Caim e Abel (Simon Vouet e Pietro Novelli, 1620)
Os rios Tigre e Eufrates haviam formado a ubérrima planície da Mesopotâmia. E aí se fez Babilónia, uma das primeiras e mais importantes cidades da história humana. No início do século VI a. C., Nabucodonosor atacara Jerusalém, destruíra o Templo e levara prisioneiros muitos milhares de judeus. E foi durante esse doloroso cativeiro, que só haveria de terminar com a libertação de Ciro, em 538 a. C., que grande parte da Bíblia foi composta. O Génesis, que recolhe muitas histórias e mitos do Médio Oriente, foi um dos livros que se escreveram na cidade opressora.
Babilónia representava para os judeus a incarnação do mal. E fora a agricultura a tornar possível a vida sedentária e a criação de cidades. Estas aparecerão em vários momentos do Antigo Testamento como lugares de perdição. Sodoma, Gomorra e Nínive são dos exemplos mais conhecidos. E a própria Jerusalém será com frequência amaldiçoada por profetas que desse modo a acusavam dos pecados que o povo de Deus tantas vezes cometeu.
Em oposição ao mal urbano, estava a vida livre, isolada e vagabunda dos pastores. E os Hebreus haviam sido um povo essencialmente dedicado à pastorícia. É deste contraste que nasce a história de Caim e Abel. O agricultor Caim mata o irmão, pastor, levado em parte pelos ciúmes que sentiu por causa de Deus não ter aceitado o sacrifício que Lhe oferecera. Mas, segundo o autor bíblico, Deus não recebeu a oferenda com agrado porque conhecia o íntimo de Caim, propenso ao pecado. De tal maneira que, depois de fugir da sua terra e dos remorsos do seu crime, ele haveria de fundar uma cidade, precursora de todas as Babilónias do Mundo. Caim é, de certo modo, a incarnação dos babilónios criminosos, e Abel a vítima inocente em quem o autor retrata o seu próprio povo.
Este é o fundamento moral da história de Caim e Abel. Um mito que dura há milhares de anos, e que, embora de um modo inconsciente, Hollywood contou inúmeras vezes nos seus filmes do género “western”. A diferença é que o herói que vem de longe, das imensas pradarias, para fazer justiça na cidade dominada pelo mal, triunfa quase invariavelmente. Ao contrário de Abel. Que fica também como símbolo de que todos os assassínios e todas guerras são fratricidas, porque todos os homens são irmãos.
É curioso o aparente paradoxo de Caim ter fundado uma cidade, apesar de viver nesse mundo bíblico em que só existiriam Adão, Eva e ele mesmo. Os autores do Antigo Testamento mostram-se, com frequência, pouco preocupados com questões lógicas, o que é a melhor indicação do carácter simbólico dos seus escritos. Pouco depois deste episódio de crime fratricida, é-nos apresentada uma fantasiosa genealogia de Adão até Abraão. O que é uma forma de afirmar o povo hebreu como descendente do primeiro casal humano, que, tal como consta em outros mitos do Médio Oriente, fora formado do barro pelas mãos do próprio Deus.