terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Acordo ex corde?

(fonte da imagem Ouvido Visual)

"Qui vol d'amor venir a bon pòrt"

(Quem quer por amor chegar a bom porto – de uma canção provençal de Péire de Monlasur.)

Valha-nos Deus, que o argumento de autoridade prevaleceu no acordo sobre a unificação transatlântica do Português. Como ele foi preparado por linguistas, a nós, os vulgares utilizadores da língua, por mais que a usemos ficou-nos interdito opinar sobre o seu futuro. Ora o problema é que, se uns podem invocar a sua sapiência para dizer “vamos por aqui”, outros com igual garantia académica têm o direito de negar “não vamos por aí”. Pelo que, afinal, fica aberto o caminho para a autoridade da nossa própria opinião.

Fazendo eu claque com os do segundo grupo, abstenho-me de mais argumentos, até porque estes devem estar todos esgotados. Mas, melhor do que um acordo que parece destinado a instalar mais confusão, seria ensinar aos portugueses a história da sua língua. E tanto tem sido ela descuidada no último século e meio que se perderam centenas de palavras, substituídas por outras, como, por exemplo, a importação anglo-francesa “pónei”, que em português se dizia “faca”, e que Aquilino terá sido o derradeiro a usar, em O Malhadinhas.

O amor à língua e o seu conhecimento deveriam fazer parte do estudo do Português. Não com a dissecação maçadora de grandes romances segundo as modas do momento, mas com uma viagem no tempo da nossa literatura. Começando pelos contemporâneos e recuando a pouco e pouco – um conto do Eça, uma lenda de Herculano, uns sonetos e epigramas de Bocage... – até chegar às origens. Com estas mudanças graduais no léxico, na sintaxe e na ortografia, os alunos acabariam por compreender mais facilmente uma qualquer “velida mia senhor”. E, pelo meio, umas leituras de autores brasileiros ou africanos, para que se percebesse como, na mesma língua, se escreve de maneiras tão diversas e fascinantes. Talvez também um passo ao lado de lá da fronteira, para ver como da fonte que foi o latim “bárbaro”, e que conduziu ao galaico-duriense, evoluiu o galego sem grandes distinções do português. Ou até mesmo ir um pouco mais longe, ao provençal, “lenga romana”, como era definida para diferenciação do latim, língua culta de que estas outras vivem. Então estaríamos todos mais bem preparados para discernir se a hipotética e utópica unificação vale mesmo a pena, ou se a diferença se tornou, afinal, no mais belo exemplo da versatilidade da língua comum.

20 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Daniel:

Li com muito interesse este seu texto. Também faço «claque com os do segundo grupo». Já o tinha feito anteriormente, há uns anos, quando se tentou, pela primeira vez, instituir o acordo ortográfico.
Nessa altura fiz parte de uma subcomissão liderada pelo então presidente do Grémio Literário.
Quando voltaram à mesma teima, escrevi no «Sarrabal», em 27 de Maio de 2008, uma crónica com o título «Coisas da Velha do Arco - O Acordo Ortográfico», onde afirmo: «Continuo decidida a dar todos os erros gramaticais a que a mudança irá obrigar-me.»
Penso que o Daniel não a terá lido. Uma vez que aborda o assunto aqui, no «Espólio», gostaria que fosse até ao meu blog dar uma espreitadela ao texto. Poderá procurar no Google, escrevendo o
título. (Lá estou eu, provavelmente, «a ensinar a missa ao vigário»!) Depois do meu, há um outro texto que me foi enviado pelo Ruy Ventura, e que publiquei.
Nunca são de mais testemunhos de opinião como o seu, caro Daniel.

Abraço da Sol

Anónimo disse...

Olá Daniel,

Subscrevemos completamente o que argumenta.

"Membros" da claque do segundo grupo.

