domingo, 11 de abril de 2010

Parati, Madrinha, ou Florianópolis

Agualva (fotografia de Tibério Dinis, In Concreto, 31 de Outubro de 2009)

(Como a Isabel me pediu um cheirinho do Francisco Cota Fagundes, aqui o deixo neste excerto da narrativa cujo título acima está. Não pedi licença ao autor, mas peço desculpa do abuso.)

Fui criado com uma dieta de estórias brasileiras que tu ouviras no teu Brasil; ou estórias que, decalcadas sobre outras que terás ouvido, inventavas para me fascinar e, quando te convinha, me amedrontar. Era a mula sem cabeça, eram os caiporas que, se bem me lembro, eram criaturas humanóides, miudinhos, que, às tantas da madrugada, tu punhas a sair do mar, de charuto aceso, e se espalhavam pelos bairros do Rio, incluindo o teu. E nunca se sabe! Um dia podiam vir, das bandas da Vila Nova, já mais cresciditos, e aparecer na Agualva, pois caiporas há por toda a parte! “Lá nessa tens razão”, dizia a Tia Chica, tua mãe, aludindo ao significado de caipora na Terceira, que é desgraçado ou infeliz. Não pronunciavas essa e outras palavras brasileiras – alamoa, curupira, boitatá – saboreava-las, deglutia-las, como se elas fossem frutos tropicais. E fazias-me repeti-las, ingeri-las. E tantos eram os bichos, alguns deles indubitavelmente inventados por ti, que tiravas do alforge da memória para me tornares um pequeno bem ensinado, que era um dos teus sonhos – a bernunça, o corpo seco, o bumba-meu-boi – para os quais a tua dadivosa e inventiva memória de imediato fabricava estórias. Lobisomens também os tínhamos na Agualva, mas os teus falavam com sotaque brasileiro, impunham respeito: sô fiu di padre! diziam eles quando eram trancados e interpelados.

Também trouxeras do Brasil muitos exemplares de literatura de cordel – em que aprendi as primeiras letras. A História Nova do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França – Contém a grande Batalha que teve com Malaco, Rei de Fez, a qual venceu Reinaldos de Montalvam e dos muitos trabalhos que este padeceu por traição de Galalão, sendo sempre leal, constante na Fé, o melhor dos doze Pares, editado em São Paulo pela Livraria Magalhães, Rua do Comércio, 27. Que pena não ter data! Tal o teu fascínio com os Doze Pares de França, fascínio esse que trouxeste do Brasil e divulgaste na Agualva, que até o nosso cão, que o Padrinho queria chamar Calçado e eu o Cagunças, tu insististe que se chamasse o Roldão. E foi abraçado a ele e banhado em lágrimas que no dia em que emigrei prometi: “Volto um dia, Roldão. Hás-de ver!” Mas não viu, pois pouco depois morria.

Talvez fosse do Brasil que também havias trazido o preconceito que tinhas contra morenos. Escurinho como sempre fui, tu imaginavas – digo mal: sabias dum saber todo teu e de experiência feito – que mulher nenhuma jamais se interessaria por mim. “Jeitosinho mas trigueirinho!” era uma maneira que – quantas vezes ta ouvi! – utilizavas para me caracterizar e, quem sabe, para me incutires a ideia de que não deveria esperar muito das mulheres; que não devia andar ao sol, que só deveria andar na rua no Verão com o meu chapéu de palha, que os tinha à escolha, pois tu comprava-los de vários feitios e cores para me protegeres. E, quando tudo o mais falhava, tu tinhas a urina.

― Faz chichi na mão e lava à cara! ―, gritavas tu. Ou:

― Não faças chichi ainda para poderes fazer na mão antes de te deitares!

Era a tua maneira de me esbranquiçar a cara, de me tornar bonito, de me tornar desejável para as mulheres, lindas como tu eras e de pele tão alva como Branca de Neve, como a tua. Infelizmente, foram nove anos desperdiçados de lavar a cara com chichi – que poucos, ou quase nenhuns futuros resultados positivos me trouxeram!

