quinta-feira, 30 de abril de 2009

Ilha a Ilha: São Miguel

Monte Escuro (fotografia gentilmente cedida por Luís Alves)

O rei convocou a corte e o embaixador do príncipe pretendente, que lhe quer a filha como garantia para um tratado de paz. Mas ela nega-se, porque está enamorada de um pastor. Há quem grite e quem emudeça, conforme os privilégios da hierarquia lhe consentem. O pai manda que a vistam de burel e a fechem na torre mais alta do castelo. A princesa fica quase nua, por momentos. Contemplam-na o êxtase e a vergonha, e o embaixador julga que ela vale bem um reino ou uma guerra.

Esta podia ser uma cena da lenda das Sete Cidades, uma lagoa azul e outra verde, que são as lágrimas da princesa e do pastor, porque eram essas as cores dos seus olhos.

Os vulcões têm destes arrependimentos. Onde tudo foi fogo e destruição há poucos séculos ainda, agora há uma beleza indizível que teima em não caber numa fotografia ou em nenhuma pintura.

O mistério repete-se na lagoa do Fogo, onde se fica com a impressão de que deveria ser assim o Mundo antes de o Homem ter começado a pensar. E volta a acontecer à vista das Furnas, o vale da água e das águas, termais ou minero-medicinais, ferventes umas, outras quase geladas mesmo a seu lado, com os panelões das caldeiras a cozinharem sem descanso o seu caldo arrepiante de lama e enxofre. E na lagoa do Congro, chaminé redonda que o verde, aqui omnipotente, cobre até à beira da água.

Mas São Miguel é muito mais do que isso, como se o Criador tivesse resumido nela o melhor da sua obra. É também a solidez do maciço oriental, das fendas da serra da Tronqueira, onde o pico da Vara anuncia o último instante do chão da ilha. Uma paisagem que impõe o respeito temeroso das coisas perfeitas, que apetece nunca deixar, ou de que logo se quer partir porque nela nos sentimos demasiado expostos à nossa pequenez. Ali aconteceu um dos maiores dramas da vida de Edith Piaf: o campeão de boxe Marcel Cerdan, que ia ao seu encontro em Nova Iorque, era um dos passageiros de um avião que se enganou no caminho.

E é o monte Escuro onde, com a maior parte da ilha abaixo dos nossos pés, volta a sentir-se uma solidão magnífica que nos apanha de surpresa, os campos de golfe como jardins, os parques exóticos do século XIX, as ribeiras de água quente, uma paisagem poupada apesar dos setecentos e quarenta e sete quilómetros quadrados que fazem de São Miguel a maior ilha portuguesa, e que depois de cada curva do caminho, ou do cimo de cada nova colina, nos pode mostrar sempre novidades inesperadas.

Mas a paisagem não é só de ver mas de viver também para os mais de cento e trinta mil habitantes, em povoados pequenos e sossegados, ou em outros buliçosos de pressas modernas em ruas com centenas de anos. E, apesar de a avenida Infante D. Henrique, em Ponta Delgada, ser um longo traço de cimento e pedra que escondeu páginas de história, o progresso não chegou a tempo de destruir todo o passado antes de percebermos como precisamos dele. Por isso, se é possível assistir a ralis em que os pilotos correm para o campeonato dos Açores ou da Europa, ainda se pode, por exemplo, ver uma colorida cavalgada secular em honra de São Pedro – as Cavalhadas da Ribeira Seca da Ribeira Grande.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

10 comentários:

Cris disse...

