Não me confundo na ilusão de claramente ter visto num Natal o que vi porque muito desejava ver. Sei como o sonho entra livremente pela verdade dentro, naquela idade em que a fronteira entre a imaginação e os olhos não tem fiscais. Mas nesse Natal eu vi. Terá sido o dos meus quatro anos, e o Menino acabara de deixar junto à lareira um pequeno Dakota de plástico, em cujas asas haveria de voar todas as distâncias. Olhei pela chaminé ainda a tempo de um vislumbre de maravilha: a sua perninha esquerda, rechonchuda como a de um ingénuo Murillo, escapava-se rapidamente, na pressa de atender outras crianças. Ninguém foi capaz de me dizer que era mentira. E ainda hoje, apesar de saber que não podia ter visto nada mais do que as paredes negras da chaminé, tenho na memória, nítida como a das coisas mais reais, a forma e a cor exactas dessa imagem fugaz.
Mas, quando comprei um pião ao Leonardo por cinquenta centavos – valor que ele me fiou, fiando-me eu em que meu Pai mo daria –, aconteceram coincidências que ainda me parecem demasiadas para não terem resultado daquele acaso de que alguém disse ser o nome que às vezes damos a Deus. Tão outros tempos eram esses que meio escudo, para uma criança, era uma pequena fortuna. E mesmo para os adultos, que nem sempre o tinham. Por isso não te admires de eu ter receado não arranjar com que pagasse ao Leonardo.
Quando meu Pai me deu o dinheiro, guardei-o na algibeira, sabendo que podiam passar-se vários dias, mesmo semanas, sem que encontrasse o meu credor, um amigo que eu raramente via. Fui à cantina do Aeroporto fazer compras e, já perto da capela de Nossa Senhora do Ar, dei com um mendigo da Vila sentado no murinho de protecção do aqueduto que atravessava a estrada vindo da mata da Secretaria. Não hesitei um segundo na intenção de lhe fazer esmola com a tal minha pequena fortuna que, na verdade, nem sequer me pertencia. E o curioso é que eu tive a certeza de que o problema criado por tão espontânea boa vontade se haveria de resolver... Não sei porquê, nem sei esperando o quê, mas tive-a. Se fosse meu feitio jurar, jurava isto por ti, Calie.
Ao passar na casa desse santo que foi o padre Artur, a irmã, que estava em roupa imprópria para sair à rua, pediu-me para lhe comprar uma caixa de fósforos, que custava quarenta centavos, na cantina, que era do outro lado do caminho. Trinta, trinta e cinco passos não apressados, talvez, de porta a porta. E deu-me, como recompensa pelo insignificante favor, exactamente cinquenta centavos, que era o dinheiro branco mais pequenino e que sempre gostávamos de ter, pelo menos esse, para deitar na bandeja quando se beijava o Menino no fim da Missa do Galo. Em outras circunstâncias provavelmente teria recusado, e não me lembro de ninguém me ter dado nunca uns dez centavos sequer por um recado, durante os treze anos que vivi na Ilha-Mãe. Regressei a casa pelo caminho menos habitual, que era o mais longo antes da sucessão de atalhos que levavam a Santana, e que normalmente só escolhia quando ia pedir o Cavaleiro Andante ao José Guilherme. Contra as minhas expectativas, porque não era habitual vê-lo por essas bandas, encontrei o Leonardo e paguei a dívida.
Menor importância terá tido para mim um outro caso, mas que pode até ser de mais poética ingenuidade. Numa tarde de vinte e quatro de Dezembro, entrei na capela e vi que ainda ninguém tinha trazido flores para enfeitar o altar. Disse à irmã do padre Artur que sabia onde encontrar daqueles junquilhos amarelos que cheiram mesmo a Natal, e fui a correr para a mata de Monserrate, porque tinha visto uma moitazinha deles em frente da ermida. Que desilusão, meu Amor... Não havia nem um. E sabes o que fiz? Ajoelhei-me a rezar à porta de Nossa Senhora para que alguém encontrasse flores e as fosse levar para a festa do nascimento do Seu Filho. Quando voltei, havia já, ao lado do altar, um braçado de junquilhos mais ou menos como o que eu pensara poder trazer de Monserrate.
(Os junquilhos de Monserrate seriam para o altar que havia no lugar deste, antes do incêndio que destruiu a capela de Nossa Senhora do Ar. Fotografia de Ana Loura)
Não penses que recordo estas coisas como actos de bondade ou de uma fé admirável e simples, a fé dos pequeninos, que eu mesmo tenha praticado. Foi há tanto tempo, que essa criança inspira-me mais ternura que saudade. Vejo-a como se não fosse eu, acompanho-a nestas recordações como se a seguisse de perto ou estivesse parado atrás dela. Neste preciso momento acabo de voltar da mata de Monserrate sem lhe ter visto a cara. Mas reconheço, Calie, que se alguma coisa boa ficou em mim foi porque dela aprendi. E se é certo, meu Amor, que terei o cuidado de dizer-te o mais possível coisas boas, não é para que pareça a teus olhos que fui sempre um puro, mas para que o penses do mundo onde vivi, porque a literatura já tem demasiadas páginas cheias com o mais feio que há em nós. Mas, se em algum momento imaginares que andei triste – e talvez seja verdade – lembra-te de que esta história tem um final feliz.
(Ficou linda, a ermida, mas os meus junquilhos não voltarão a florir. Fotografia de Ana Loura)
(De A Longa Jornada Até Calie, em preparação)