sábado, 21 de março de 2009

A Batalha da Salga


(Continuando pela Terceira, aqui vai uma versão possível da batalha da Salga, destinada ao livro Terceira, Terra de Bravos, a publicar pela Ver Açor. As narrativas do combate não são coincidentes, pelo que há que escolher a que pareça mais lógica. Toiros bravos é que não houve lá, de certeza absoluta.)


Estando já Portugal dominado por Filipe II, resistia apenas a Terceira pela causa de D. António, e com ela, embora com pouca força para argumentos guerreiros, as demais ilhas que, por estarem na continuação da viagem para quem vinha do Reino, se diziam de Baixo. Como aquela, também dita de Jesus Cristo, era tida por bastião respeitável, veio tentar vergá-la à vontade da majestade estrangeira um dos seus melhores capitães, D. Pedro Valdez. Ora, para maior certeza na vitória, este deveria esperar pelos navios que traziam D. Lopo de Figueiroa e a sua gente de armas, mas um primo convenceu-o a conquistar a ilha sem outra ajuda, tanto mais que lhe dissera um homem do Faial que a Terceira era por El-Rei Filipe, não havendo nela mais que quatro gatos capazes de combater por D. António. Em breve saberia, com duras penas, que os gatos afinal eram muito mais que quatro.

Era o dia 25 de Julho de 1581. A tropa castelhana desembarcou na baía da Casa da Salga, e facilmente saiu vencedora nas primeiras escaramuças. Não temos informação de como souberam da sua beleza ou de como a viram, mas consta que o troféu do saque que, só de imaginado, mais apeteceu à soldadesca foi Brianda Pereira, mulher muito formosa, cujo marido e um filho foram feridos gravemente, tendo-lhes sido saqueada a casa. Em vez de pranto e orações, Brianda terá querido vingar a ofensa ao marido, ao filho e à casa, incitando homens e mulheres a atirarem-se aos castelhanos como se estes fossem mouros e os de terra São Tiago, cuja festa nesse dia a Igreja celebrava.

Embora maior o número dos que defendiam do que o daqueles que atacavam, a tropa invasora estava mais bem armada e treinada para os jogos guerreiros do que os de terra, a maior parte dos quais pouco mais sabia do que de rabiças de arado e cabos de enxadas. Pelo meio deles se movia Frei Pedro da Madre de Deus, qual cavaleiro do Apocalipse, que entre bênçãos e maldições se tornara um verdadeiro mestre de campo. Dizem umas crónicas que empunhava uma espada, outras afirmam que era uma bandeira. Vendo o frade que aos que defendiam a honra da ilha e de D. António tanto faltavam forças como armas, ainda para mais que os castelhanos já lhes haviam roubado algumas, aconselhou Ciprião de Figueiredo a que fizesse juntar a maior quantidade de vacas que fosse possível, para acudirem aos homens que sozinhos se não podiam valer. Postas cerca de cento e cinquenta delas em fila mais ou menos ordenada em terrenos sobre a baía, logo os defensores, deitando abaixo um muro, as assustaram tão de surpresa, com aguilhoadas e fogo de arcabuzes, que umas oitenta se lançaram como loucas pela ladeira abaixo. Sem ter outro lugar para onde fugir e sem saber como proteger-se da carga da vacaria, os castelhanos foram-se deitando ao mar, enquanto muitos iam deixando já os corpos pelo caminho. Foi tal a pressa de salvar a vida que quase nenhuns se preveniram contra a morte. Havia quem não soubesse nadar, pelo de nada servia querer ir pelos seus próprios pés e mãos para os navios; e havia os que estavam tão pesados pelas armas e armaduras que de modo algum podiam manter o nariz à tona de água. Por isso foram ali mortos sem dó humano nem piedade cristã, ainda que alguns, esquecidos da prosápia e da sua condição fidalga, tivessem implorado o perdão que, caso se trocassem as posições de vitória e de derrota, certamente não estariam dispostos a conceder. Entre eles um sobrinho do marquês de Santa Cruz e o tal primo de D. Pedro Valdez que o convencera a atacar sem precauções maiores do que as poucas que teve.

Diz António Herrera, talvez com algum patriotismo, que dos castelhanos morreram uns quatrocentos soldados e alguns chefes. Mas consta que teriam desembarcado cerca de mil e que não foram muito mais de meio cento os que puderam ver seu corpos alçados aos convés com a alma dentro. Na ilha chorou-se menos de trinta mortos, e no dia seguinte celebrou-se ofício divino a agradecer por todos os outros e pelas vidas que na ilha estiveram em perigo e se salvaram.