Mafalda e Francisca

jv disse...

ferida de morte, embora, por enquanto ainda possa resistir.
Como te sentirás a escrever com «erros» perante os teus netosDaniel, a segunda claque está e que culpa poderão eles ter, de escrever «correctamente»?
Para aqueles que a «Língua Portuguesa ainda poderia ser, de alguma maneira, a sua Pátria» foram traídos e arrastados pela degradação generalizada que por ela perpassa e que vai atingir inexoravelmente as geraçãoes futuras.
Assisto com enorme tristeza à banalização total da moral, da ética, dos costumes, à desresponsabilização e impunidade de quem nos gere, onde tirar dividendos políticos se sobrepõe à resolução dos reais problemas que nos afectam,à corrupção institucionalizada, à degradação total do poder judicial, a uma comunicação social,instrumentalizada, que se permite a tudo, menos ao seu verdadeiro papel, que seria de informar, anestesiando-nos da nossa capacidade crítica.
O importante, o pouco importante o nada importante sobrepõem-se ao
essencial e é neste contexto que surge este acordo ortográfico, que nos delapida na mais valia que é a verdadeira e natural evolução da nossa Língua, nas vertentes que aqui, neste blog, já vários de nós nos manifestamos.
Um abraço.
José Fernando.

jv disse...

Daniel a segunda claque está ferida de morte, embora, por enquanto ainda possa resistir.
Como te sentirás a escrever com «erros» perante os teus netos e que culpa poderão eles ter, de escrever «correctamente»?
Para aqueles...

Peço desculpa, mas era assim que deveria se iniciar este comentário. Não sei bem como estas coisas acontecem...
José Fernando.

Anónimo disse...

De há muito que estou na "segunda claque", porque sempre gostei do "português de primeira".
Língua que aprendi nos bancos da escola, com Eça, Herculano, Gil Vicente mas também com Vergilio Ferreira, Namora, Régio e tantos mais. Nos tempos em que se aprendia lendo, sem computadores, sem telenovelas, sem demagogias próprias de ignorantes. E aprendia-se. E havia aprovações, e reprovações. Naturalmente.
E já agora, uma observação que julgo pertinente: muito se fala em "comunidade de língua portuguesa", mas isso não será apenas sinónimo de algum Brasil e algum Portugal? Ou pensam alguns iluminados que os povos da Guiné Bissau ou de Cabo Verde, estão imensamente preocupados com o Acordo?
Leiam, meus amigos.
Escolham bem os autores.
Sempre.

Mar de Bem disse...

Vocês acreditam que o meu "LUSÍADAS" do antigo 5º ano do Liceu era uma edição do fim do séc XVIII ou princípio de IXX, em que os "SS" eram "ff" e outras cousas de que não me lembro? Como o dinheiro não abundava não podíamos substituir o "livro velho". Meu Pai ensinou-nos a destrinçar aquela teia de ditongos estranhos, e eu com 15 anos, percebi como a língua tinha evoluido. É interessante, sem dúvida.
O que se passa agora é a NOSSA SUBMISSÃO aos que usam a língua-pátria lá para os confins deste mundo, mas não foi nem pai nem mãe desta mesma língua.
Agora pergunto, se eu com 15 anos aprendi a ler em Português quase arcaico, porque não poderão os outros aprender o nosso Português com "pedigree", em vez de aprendermos todos a usar genericamente os dialectos dos confins da "Língua-PÁTRIA!
Serei eu racista/fundamentalista?
Alguém que me elucide...até porque talvez eu esteja enganada...

samuel disse...

«Então estaríamos todos mais bem preparados para discernir se a hipotética e utópica unificação vale mesmo a pena, ou se a diferença se tornou, afinal, no mais belo exemplo da versatilidade da língua comum.»

Boa! Aterrei nesta última frase com um suspiro de alívio e palmas... como durante quase todas as aterragens, os passageiros mais "simples" da TAP :-)))

Porque diacho é que os linguistas não conseguem entender isto?

Abraço.

Rodrigo de Sá disse...

"Agora pergunto, se eu com 15 anos aprendi a ler em Português quase arcaico, porque não poderão os outros aprender o nosso Português com "pedigree" (...)

Hoje em dia já nem com 15 anos se aprende a ler, portanto este argumento não vale junto das submissas iluminadas mentes que legislaram sobre o acordo, que pelos vistos milhares de utilizadores da língua portuguesa estão em desacordo.