Daí que ultimamente, Madrinha, tenha pensado muito em Florianópolis. Não, nunca me falaste desse lugar, ou pelo menos não me recordo de jamais o teres feito. Quero que saibas, porém, que é um lugar muito lindo – nunca lá estive, mas já vi em fotografias. Mas a sua beleza não é o que me interessa, Madrinha. É que – coisa de todas a mais curiosa de entre todas as que tenho ouvido! – em Florianópolis, que também é uma ilha, as pessoas gostam de açorianos! Ouviste mal, Madrinha? Repito: naquela terra abençoada, as pessoas gostam de açorianos! Tanto, tanto, que até parece que os italianos, os polacos, os alemães (sim, até eles!) e diabos a quatro todos querem ser, ainda que não sejam, açorianos. E lá têm festas açorianas, e outras que não são mas que as pessoas insistem que podem ser, talvez sejam, com certeza que são – açorianas. E até há agora uma festa chamada Açor! E olha, Madrinha, não me importo muito que as festas do Espírito Santo – que por lá se chamam do Divino – sejam diferentes das nossas! E que importa que a farra do boi e o pão-por-Deus não sejam iguais aos nossos? Sabes que nunca me importei com touros e que o pão-por-Deus era para a gentalha pobre a que tu não me querias ver associado. Lembras-te das estórias que eu te contava, nas minhas visitas à Terceira depois de anos e anos de América, a muitos anos da tua morte, que na América os açorianos disfarçavam os nomes, às vezes a naturalidade, porque ninguém sabia o que era açoriano e, quando sabiam, não gostavam de nós? Ainda te lembras, pois não, de eu te contar a história daquela moça arménia-américas, que tinha umas sobrancelhas que pareciam um silvado por roçar, que conheci em Los Angeles e que gostava de mim mas suspeitava que, sendo dos Açores, eu era com certeza um indígena – e que, sendo-o, podia conspurcar-lhe o útero com o meu esperma e infectar-lhe os filhos com as minhas taras primitivas de selvícola?

8 comentários:

Paulo Assim disse...

Caro Daniel,
Como não consegui enviar-lhe por mail (desde há alguns dias) a resposta ao seu, transcrevo para aqui o mesmo, apesar de não ser o sítio ideal.

Sustive a respiração ao ler as suas notas, mas não vou contrariar o seu entusiasmo, que passa a ser também o meu.
Apenas faço três reparos:
- a segunda frase (da metáfora) transporta-me para duas análises diferentes sobre o fim da ditadura.
- «como o carinho» ou «com o carinho» ?
- acostumei-me a ver «Fructuoso» escrito com « c ». Na verdade não sei qual o correcto, se com c, se sem c .

Detalhes.

Sem mais,
um abraço.
Paulo

Paulo Assim disse...

Ah, e muito interessantes estas estórias do Cota Fagundes.
O que se aprende por aqui! Ou reaprende.
:)

Daniel disse...

Meu Caro Paulo
O que eu disse foi absolutamente sentido. Quanto à "metáfora inconformada e triste", não pensei que alguém pode entender que se trata de inconformismo e tristeza perante o fim da ditadura e não pela sua existência maléfica. Não sei se poderei fazê-lo, porque a capa deve ficar pronta amanhã, mas vou tentar alterar para algo mais claro.
Quanto ao "Fructuoso" do Gaspar, era assim que se escrevia, tal como ele mesmo, mas actualmente usa-se mais a forma moderna. Por isso pode considerar-se correcto "Fructuoso" ou "Frutuoso".
Um abraço.
Daniel

Daniel disse...

P.S. É mesmo "como o carinho". Quanto ao Cota Fagundes, é um dos meus heróis.

Ibel disse...

Um texto insólito numa narrativa em que o narrador não deixa de ser também insólito na caracterização que faz de si mesmo. Interessante é este encanto por Florianópolis que me trouxe à lembrança a "nossa" querida Cris.
A linguagem e a realidade são um pouco fortes,revelando uma realidade dura e um temperamento despojado de preconceitos.Bonita esta história na 1ª pessoa que espevita a curiosidade do leitor que fica com pena de não saber mais.Comprem o livro- dirás tu. E dirás muito bem.
Um grande abraço, Daniel!

Mar de Bem disse...

"...que na América os açorianos disfarçavam os nomes, às vezes a naturalidade..."

É por isso que já não tenho parentes na América a falar português...e são primos direitos!!! Não querem que o sotaque os identifique. A identidade não interessa. Interessa sim entrar no rebanho dos inidentificáveis...

Ao que isto chegou!

Daniel disse...

Margarida
Os meus primos que nasceram lá tambémm não falam Português.
Quanto aos nomes, alguns transformaram-se tanto que já nem se imagina facilmente o que seriam. Sabes por exemplo de onde veio Enos? Ora pensa em Inácio dito à maneira micaelense. É isso mesmo. Pior só o van der Haagen das tuas bandas que deu, em tempos idos, o Silveira...
E o teu nome, como ficaria ele na América? Daisy Dawn? Ou Daisy Waik-up-in-the-Dawn?
Um abraço.
Daniel

jv disse...

Daniel, eu na minha família tenho de tudo, tenho vários que lá nasceram (Canadá)que não só sabem falar português, como se sentem muito orgulhosos da sua origem portuguesa e exibem-no o mais que podem, adquirindo a dupla nacionalidade, usando símbolos de Portugal, como a sua bandeira, camisolas da nossa selecção,etc e que nos visitam regularmente. Agora no mês de Junho, por exemplo, chegam nove deles .
Há outros que já não foram a isto muito motivados e têm um comportamento mais de acordo com a educação que receberam.
Um abraço.
José Fernando.