11 comentários:

Anónimo disse...

Daniel,
Agora percebo a importância das touradas na Terceira.
Bom retalho narrado do Portugal de Quinhentos.Enquanto houver Briandas Pereiras,Portugal não sucumbirá às mãos do(s) inimigo(s).
Abraço

samuel disse...

"os castelhanos foram-se deitando ao mar, enquanto muitos iam deixando já os corpos pelo caminho."

E por vezes, duas linhas justificam a leitura de todo um texto, o que não sendo justo para com todas as outras palavras que honestamente e com brilho trataram de contar a história, dá um grande gozo!

Abraço

Cris disse...

Daniel meu querido
Há pessoas com um talento tão extraordinário para contar histórias que quando a lemos,podemos mesmo ouvir sua voz.E sempre,sempre mesmo ao chegar ao ponto final,lamentamos ,fica o tal gostinho de quero mais.
Um montão de beijos

Mar-ia disse...

Meu querido Daniel
Se não fora as mulheres (e nesta, também as vacas, que fêmeas são) a história seria muito mais enfastiosa...
O relato valoriza o feito para os da terra, mas convenhamos, deve ter sido verdadeiramente arrepiante!
Ficamos à espera de mais folhas, da terra dos bravos, ou de outras. Que as há, brandas ou altas.
Conta-nos, p.f. Somos olhos e ouvidos

Mar de Bem disse...

Daniel:
Esta história foi-me contada pelo meu também precioso Amigo Álvaro Monjardino, que me levou a ver o que resta da Casa da Salga, que o Governo Regional devia mandar preservar. O ar de gozo que ele empresta à narrativa, quando fala no fogo que atearam aos rabos das vacas, que sem dúvida, mesmo fugindo, não se livravam dele.

Quero dizer-te, Daniel, que o teu contar está cheio de graça. Do princípio ao fim. É por isso que nos prendes, no prazer da leitura. Sabes? Há aqui um misto de erudição e de linguagem coloquial, o que torna fantástico este teu texto. Assim apetece ler!
Houvera mais gente como tu e não faltariam leitores!!!

(vou mandar-te fotos do que resta da Casa da Salga, entre bastante matagal!)

Daniel disse...

Dica, o melhor ainda era não haver inimigos.
Samuel, depois de ler o teu comentário, disse a Maria Alice, minha mulher: "Consola escrever para quem sabe ler."
Cristina, prefiro que fique esse gostinho de querer mais do que o cansaço de ter lido mais que o necessário.
Mar-ia, pois mais dia menos dia aqui virá a segunda parte da batalha, que foi dois anos depois.
Mar de Bem, e o que fizeram à orla da baía é o desastre do costume. Foi acimentada para os banhistas não magoarem os augustos pezinhos nas pedras. Quanto à linguagem coloquial, parece que adivinhaste. O texto é mesmo como que uma longa carta a uma pessoa muito amiga.
Obrigado a todos.
Abraços.

Anónimo disse...

Acabada de chegar da Serra da Estrela de uma viagem de estudo, eis-me de volta aos Açores, espólio de magna sabedoria.E senti um Fernão Lopes do sec XXI que me soube tão bem quanto o presunto da serra, mais o queijo da dita ainda coberta de neve.
Pois é, Daniel de Sá,ele há mulheres do diabo,vá-se lá saber porquê.E mesmo as ditas vacas ,também elas fêmeas, quando se desmandam é um ver se te corres...
Têm-se aprendido histórias e história,no lado de «cá»,vindas da ilha do Sá...
Abraço,poeta de Deus!
E venha o resto...

Daniel disse...

Querida Lia, se gostas de queijo da serra e de presunto de onde quer que seja tanto como eu, corro o risco de pensar que atingi a perfeição... Sei bem que não, e que grande parte do teu apreço pelo que escrevo vem da grandeza da tua alma.
Um abraço.
Daniel

Mar de Bem disse...

Eu vou encher isto de ALELUIAS!!!

BOA PÁSCOA!!!

Beijos e abraços.

Paulo Almeida disse...

So mesmo Álvaro Monjardino para desvirtuar a historia.

Que pena nos dias que correm nao termos "Vacas" como as daquele tempo, de certesa que nao havia "sorte de varas"

Afinal foram vacas ou... na realidade foram touros.

Paulo Almeida
Emigrado nos USA

http://mynameisfairplay.blogs.sapo.pt/

Daniel disse...

Paulo, nenhum cronista fala de toiros. E, como não estive lá para ver, fico-me por quem viveu no tempo dos acontecimentos, o Gaspar Frutuoso.
Um abraço.
Daniel