Praia da Vitória (fotografia gentilmente cedida pela editora
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Três vezes o mar desceu. Três vezes o mar subiu. Deixou primeiro à vista destroços de naufrágios, cargas perdidas, desperdícios deitados à água. E, arremessando-se pela terra acima, destruiu quinze casas, entupiu caminhos com os detritos que levava, deixou estéreis cerrados e quintais. Entre a Praia e Porto Martins matou seis pessoas, as únicas que se sabe terem morrido nos Açores por causa dessa pavorosa inquietação do mar. Uns vinte minutos antes, ele galgara a rocha nos Fenais da Luz e subira as ruas ribeirinhas de Ponta Delgada. Outros vinte depois, inundaria a Horta. De passagem por Angra quase fizera naufragar os navios ancorados, e chegara à Praça dos Cosmes, que ainda não tinha idade para ser Velha. Umas seis ou sete horas mais tarde a sua fúria inaudita extinguir-se-ia no Golfo do México e nos fiordes da Noruega.
Dizem as crónicas que à mesma hora Lisboa ruía até aos alicerces, por causa do maior terramoto de que havia memória, e que destruiu vidas e cidades no Algarve, no Norte de África, na Andaluzia, onde a enorme onda ou maré, a que mais tarde se chamaria tsunami, completou a obra devastadora. Nesse dia um de Novembro de 1755, também o fogo, ardendo a partir dos limites aonde o Tejo não chegara, se dispôs a queimar pessoas e bens durante cinco dias de horribilíssimo inferno. Se a hora foi a mesma, tê-lo-á sido tendo em conta a que o Sol marcava. Porque cada terra só sabia do tempo exacto pela viagem da sombra de Oeste para Leste. No Reino, do Minho ao Algarve, a hora de Lisboa era a referência a respeitar. Por cá, cada ilha e cada lugar não teriam outra que não fosse a sua própria.
Mas esta Praia não é apenas a da Vitória guerreira, nome que receberia mais tarde por ali os absolutistas terem sofrido uma derrota vergonhosa. É também a vencedora deste e de outros desastres, o mais tristemente notável dos quais foi o terramoto de 1841, que a destruiu na sua maior parte, e que por isso ficou conhecido como a “caída da Praia”. Dois anos depois, estava “reedificada, com mais elegância que dantes tinha”. Disse-o a própria Câmara, em carta para a Rainha, D. Maria II. Nessa carta, de 16 de Agosto de 1843, era pedido à soberana que concedesse o título de “Barão da muito notável Vila da Praia da Vitória” ao governador civil, ou administrador-geral, José Silvestre Ribeiro, natural de Idanha-a-Nova, onde talvez já nesse tempo as touradas de rua fossem também a principal festa popular. Foi ele que teve a vontade e o talento de em tão pouco tempo fazer levantar do chão a vila e os povoados do concelho que como ela haviam caído. José Silvestre, que na Praia da Vitória tem um belo e merecido monumento com estátua desde o século XIX, foi um político brilhante. Ele mesmo, como soldado do Batalhão de Voluntários Académicos, tomara parte na batalha que valeu à vila os títulos que a disseram muito notável e vitoriosa. Deputado pela Terceira e por outras terras do Reino, além de muitos mais talentos teve também o de escritor.
Apesar de a Praia ser povoação muito antiga, pensa-se que o traçado das suas ruas é no essencial o primitivo. O que, pelo seu equilíbrio e funcional aspecto, prova que, como em Angra, aqui houve clarividente visão urbanística dos que a fundaram e nos primeiros tempos a desenvolveram. E este desenvolvimento foi tão rápido que já em 1498 tinha a sua Misericórdia, uma das primeiras que houve em Portugal.
A Praia da Vitória é bem o exemplo do que disse um dos seus filhos mais ilustres, Vitorino Nemésio: “A geografia, para nós, vale tanto como a história”. Muito do que ela sofreu e parte da sua glória devem-se às circunstâncias da sua geografia. E essa frase de Nemésio serviria muito melhor como divisa dos Açores do que aquela que consta no brasão de armas da Região Autónoma. Porque contém uma definição do que somos e do que podemos querer, muito mais do que a frase guerreira de Ciprião de Figueiredo, que nem sequer era natural destas ilhas e aqui esteve mais para defender os interesses do rei, primeiro, ou do pretendente a sê-lo, depois. E se lhe ficou bem, como fiel amigo de D. António, escrever a Filipe II que “Antes morrer livres que em paz sujeitos”, talvez tenha sido demasiada temeridade ou ligeira consciência sacrificar a leal gente da Terceira por uma causa perdida. Esta mesma ideia expressou J. G. Reis Leite quando escreveu, na Enciclopédia Açoriana: “Ficou no orgulho angrense esta primeira experiência de ser capital de Portugal, sede do portuguesismo e do nacionalismo exacerbado, esquecendo-se frequentemente do preço que pagou por esta ousadia.”