domingo, 21 de março de 2010

Um Poeta da nossa casa (paráfrase sobre um poema de Emanuel Félix)

Emanuel Félix (1936 - 2004)

Como eu amo este poeta cá de casa!
(Da nossa casa, concha nove vezes repetida.)

            Discreto fabricante de palavras,
            Guarda o seu sonho como se guardasse o nosso,
            Como se lhe tivéssemos dado todos os poderes
            De dizer o que haveríamos de dizer
            Se o pudéssemos dizer.
            Como se nascesse nos seus versos
            O canto mudo da nossa casa nove vezes calada,
            Nove vezes cercada antes da própria fala.
            Nulo é o chão sob os seus pés
            Que anunciam a paz enquanto se ouvem palavras
            Tão suaves como todos os silêncios.
            E fica um rastro suave de bondade,
            Como um cheiro de pão quente
E de leite acabado de ordenhar.
            E qualquer hora do dia é sempre madrugada,
            Quando escutamos a inquieta maresia
            Onde começam as viagens possíveis
            Com santo e senha leves e frescos
            Como as folhas na Primavera.
            Não sabemos a cor dos seus olhos,
            Mas sabemos que neles também se acende o sol
            Quando as sombras pousam
Sobre a concha nove vezes repetida.

Esse o destino dos que anunciam a paz,
Com o talento imenso da bondade
E a bondade imensa do talento.

(De vez em quando
Deus tem momentos de generosidade como este:
Repete o Seu gesto criador do sexto dia
E dá-nos, sem que o saibamos merecer,
Um Homem assim.)

                               Daniel de Sá

13 comentários:

Mar de Bem disse...

"Como eu amei as raparigas lá de casa
discretas fabricantes da penumbra..."

tem um toque de sensualidade imanente no seu todo... e é Emanuel Félix.

Agora Daniel:

Agora, Daniel, acho engraçado como pegaste nisto duma forma tão cheia de expressão amiga. Tu gostas mesmo dele, para o homenageares desta maneira tão sincera e bonita, pondo em evidência sua Mãe, "concha nove vezes repetida" - linda esta imagem!!! Foste muito feliz e nós todos ganhamos com isto! Obrigada por mais esta beleza.

Daniel disse...

Margarida
Do Emanuel só guardo uma única mágoa. A de ter morrido. E por descuido em tomar os medicamentos para a diabetes.
Era uma alma imensa. Não sendo muito mais velho do que eu, tinha uma relação comigo como que de irmão e pai ao mesmo tempo. O quanto eu o admirava está expresso neste poema, uma das poucas coisas minhas que me atrevo a considerar como tal, embora nitidamente, como confesso, inspirado em poemas seus. Ou por isso mesmo, aliás.
Na última entrevista que ele deu (ao Sidónio, na RDP/Açores) o Sidónio leu-lho.
(A casa como concha é um eco de outro poeta terceirense, o Nemésio.)
Um abraço.
Daniel

Mar de Bem disse...

Oh, Daniel, eu li e senti que a "concha nove vezes repetida" seria o útero de sua Mãe, mas afinal eu estava um pouco longe da tua intenção já que seria a casa materna.

No fundo, sabemos que qualquer obra de arte é concluída pelas interpretações de quem a frui.
Neste caso poderíamos concluir que a imagem que "achaste" deu azo a pelo menos 2 leituras: a tua e a minha. Não está mal, pois não?

Ibel disse...

"Como se nascesse nos seus versos
O canto mudo da nossa casa nove vezes calada,
Nove vezes cercada antes da própria fala.
Nulo é o chão sob os seus pés
Que anunciam a paz enquanto se ouvem palavras
Tão suaves como todos os silêncios.
E fica um rastro suave de bondade,
Como um cheiro de pão quente
E de leite acabado de ordenhar."

Comentar às vezes estraga,sobretudo quando o canto nos emudece de espanto e nos enriquece para a aventura de novas palavras, ilhas por descobrir.

jv disse...

Daniel,penso que a publicação do poema que baseaste a tua paráfrase, é esclarecedor da genialidade de ambos e que na tua soberba recriação, revelas duma maneira surpreendente os laços da verdadeira afectividade que vos unia.
«(De vez em quando
Deus tem momentos de generosidade como este:
Repete o Seu gesto criador do sexto dia
E dá-nos, sem que o saibamos merecer,»
HOMENS ASSIM.
Exemplo genial de paráfrase.
Um abraço.
José Fernando.

AS RAPARIGAS LÁ DE CASA

Como eu amei as raparigas lá de casa

discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas por onde
saíam
deixando sempre um rastro de hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade da terra
do leite acabado de ordenhar


(se voltassem a passar todas juntas agora
veríeis como ficava no ar o odor doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como seixos
outras vezes tépidos como o interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas como as folhas
na primavera

não me lembro da cor dos olhos quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos lagos
do jardim com lagos a que me levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade

eu perdoava sempre e ainda agora perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o faziam
por ser esse o lado mau de sua inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa ternura
da ternura inefável do meu primeiro amor
do meu amor pelas raparigas lá de casa

Habitação das Chuvas (1997)

samuel disse...

Não conheci pessoalmente, mas sei de "fonte segura" que era uma grande figura, um enorme ser humano, um imenso amigo.

Abraço.

Daniel disse...

Isabel
Sem o poema do Emanuel o meu não teria qualquer valor. Nem sequer teria existido.
José Fernando
É óbvio que se trata desse mesmo. Obrigado por o teres trazido. Este e o sublime "Queen Nancy", do Vasco Pereira da Costa, são talvez os poemas que mais vezes li.. Vou lendo, aliás. Ah, e a "Cantiga partindo-se", do João Roiz Castelo Branco.
Samuel
Era isso mesmo, Samuel.
Três abraços. E um quarto, para a "fonte segura" do Samuel.

Anónimo disse...

Daniel,

A generosidade do amigo ao amigo generoso.

Deve ser muito bom ter um destes amigos para a vida. Daqueles que seja qual for a distância ou o espaço, não se esquecem nunca, tais são as raízes fincadas no nosso coração.

Beijinho

Francisca e Mafalda

Daniel disse...

Francisca e Mafalda
Que bonito, o vosso comentário!
É isso mesmo, queridas amigas.
Beijinhos.
Daniel

vovó disse...

Emanuel!
meu Amigo, desde a minha primeira adolescência. meu Mestre, meu vizinho (porta com porta), meu campanheiro de muitos e muitos serões de poemas, de cantigas, de conversas. de caminhadas ao Monte Brasil... um Homem e um Poeta Maiores!
Obrigada Daniel (também pelo abraço! :)...)

vou passando por aqui, sem fazer alarde...
beijocasssss
vovó Maria

Daniel disse...

Vovó Maria
Então foi uma privilegiada. Um Homem para deixar fortes saudades mas também recordações tão belas como a sua própria alma.
Um forte abraço, Amiga.
Daniel

vovó disse...

fui... sou uma priviligiada! a vida tem sido muito generosa comigo. até a encontrar "Espólios"! :)

beijocasssss
vovó Maria

Daniel disse...

Ó Vovó, obrigado. E eu hoje, além da sua companhia aqui, tenho o privilégio de ter connosco cá em casa as nossas duas netinhas. Dos netos só falta o que obriga a dizer "netos" o conjunto das duas netas mais ele.