Angra, a magnífica. Mais do que uma urbe monumental, uma cidade que é um monumento. Que cabe na paisagem de um olhar quando vista do alto da Memória. No obelisco que lá está, no lugar do primeiro forte que vigiou a cidade, presta-se homenagem a D. Pedro IV, que nela ganhou força para lutar pela liberdade. Angra renascentista e cosmopolita. Ligação entre o Velho Mundo e o Novo, entre a cultura europeia, que ia despertando de uma quase letargia de séculos, e a milenar sabedoria dos povos do Oriente. E, antes de na corte de D. João II se saber que o sonho da Índia se cumprira, soube-o Angra, por uma razão triste. Tentando salvar o irmão, que vinha doente, Vasco da Gama saíra de Cabo Verde, numa caravela ligeira que ali alugara. E, porque os ventos tornavam mais breve a viagem até à Terceira do que a ida para o Reino, a ela se dirigiu. Comandando o que restava da armada, seguiu para Lisboa Nicolau Coelho, a avisar El-Rei do sucesso da expedição. Se Paulo da Gama chegou ainda vivo, estava moribundo já. Segundo algumas vagas notícias antigas, talvez tenha sido sepultado no convento de São Francisco. Se assim foi, ninguém cuidou dos seus restos mortais quando no mesmo lugar se construiu o novo convento, que agora é museu da história da cidade, da ilha e da sua gente.
Angra, a vigilante dos mares, sede da Provedoria das Armadas. Riquezas imensas passaram pelo seu porto, muitas línguas se falaram nas suas ruas. Traçadas a direito e em largura, como nenhumas outras dos Açores, segundo plano inicial de Álvaro Martins Homem, quando o século XV estava ainda longe de acabar. Havia milhentas angras no Império, mas desta cidade bastava dizer Angra para se saber de qual delas se falava. O resto do nome que hoje lhe pertence haveria de ser-lhe concedido como se de uma condecoração por bravura se tratasse.
Angra não se mede em quilómetros quadrados nem em número de habitantes. A sua grandeza está, sempre esteve, na grandeza da sua gente. Do heroísmo, da alegria, da fraternidade.
Foi há muitos anos que os meus olhos estrearam, maravilhados, a visão desta cidade, a mais antiga dos Açores. Nesse tempo, a costa Norte de S. Miguel era como que um prolongamento cultural da Ilha de Jesus, porque nos aparelhos de T.S.F. aqui só se ouvia praticamente o Rádio Clube de Angra. Mas a primeira visita que fiz, pouco depois de ter posto os pés em terra e deixado a ligeira bagagem numa pensão da Rua de Jesus, não foi ao Rádio Clube nem ao esplendor do palácio dos Capitães-Generais. Nem a um qualquer, ao acaso, dos monumentos da idade de oiro e do oiro da cidade que dominou o Atlântico. Como peregrino a cumprir um voto ou um sonho que vinha dos tempos da infância, apressei-me a ir à Sé. Extasiei-me com aquela abundante beleza que transbordava dos altares rutilantes para dentro da própria alma. Depois disso, ao longo dos anos, fiz dela uma visita habitual sempre que passei em Angra do Heroísmo. Ainda que, em vez de vários dias, fosse essa passagem de umas horas somente. Por isso, quando a catedral que resistiu sem danos irreparáveis ao sismo de 1980 ardeu quase por completo, um pouco de mim se esvaiu no fumo do incêndio. Entretanto, e até que os escombros fossem limpos e a maior parte da cidade reconstruída, quando tive de voltar a Angra evitei o mais possível passar entre os montes de pedras que recordavam tristemente aquele doloroso primeiro dia do ano.
Angra do Heroísmo não requer guia nem mapa. De qualquer ponto dela se avista, como referência segura, uma torre ou o Monte Brasil. E, se houver engano no caminho mais curto, tanto melhor. Talvez se passe por uma casa antiga, ou por uma ruela secular, que nos falam da cidade num silêncio tão eloquente quanto os nobres solares dos homens ou as belíssimas igrejas de Deus.
Mas Angra não se acaba onde o mar começa. Aí é que está, ou por aí é que se fez, o principal da sua história. Quase sempre gloriosa, mas também trágica. Como um náufrago que morre na praia, muitos navios soçobraram à vista do Monte Brasil ou do Cais de Pipas. Abundam por ali os restos dessa aventura trágico-marítima que o Velho do Restelo sabiamente profetizou.
Por isso, mais do que a nobreza dos seus palacetes e o esplendor doirado de templos como o da igreja do Colégio dos Jesuítas ou do convento de São Gonçalo, foi o destino marítimo da ilha de unir as Índias do Oriente e do Ocidente que fez com que a UNESCO declarasse Angra como Património da Humanidade. E, uma vez mais, a velha urbe viu serem-lhe restituídos os pergaminhos da glória de ser universal.