Existem textos pulsantes... Conseguimos mesmo ouvir os batimentos de um coração suave e doce.Textos vivos,com temperatura humana e algumas vezes vulcânica.
Nossos olhos acompanham os signos, nossas mentes identificam mais do que palavras, porque agora elas nos remetem a imagens e juntas na formação de um parágrafo, chega mesmo a cortar nossa respiração, por temermos estragar o encantamento.
Um texto como esse, carrega em si a beleza indizível das lagoas e a doçura de suas lendas, o mistério dos vulcões, na sombra das palavras que foram dispensadas, por não poderem embarcar, fica a espera de um próximo texto, entretanto,as sentimos,sabemos que estiveram por lá.
Tenho a certeza de que São Miguel é uma ilha magnífica, uma ilha viva, encantadora, uma ilha para ser sentida, que nos provoca silêncios indizíveis, mas quando é Daniel quem a descreve... Tenho a sensação de que o Criador está ao seu lado conduzindo suas mãos. Naquele mosaico de palavras e imagens,há uma alma derramada,espalhada,dando luz e cores que outro não faria igual. Arrisco a afirmar que essa São Miguel que se apresenta linda e formosa é a ilha vista e sentida por Daniel de Sá. Isso faz muito diferença.
Obrigada Daniel por existir.
Um abraço do tamanho da minha saudade.

Anónimo disse...

Após a leitura deste magnífico texto de sabor a terra com passado telúrico assalta-nos uma vontade enorme de conhecer os Açores. Sentir o cheiro das furnas, saborear o cozido lentamente , mergulhar numa qualqur ribeira fresca e transparente, descansar os olhos no sossego das paisagens, visitar todas as aldeias que salpicam o verde e conhecer as gentes, que pacientemente cuidam esse jardim.

Francisca e Mafalda

IBEL disse...

Daniel,
Eu não sei se Deus reservou a Ilha de S. Miguel para o melhor da sua obra ou se te predestinou para seres tu o poeta criador da descrição da sua grandeza.Se calhar, deu-se o milagre de «dois em um».O que sei é que a "solidez do maciço" e o respeito das coisas perfeitas" me deixam exposta à minha pequenez.Mas eu gosto e não me importo, porque Deus sabe o que faz.
Um grande abraço para ti e um beijinho para as «minhas meninas».

Daniel disse...

Cristina
Lindo, o que escreveste. Tens esse jeito especial de escrever na alma, o que acontece sempre a quem ecreve com alma.
Francisca e Mafalda
Quando vocês vierem a São Miguel, vejam se conseguem aparecer por aqui. São sem dúvida dois exemplares humanos admiráveis. Pois se até Deus não Se satisfez com uma só!
Isabel
És sem dúvida uma grande professora. E eu tenho colhido alguns frutos. E não só os que semeias com tanta beleza a ternura neste Espólio.

samuel disse...

"onde se fica com a impressão de que deveria ser assim o Mundo antes de o Homem ter começado a pensar."

Talvez parte do mundo possa regressar à beleza fundadora da Lagoa do Fogo... se o Homem recomeçar a pensar... mas desta vez, bem, antes que se perceba demasiado tarde o quanto precisamos dela.

Anseio pelo dia (dias) em que numa próxima visita a S. Miguel, me possas contar e explicar estes "mistérios"... mas ao vivo.

Grande abraço!

jv disse...

Apeteceu-me dizer, porque raio «terá o Homem começado a pensar».
A beleza da natureza, do texto e dos comentários,por si só,validam concerteza essa capacidade.
A negação de tudo isto é que é a incapacidade de o homem não saber muitas vezes utilizar o pensamento.

Daniel disse...

Serás muito bem-vindo, Samuel. E tentaremos fazer a síntese do recado do JV.
Um abraço a ambos.

Mar de Bem disse...

...e aquela praia em Porto Formoso, com fios de água bordando as areias que se estendem a teus pés, Daniel de Sá?

Cada pedaço é um mundo; cada mundo é mesmo um pedaço que Deus plantou, para que nenhum de nós fique à deriva no seu canto... e S. Miguel é mesmo um belíssimo pedaço de Deus!!!

"BENZÓ DEUS"!!!

Daniel disse...

Deus não Se descuidou, de facto, com esta ilha. Nem com nenhuma das outras, diga-se a verdade.

Mar de Bem disse...

Adorei, Daniel, quando disseste na rádio que "...era a prosa mais descaradamente poética que conhecias"!

Isto é tão descaradamente simples e poético, HOMEM de DEUS!!!

(Com que então os Paulistas é que têm o teu livro do Senhor Santo Cristo?...)

Beijos e abraços descaradamente amigos!!!