domingo, 9 de maio de 2010

O cagarro

Cagarro (Calonectris diomedea ), em algumas ilhas dito "cagarra", ave da família das pardelas. 


Acabaram-se as ceifas e as debulhas, as vindimas e o vinho doce. O pão a haver foi guardado nas casas-de-milho, os garajaus e os cagarros rumaram a Sul. Quando já com os primeiros frios do Outono apetecia aconchegar mais roupa ao corpo e mais mantas na cama, António descobriu num canto do quintal um casal de cagarros que haviam interrompido a viagem acabada de começar, porque um deles estava doente.

Nunca roubara um ovo àquelas nem a outras aves, a não ser uma vez, muito criança ainda, de um ninho de canários. E até chegara a meter-se numa briga de pedradas com dois rapazes que se preparavam para pegar fogo a um cagarro que se perdera em terra. Rachara uma das cabeças, e fugira para a justiça que a mãe não tardou a cumprir, porque ainda corria o sangue da ferida aberta pelo tiro certeiro e já a avó do ofendido esbracejava rua abaixo, gritando de tal modo que poderia ouvir-se em Ramá, se ela fosse Raquel e outra a geografia. Garantiu que o neto estava às portas da morte, com menos um alguidar de sangue nas veias e marca para toda a vida na cabeça, se escapasse. Pelos berros que ele deu e pela velocidade com que fugiu aos gadanhos da mãe quando esta lhe desinfectou a ferida com aguardente, facilmente se teria percebido que seria imortal se a cabeça fosse o seu calcanhar de Aquiles. Ficar-lhe-ia de facto para sempre a cicatriz, no caminho de passagem da risca do cabelo penteado para a direita, inaugurando uma nova alcunha na família, o “Cabeça Rachada”, que passaria aos filhos e aos netos por via varonil. A aguardente reabrira-lhe alguns capilares que começavam a fechar, e o conjunto dela com o sangue escorria pela cara e pelo pescoço até à camisa encardida, como se fosse o Cristo dos Terceiros. Um dos irmãos assistia à retirada com um espeto na mão, cheio de teias que fora escarafunchar nos buracos dos carochos, que eram do melhor que havia para estancar hemorragias daquelas. A mãe veio à porta e proclamou “urbi et orbi”: “Se apilho aquele demónio, racho-lhe a cabeça do outro lado, alma do diabo!” Entretanto a avó garantia à mãe do justiceiro que o neto era um anjo sem mácula e António um ferrabrás.

Aquela não fora a primeira desinfecção tentada, porque haviam pedido ao irmão mais novo que urinasse na ferida. O pequeno, que no Verão já não andava com o rabo à fresca nem o arrastava no chão de terra batida da casa até ficar negro, e roxo do frio, não o conseguiu por vergonha, ao mesmo tempo que a desorientação de vozes e correrias à sua volta o inibia e o alvo se mexia inquieto no seu campo de pontaria.

No dia seguinte, ao passar por acaso à porta do guerreiro em baixa, o doutor Fraga analisou os beiços da chaga. O rapaz esperneou e voltou a berrar desalmadamente enquanto a mãe e a avó o seguravam para o exame clínico feito por caridade. O diagnóstico foi o de que aquilo teria sido coisa para uns dois ou três pontos, mas que não vinha mal nenhum ao mundo por não ter levado os agrafos. E, ao ver a persistência da gritaria que acompanhava o espalhafato dos gestos, afirmou que não havia perigo de infecção porque ele não podia lamber o lanho. A mãe que lhe pusesse um pouco de tintura e, se a não tivesse, repetisse a dose de aguardente. Dose repetida imediatamente, ante a ideia de ser lavado com cachaça outra vez, foi a da gritaria e dos pulos descontrolados, que serviram de pretexto para que a mãe, impaciente e descansada porque não cabia a morte por aquele postigo aberto no casco do filho, o desancasse por conta do petróleo que lhe roubara para pegar fogo ao cagarro.


(Do romance A Terra Permitida)

6 comentários:

Mar de Bem disse...

RAPAZES!!!
E malinos...

Ibel disse...

Um castigo merecido, mas macabro...
Gosto tanto, mas tanto de ler-te!Nunca me fatigo.
Abraço e dá notícias!!!!!

Ibel disse...

Esquecia-me de dizer que adorei ouvir as Czardas.Ainda esou a ouvir...Só bom gosto por aqui.

jv disse...

Daniel,como isto é tão verdadeiro.
Eu não conheci o mítico Doutor Fraga, mas toda a minha vida ouvi falar dele e da sua obra que ainda felizmente anda por aí, mas conheci muito bem o Dr Alick Pavâo que foi um protagonista idêntico destas cenas das quais o teu relato mas avivou. Só lamento não ter tido a coragem(ou a força) do António, mas a aflição dele deverá ter sido igual à minha,pois a crueldade porque passavam os cagarros às mãos daqueles «algozes» ainda hoje me persegue impiedosamente.
Talvez seja por isto que hoje ainda, sinto uma necessidade urgente de os salvar e de colaborar nas campanhas em sua defesa.
Do Dr Fraga gostava de lembrar um episódio relativamente recente.
Meu tio João, hoje com 88 anos, trabalhou desde os 10 anos com ele sendo dele uma companhia privilegiada fiel e assídua.
Numa visita, que fiz com o meu tio, ao Parque das Furnas, alguém perguntou que nome teriam aquela árvores, a que meu tio respondeu com nomes esquisitos, que de imediato o deixaram de ser, porque era precisamente os que lá estavam escritos. Meu tio que não sabe ler e ainda hoje conhecia os nomes científicos de todas aquelas árvores...
Depois duma minha ausência por aqui, por motivos profissionais, espero voltar depois de Junho, depois dumas ansiosas férias.
Até lá, um abraço a todos.
José Fernando.

Anónimo disse...

Olá Daniel,

Temos estado ausentes deste espaço. Está próximo o tempo dos exames, a safra dos estudantes, e nem sempre conseguimos fazer tudo a que nos propomos. Hoje, porém, prometemos a nós mesmas que descansaríamos o espírito com leitura, no Espólio.
Gostamos muito do texto, da descrição da "sangria desatada" na briga de miúdos. Saborosa leitura.

Beijinho Primavera

Mafalda e Francisca

Daniel disse...

Obrigado aos meus tão estimados visitantes.
No livro conto histórias autênticas do Dr. Fraga, mas esta foi imaginada, embora de acordo com o que sei mais ou menos ter sido a sua maneira de ser.
Abraços cheios de amizade, com desejos de boa sorte (sorte que elas já procuraram, de certeza) para os exames das nossas meninas muito queridas, Mafalda e Francisca.
Daniel