Ibel disse...

Olha, Daniel, eu ontem escrevi quase um metro de comentário e, quando o submeti, evaporou-se. Fiquei mais triste do que irritada, porque gostei do que tinha escrito.Mas hoje com o sono e cansaço não me vou alongar. Sei que fiz o trajecto que sugeriste, até cgegar à velida e senti-me a morrer d'amores" pela minha língua e cheguei quase a bailar debaixo das "avelaneiras frolidas".Que menina fui!
O meu pai escrevia PHarmácia e para ele essa é que era a palavra certa.Acho que a escreveu sempre assim. E outras.Mas este acordo é quase como a Tlebs, uma monstruosidade inaceitável em questões de lógica gramatical.Imagina que na frase"eu estou em casa", em casa é nome predicativo do sujeito.Valha-me Deus, que me sinto incapaz para aprender e ensinar estas palermices.
Mas eu gosto é da tua argumentação e do teu texto, neste português nobre que vibra na ara da alma.

Daniel disse...

Meus amigos queridos
Nada tenho a comentar acerca das vossas opiniões. Subscrevo inteiramente todas elas, ou aceito-as com muita satisfação e algum orgulho (desculpai-mo) quando juntam um elogio a este vosso amigo, inveterado amante da Língua.
Só uma excepção para a TLEBS. Isso é um aborto que há quem teime em manter na incubadora. O Luís de Sttau Monteiro dizia que os críticos literários o eram porque não sabiam escrever. Apetece-me dizer que, agora, quem não sabe escrever faz TLEBS ou aceita acordos.
Abraços.
Daniel

Mar de Bem disse...

Há agora uma realidade muito mais assustadora: a escrita das mensagens de telemóvel está a ser de tal maneira vulgar, que recebo outro tipo de mensagens escritas com o "K" em vez de "que" e outras coisas que tais (ou tal?)
Qualquer dia esta juventude não sabe mesmo escrever, e andamos nós a debater-nos por uma riqueza que já está a ser delapidada.
Lutamos por um património que talvez já tenha os dias contados...Será?

Rodrigo de Sá disse...

Mar de Bem, vex k n prcbx nad d tlm. Ve s xtudas 1 pouk dix.

Daniel disse...

Anónimo
Cuidado com os espirros. Veja se não constipa ninguém aqui, por favor.
Margarida
Que havemos de fazer? Enquanto essa linguagem não for institucionalizada, não acontece desgraça nenhuma à Língua. O pior é se a rapaziada passa a errar por influência da escrita de abreviaturas. Para mal já basta como está.
Ó Rodrigo
Não "atramoces" a Margarida.

Rodrigo de Sá disse...

Burro velho não aprende línguas.
Como a Margarida não se enquadra no sujeito, nem no predicado, estava só a tentar ajudar.

Mar de Bem disse...

Ai que engraçado, nunca ouvi "atramoces". Vem de "atramoçar" ou "atramocear"? Tem a ver com o nosso picaroto "atazanes" que vem de "atazanar"?
Atazanar é espicaçar chateando.
Este teu "atramoces" parece-me mais "não confundas". Será?
Adoro aprender estas coisas!

Rodrigo és mesmo um rapaz moderno!!! (Tens razão não percebo nada disso, mas também não vou estudar, nem pouco nem nada...)

Beijinhos para Pai e filho.

Daniel disse...

Margarida
Está muito perto do "atazanes", sim. Quem "atramoça" (de "atramoçar") chateia que se farta. Ou nos farta.
Beijos.
Daniel

Rodrigo de Sá disse...

Espirros apagados. Acabaram-se os lenços.

Paulo Assim disse...

Bem, eu já estava a pensar em propor uma vaquinha para comprarmos uma caixa de antigripine ou similar e oferecê-la ao anónimo... Mas sendo assim...
:)

Rodrigo de Sá disse...

Pela saúde dos leitores d' O Espólio.

Daniel disse...

Paulo, apenas cumprimos (o Rodrigo e eu) as orientações sanitárias quanto à possibilidade de contágio.