol
boa noite...
li num texto seu na net (aqui: http://aspirinab.com/visitas-antigas/daniel-de-sa/historia-de-um-beijo/) um termo que me intrigou:
"ferrumecos"...
posso pedir-lhe que me indique o que significa?
obrigado,
Ricardo
("god is in the house" é um grande tema... quem diria, Daniel de Sá gosta de Nick Cave...)
Eduarda
É a iliteracia política no seu estado ainda virgem.
Sol
Obrigado por mais estes raios de luz.
Ricardo Dinis
"Ferrumecos" é aquilo que em linguagem popular se diria "acenos". "Mímica", para os mais exigentes.
Quanto à música, gosto da que me agrada. Beethoven, Grieg, Frank Sinatra, Nick Cave... Ou não devo?
Abraços.
Daniel
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