38 comentários:
Do melhor que li nos últimos tempos, fabuloso. Parabéns - vou reler...
Haja Saúde
Engraçado, Daniel, tu falas de Angra como quem fala da Tia-avó que se venera, mas não se tem todos os dias.
A maneira como interpenetras na alma da cidade, com um respeito que se tem quando se conhece profundamente, é bem sentida neste texto. Conhecer a alma, não pressupõe conhecer exaustivamente as ruelas. É uma questão de coração, ai, ai!
Angra foi a minha primeira cidade. Porque vizinha. Talvez por isso permaneça intacto e solene, o mito. E a grandeza.
Há segredos que se sentem no respirar da cidade, outros coisas que se espraiam. Que tocam, sem se misturarem nunca. A história e a festa. O passado que é orgulho o futuro que é, a angra.
Tu Daniel sabes tocar-nos sempre.
Arrasadoramente comovente este texto.
Obrigada.
mar-ia
Tibério e Mar de Bem
Vou revelar a origem e a finalidade deste texto. A Ver Açor, a minha editora, vai publicar um livro-álbum sobre a Terceira. Eu iria escrever a parte histórica (já tenho alguns capítulos), enquanto que o meu amigo e excelente escritor Joel Neto teria a seu cargo a paisagem humana e natural. Ora ele está com muito trabalho, e não pôde cumprir. Então eu atrevi-me a tentar o duplo empreendimento, porque creio que amo o suficiente essa ilha para compensar com o sentimento o que faltar ao pormenor. Portanto é isso, Margarida, conheço-lhe a alma, quer a esta cidade quer à sua gente.
Obrigado aos dois por me terem acompanhado no passeio.
Um par de abraços.
Olha, meteste-te na conversa, Ma-ria, sem eu ter dado por isso. Bem me parecia que andava alguém mais por aqui.
Imagino-te menina e moça no Liceu. E compreendo que Angra te tenha ficado no coração. Pois se a mim ficou e está, e nunca passei lá mais do que uma semana de uma vez... E essa semana, a da primeira visita, foi quando estarias nas férias talvez do teu 4º ano.
Fabuloso pedaço de alma, esta Angra amada por um micaelense. Prova maior de que estas ilhas não se acabam onde o mar começa... Merece um post n'A ilha dentro de mim. Saudações faialenses.
Texto magnífico que incita à compra de um bilhete de avião para ir conhecer Angra.As ilhas já me namoram há muito tempo, mas eu sou um bocado bicho da toca.Nem entendo bem porquê.Mas eu vou.
Fantástica é a forma como combinas a História com a poesia da palavra clara.
À Ilha (também) dentro de mim
Sei que há quem não me considere um bom açoriano porque não gosto do nosso hino (uma aberração), nem da bandeira (imitação oportunista de outra que nos dividiu durante uns tempos de loucura) nem do brasão (um anacronismo). Mas confesso que amo todas estas ilhas sem excepção. E isso de amar não é sequer um acto voluntário. Ama-se porque se é assim mesmo. Ou porque aquilo que se ama merece mesmo ser amado.
Lia, já me "ouviste" dizer que o tema é o principal para que uma pintura, uma peça musical ou um pedaço de prosa ou de poesia resultem. É este o caso. Angra é provocadora. No melhor sentido da expressão.
Daniel
Foi através de palavras como estas,assim tão sonoras, que chegastes em minha alma.Com a força e vibração de uma Sonata.
É preciso muita coragem para ser Ilha assumida.
Tuas palavras também são provocadoras no melhor sentido da expressão...
Daniel,
Nem uma palavra sobre as touradas.É de estranhar!
Carmélio
Isto é só sobre Angra cidade. Como disse aí acima, faz parte de um texto para um livro-álbum sobre a Terceira. Falarei das touradas, sim, mas sobretudo daquelas de que gosto, as touradas à corda.
Nesse caso Daniel, seria melhor o título "A Angra de que gosto."
Mas tu é que vais subscrever o trabalho e não eu.
Depois de ler este belo texto que me trouxe à memória muitos anos de da Angra, "querida Angra" - Coelho de Sousa - só me resta enviar ao seu autor - que já não vejo há muitos anos - um forte abraço de amizade.
Marcélio,
se quiseres eu escrevo os textos e tu pões os títulos.
Anónimo,
abraço recebido e retribuído, apesar de não imaginar quem sejas.
Carmélio
Desculpa a troca do nome. Não foi por maldade, mas por inexplicável descuido.
Daniel,
Para eu manter o meu espírito de contradição, até te digo que não trocaste o nome, mas apenas o lugar de duas letras.
Daniel, quem sou eu para por os títulos nos nossos trabalhos!?
