quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Auto do Plágio


Gonçalves Dias (fotografia encontrada em Portal Literário)

Num dia em que o Sporting apanhou três do Gil Vicente, não fiquei lá muito bem disposto. Para me vingar, brinquei a propósito de um poema publicado em dois jornais açorianos. Não haveria nada de mal se esse poema não fosse de António Gonçalves Dias, poeta brasileiro do século XIX, mas assinado por alguém vivo... E palavra de honra que nem sequer me dei conta da ironia: o que eu fiz foi uma imitação, embora mal feita, de Gil Vicente, o de outros dramas... Aqui o deixo.

Personagens:
Gonçalves Dias;
Anjo da Guarda;
Diabo.

ANJO – Aonde ides tão asinha?
G. D. – Vou ali e volto já.
A – Levais cara muito má...
GD – Mas a culpa não é minha.
A – De quem é, se a cara é vossa,
E tanto vai transtornada?
GD – Meu anjo, não há quem possa,
Ter cara bem figurada
Se nos rouba a canalhada
Uma coisa que é bem nossa
E que custou a ganhar 
Ou a fazer...
                      A – Pois então...
GD – Eu vou ali ensinar
Um descarado ladrão
Que pegou nuns versos meus
E sem vergonha os fez seus.
A – Ensinar um ignorante
É obra bem compensada.
GD – Mas este, que é um tratante, 
Ensino-o à bofetada.
A – Tende cuidado, que a ira
É muito má conselheira.
DIABO – Vai depressa, vai, atira,
Com pontaria certeira,
Ao focinho do impostor.
A – Não façais caso, senhor
Poeta António Gonçalves.
E se morreis condenado?
D – Que importa que não te salves
Se morreres consolado?
Dou-te boa companhia,
Que no inferno não falta.
Há lá tanta fidalguia, 
Da mais pequena à mais alta.
Há padres, frades e bispos,
Cardeais e arcebispos,
Papas até, podes crer.
GD – Mas com quantas bofetadas,
Gostaria de saber,
Mereço tal companhia?
D – Se forem muito bem dadas,
Com ira e raiva mandadas,
Eu até me atreveria
A dizer duas ou três. 
GD – Podes bem contar comigo,
Que, para tão ruim rês,
Eu juro que não consigo
Parar antes de umas trinta
Ou de quarenta talvez.
A – Não deixeis que ele vos minta.
D – Estou dizendo a verdade.
A – Não deixeis que ele vos tente.
GD – Mas não há cristão que aguente
Uma tão grande maldade.
D – Dá-lhe, Dias, dá-lhe forte.
A – Depois, na hora da morte,
Gostareis de ver sentado, 
Rindo à vossa cabeceira,
Este maldito enviado
Do inferno mais medonho?
GD – Meu anjo, por vez primeira,
Mais paciência vos peço
Para o empenho em que ponho
Minha ira verdadeira.
Depois, eu juro, confesso
Este pecado e os mais
Em que amiúde tropeço,
Pois sou fraco.
                       D – Se não vais
Ficas tão enxovalhado
Que dez dias de barrela
Não te deixarão lavado.
A – Por Deus eu vos esconjuro
A ter imensa cautela
E ser mais ajuizado.
GD – Eu afirmo aqui e juro, 
Está dito e destinado:
Aquele patife tem
A cara tão descarada
Inteira por tempo pouco.
D – Bem dito!
                     A – E o vosso bem?
GD – O meu bem é dar-lhe a sova.
A – Bem vejo como estais louco.
Ides condenado à cova.
D – Que este anjo não te iluda.
GA – Eu vou ser é justiceiro.
A – Se assim é, dou uma ajuda,
E sou eu quem dá primeiro.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Acordo ex corde?

(fonte da imagem Ouvido Visual)

"Qui vol d'amor venir a bon pòrt"

(Quem quer por amor chegar a bom porto – de uma canção provençal de Péire de Monlasur.)

Valha-nos Deus, que o argumento de autoridade prevaleceu no acordo sobre a unificação transatlântica do Português. Como ele foi preparado por linguistas, a nós, os vulgares utilizadores da língua, por mais que a usemos ficou-nos interdito opinar sobre o seu futuro. Ora o problema é que, se uns podem invocar a sua sapiência para dizer “vamos por aqui”, outros com igual garantia académica têm o direito de negar “não vamos por aí”. Pelo que, afinal, fica aberto o caminho para a autoridade da nossa própria opinião.

Fazendo eu claque com os do segundo grupo, abstenho-me de mais argumentos, até porque estes devem estar todos esgotados. Mas, melhor do que um acordo que parece destinado a instalar mais confusão, seria ensinar aos portugueses a história da sua língua. E tanto tem sido ela descuidada no último século e meio que se perderam centenas de palavras, substituídas por outras, como, por exemplo, a importação anglo-francesa “pónei”, que em português se dizia “faca”, e que Aquilino terá sido o derradeiro a usar, em O Malhadinhas.