Daniel,já me ri com o «Marcélio».É tanto e de tanto e com tanto mMar envolvente que,sem querer, te saiu Mar/célio em vez de Car/mélio.
Celio é uma marca de roupa francesa.Mélio,se lhe retirarmos a segunda sílaba e o acento,fica o dito sistema Meo, que é o que está a dar.
Parafraseando Frei Jorge-«Carmélio,quem és tu?»
Daniel,gostei da Angra que nos descreves.Cada vez que as ilhas vêm à superfície,mais vontade sinto de as conhecer.Mas ficam tão longe...
Um abraço
Dica,
Isso é o Jorge do Frei Luís de Sousa? (Mendigo, quem és tu?)
Ah Garrett, que sabor nos davas se voltasses..........nunca imaginaste que o liberalismo ia desembocar nesta panaceia/desgraçaria do neo-liberalismo.
Olha, já que misturaste o mar nesta cavaqueira, na Maia apenas me lembro dum Borges e dum Bonito, ambos gadelhudos, mas ali para os lados de Santa Clara sou mais conhecido do que o Coliseu Micaelense, uma ruína.
Bem, o anónimo acima sou eu....carmélio
Calma,Carmélio,que o «gadelhudo» do Frei Luís de Sousa-o Romeiro-merece respeito.Muito.Não quero com isto dizer que os supracitados também não o mereçam.
Se Garrett cá viesse,diria:Liberalismo,que te fizeram?E continuaria:ó Portugal,precisas outra vez de sangue novo,precisas de novo da nossa voz!
Dica,
Não é só Portugal que precisa de Briandas Pereiras, mas onde todo o bicho-careta junta as duas mãos, dedinho contra dedinho, ajoelha-se e se rende ao senhor cifrão.
Isto é que vai aqui um caldo de cultura, qual salsugem que saíu de angra e rumou ao norte...
Mas o Daniel que escreve sobre a Terceira, se não deixa os toiros em paz, que são de ontem e de hoje, decerto vai acrescentar factos sobre a presença de Gungunhana, uma figura de referência e ainda mítica dos últimos 100 anos, que Samora Machel levou (???) para Moçambique
Carmélio
Tenho bons amigos em Santa Clara. Não sei se passas a sê-lo também agora ou se já o és há muito tempo. É que o tipo da tua argumentação é semelhante ao de um deles. Dou um exemplo. Quando os pais fizeram 25 anos de casados, ele tirou algumas fotografias ao grupo em frente à igreja, nas quais eu deveria aparecer de corpo inteiro. Não apareci eu nem ninguém que tivesse estatura acima do metro e meio. Não se pode dizer que as fotos não tivessem pés nem cabeça, mas acontecia que ora se viam os pés sem a cabeça ora esta sem aqueles. Quanto aos da ponta direita só apareciam sob condição de não serem vistos os da esquerda, e vice-versa. Questionado acerca da obra de arte, justificou-se que, se tivesse de pôr os pés no retrato, não havia lugar para cabeças. E o contrário também era válido. Mutatis mutandis, o mesmo se aplicava aos de cada uma das pontas. Claro que havia espaço mais que suficiente para ele ter dado um passo atrás...
Borges e Bonitos na Maia? de bonitos sei eu, de Bonitos não estou a lembrar-me de nenhum. E, de Borges, actualmente, só algum de passagem.
Mar-ia,
esse e o Afonso VI hão-de ser falados no capítulo sobre a fortaleza de S. João Baptista, que aliás está quase pronto.
Daniel,
Se fossemos amigos há muito tempo, tu sabias, pois "Carmélio" é o meu nome de nascimento.
Não me lembro do primeiro nome do Borges mas sei que o Bonito era Mariano.
Gostei do caso da fotografia..... (risos)
Um abraço!
Daniel - O anónimo das 9.56 de 15 de Março era eu - Emilio Porto. Desculpa a minha falha, logo da primeira vez que te descobri no "Espólio". Será que o nomer já aponta para o fim?
Não acredito, tu fodte sempre um homem de sonho. E quem sonha nunca morre. Um abraço e felicidades.E.Porto
Bonito este último parágrafo.Bonito.
Carmélio
Tu quoque?... Bem te disse que aqui "bonitos" só destes. Esse Mariano é da Lomba da Maia, de que até foi presidente da Junta. Trabalhava aqui num balcão de um banco. Quanto a Borges, deves estar a referir-te ao Padre Ernesto Borges, natural da Fazenda. Tem cá uma irmã e sobrinhas, Castanho da parte do pai, e parentes do Craig Mello.
M. E. Porto,
que surpresa! Abraço bem merecido, o que te enviei por esta via. Há que ror de tempo não nos vemos, caríssimo! "O Espólio" foi ideia do meu filho, quer no nome quer na existência. Irei deixando aqui umas coisinhas, e confio em que Deus mo permitirá por algumm tempo.
Um forte abraço, artista.
Daniel
Daniel,gosto muito da tua escrita,mas mais ainda, do teu sentido de humor.Já to tinha dito,tempos idos.Bota cá prá gente esse petisco,que é delicioso.Olha,são poucos os que,com engenho e arte,conseguem pôr as «perlas» à janela!
Tenho um irmão que tem um sentido de humor,que só visto!Não foi por acaso que o epitetamos como « O Humorista Residente».Quando o moral anda por baixo,sabe-me bem ouvi-lo e entrar também em cena.Mas nem todos foram tocados por essa arte.
Abreijos.
Dica
E o Daniel vociferar para os perigos da internet, como se ela, a dita, não nos trouxesse destes presentes (quase) divinais?
O Emílio Porto!!!
Pois não é que ele me disse há bem pouco tempo, que usava o telemóvel com dificuldade? Será que descobri que ele é (agora) mentiroso???
Qual quê, este senhor não só põe os coros a cantar, ele não só inventa músicas, ele é verdadeiramente um criativo, para quem nada é proibido.
BEM VINDO À BLOGOSFERA.
Um coro de AFECTOS para um picaroto de prestígio,com montes de saudosos abraços.
Mercês
Dica e Mercês
O humor, sempre que possível, há-de aparecer por aqui, se Deus quiser. E o melhor dos blogues é muitas vezes o que vem dito nos comentários.
O Emílio Porto foi uma agradabilíssima surpresa para mim. Quantas vezes me lembro da cena em que ele e eu estivemos a analisar a melodia que nos foi imposta para ser votada para hino dos Açores! Quantas vezes me lembro de outros momentos de bom convívio!
Quanto à Internet, tem coisas do arco-da-velha. Soube ontem, por um blogue de alguém universitário, que o Gaspar Frutuoso disse que o Tsunami que resultou do terramoto de 1755 chegou à Horta vinte minutos depois de ter passado na Terceira! Século e meio depois de morto o homem ainda escrevia!
Quando o Rodrigo puder, vai aparecer por aqui uma descrição da batalha da Salga, a respeito da qual há erros grosseiros, inexplicáveis mesmo, na tal Internet.
A Lia acha-se mais velha.
O calendário segue o seu rumo e ela não desmente em:
http://frutosdemimemar.blogspot.com/
Bons sonhos
Em vez de comentar este magnífico texto sobre o melhor de uma magnífica cidade, o que eu gostava mesmo de saber é porque raio não hão-de os livros de História ser ao menos parecidos com "isto"...
Ó Samuel, que agradabílissima surpresa! Nunca imaginei que viesses aqui parar. Obrigado por o teres feito e pelo que dizes.
(Nota para algum eventual leitor- Este Samuel é o famoso cantor de Abril, afectivamente ligado aos Açores, mas sobretudo à Terceira, por se ter casado com uma das nossas mais queridas cantoras.)
O Samuel da Maria do Amparo?Se é,seja benvindo.Há muito tempo que essa voz doce e melodiosa da Maria deixou de se ouvir nos média.O Manel falava-me dela quando por cá estudou.
Daniel,parabéns,hoje é o teu dia e o de todos os pais,pois é o 19 de Março .O meu já partiu,mas mimei-o na mesma.
Abraço
Sim, Eduarda, é esse mesmo. Vê lá se não tenho razões para estar feliz com a visita.
Obrigado pela referência ao dia do Pai. Perdi o meu muito cedo. Foi o dia mais triste da minha vida.
Um abraço.
Daniel
Claro que tens.Vê lá bem os benefícios da blogosfera!E quando se trata de visitas de alguém que nos traz Abril,imagina só!
Abraço
Caro Daniel!
que gosto aportar ao seu Espólio e voltar a ler os seus belos escritos! fui avisada deste cantinho ilhéu, sabe-se lá por quem :)...
bem hajam! o meu amigo e o (culpado) do seu filho:)
resolvi dar-lhe o meu abraço as boas vindas, neste post, por razões óbvias :)... então, uma pensão na R. de Jesus? lá nasci e vivi, durante 21 anos. ainda retenho o seu cheiro a maresia, a madre-silva...
irei ficando por aqui, ancorada...
Eduarda... Manel... não estou a chegar lá... posso ter alguma dica? obrigada.
beijocassssss a tutti
vovó Maria
Vavó s'abence!
Sim, na Rua de Jesus. E chamava-se mesmo Pensão de Jesus. Sítio estratégico para andar por toda a cidade. Nesse tempo (1966) não havia hotéis... nem dinheiro para eles. A outra pensão era a de Lisboa, na rua com o mesmo nome. Esta era de "luxo".
Pois que seja bem-vinda e, se lhe apetecer, bem "estada".
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