O amor à língua e o seu conhecimento deveriam fazer parte do estudo do Português. Não com a dissecação maçadora de grandes romances segundo as modas do momento, mas com uma viagem no tempo da nossa literatura. Começando pelos contemporâneos e recuando a pouco e pouco – um conto do Eça, uma lenda de Herculano, uns sonetos e epigramas de Bocage... – até chegar às origens. Com estas mudanças graduais no léxico, na sintaxe e na ortografia, os alunos acabariam por compreender mais facilmente uma qualquer “velida mia senhor”. E, pelo meio, umas leituras de autores brasileiros ou africanos, para que se percebesse como, na mesma língua, se escreve de maneiras tão diversas e fascinantes. Talvez também um passo ao lado de lá da fronteira, para ver como da fonte que foi o latim “bárbaro”, e que conduziu ao galaico-duriense, evoluiu o galego sem grandes distinções do português. Ou até mesmo ir um pouco mais longe, ao provençal, “lenga romana”, como era definida para diferenciação do latim, língua culta de que estas outras vivem. Então estaríamos todos mais bem preparados para discernir se a hipotética e utópica unificação vale mesmo a pena, ou se a diferença se tornou, afinal, no mais belo exemplo da versatilidade da língua comum.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Carta de Eça a Fradique Mendes acerca das reformas sociais em Portugal (ficção)


Meu caro Fradique: certamente estarás lembrado da aposta que fizeste no Martinho. Por conta disso acabas de perder uma garrafa do melhor cognac, que convém não esqueças na próxima vez que vieres a Lisboa. Teimaste, e tanto teimaste que apostaste, que o António e o João não se casariam nunca. Pois acabam de se casar. Com quem, quererás saber de pronto. Sossega, que eu não te deixarei por muito tempo a coçar a pulga. Se é voz do povo que não há João sem a sua Joana, do mesmo modo se dirá que há sempre uma Antónia para um qualquer António. A maravilha maior, meu caro, o espanto, a anormalidade, o pasmo é que a Joana deste João se chama António e a Antónia deste António é de sua graça João. Sim, casaram-se um com o outro. Como!?... De fraque e flor na lapela. Razão para muito folgar como nem sequer imaginas, porque uma primeira vez é sempre ocasião solene, tanto importando tratar-se de fruta temporã como de baile de debutantes. E este casório foi, no género, uma estreia em Portugal. Pouco me importa a moralidade, ou falta dela, por que se irão juntando eles com eles e elas com elas. Desdenho desses julgamentos alheios, e é para mim indiferente que tal nova forma de acasalamento tenha o “placet” do Estado ou a “excommunione” de Roma, a quem, neste ponto, me vejo tentado a dar razão. O que me fere o sentimento é o não cuidar, ou mal cuidar, da Língua Portuguesa, que sempre foi feita pelo povo e pelos escritores de livros e jornais. Mas, enquanto as suas mudanças foram demorando séculos a acontecer, agora, de um dia para o outro, as Cortes decretaram a extinção do significado de uma das nossas palavras mais respeitáveis. Porque suas excelências não inventaram um sacramento profano, apenas deram, por decreto, um significado novo ao substantivo casamento. Meu estimado amigo, não sou de rezas nem de beatices, bem sabes, mas julgo que um pouco de Deus não faria mal a esta gente, embora tenha a convicção de que um descrente, sendo culto e educado, pode ser um cidadão tão exemplar como o mais santo dos santos. O pior foi este governo ter-se tornado ateu antes de ser culto e educado. Se fosse culto, não julgaria que escrever leis é governar; se fosse educado, não se arrogaria o direito de fazer dos corredores do poder uma imensa e lamentável Travessa do Fala-Só. E já consta nos círculos de má-língua lisboeta – os do costume – que o presidente do ministério, que defendeu em pessoa a lei nas Cortes, prepara uma lei em que seja reconhecido o direito de quem quiser se casar consigo mesmo. A isso se há-de chamar casamento unipessoal.

Disse Michelet, referindo-se àquele vendaval ético que é o Antero: “Se em Portugal restam quatro ou cinco homens como o autor das Odes Modernas, Portugal continua a ser um grande país vivo.” A desgraça, Fradique, é que, tal como Abraão não encontrou em Sodoma dez justos que aplacassem a ira divina, nem com lanterna à luz do meio-dia o bom do Michelet contaria entre nós metade disso. A que se deve este despautério, esta tontice engalanada, este deserto de ideias num governo tão cheio de cabeças? Acusa-se Lisboa de ser a culpada dos males do país, mas que é Lisboa ou quem é Lisboa? Lisboa é a província à procura de um lugar ao sol. Não há contabilista de Trás-os-Montes que não sonhe com uma carreira na capital, se possível chegando a ministro e talvez bancário. Não há regedor do Algarve que não sofra o desvario de julgar que um dia pode ser presidente do ministério. Nem há poeta de aldeia que não teime em chegar a bardo, de bebedeira e rima, nas tabernas de bairro e nas redacções dos jornais de Lisboa. A única condição é haver quem os promova. O resto é o trivial nestes avatares da vida. Porque, em Lisboa, primeiro se faz o nome e depois a obra.

É certo que da maior parte desta gente se poderia dizer o que disseste do comendador Pinho em carta a Madame de Jouarre “É o comendador Pinho um cidadão inútil? Não, certamente. Dum Pinho nunca pode sair ideia ou acto, afirmação ou negação que desmanche a paz do Estado.” O pior, meu caro Fradique, é que há Pinhos desses que sobem à glória efémera de se julgarem o Estado.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Casa do Pai


(Imagem encontrada aqui)

Casa do Pai

Seja a casa com portas só de abrir,
Sem grades nas janelas e sem aço.
E que nos aconchegue em cada abraço
Sem nunca ser abraço de ter de ir.

Seja a casa de estar, não de partir.
Que nos aceite, mortos de cansaço,
Com um beijo de amor por cada passo
Dado em muitos regressos, sem sair.

Uma casa que nunca nos pergunte
Que outras casas buscámos e que telhas.
Que toda a gente à porta se nos junte

(Quando algum dia a vida nos demore)
Com um ramo nas mãos – rosas vermelhas.
Mate o bezerro gordo, mas não chore.