sexta-feira, 17 de abril de 2009

Ilha A Ilha: Santa Maria



Aqui começou uma nova era, longe de terra firme, como se dizia dos continentes. Mas firme é esta, erguida sobre altíssimas e negras arribas. Dificilmente se encontrará outra tão variada em apenas noventa e sete quilómetros quadrados de superfície.

É, a Oeste, a ilha dos cheiros intensos, miniatura do Alentejo: da giesta, da macela, do poejo, da murta. E do barro e da cal que não há nas demais. Como não há deste sol, persistente, forte, que dá uma bela e estranha cor de figuras bíblicas aos rostos que queima.

Sobem-se duas centenas de metros, e tudo muda. Já então há serra e já um verde permanente, já então o seu solo não é uma armadura de rocha mal disfarçada por uns dedos de terra, onde se agarram raízes raquíticas tão avidamente como se tivessem consciência do valor da vida, por vezes em ravinas abruptas e vales enigmaticamente profundos, um desperdício de espaço para as torrentes ocasionais que aproveitam neles o caminho aberto, para chegarem ao mar.

Ilha das praias de areia clara, das pequenas baías onde aportaram descobridores e onde se abrigou Colombo, em risco de perder a “Niña” como perdera já a “Santa Maria”, e sem saber da “Pinta”, que acabaria por fundear em Palos poucas horas depois do almirante, com Pinzón praticamente moribundo de exaustão. E rezou na ermida dos Anjos, que ainda lá está, guardando memórias dele e de piratas que roubaram e açoitaram muita gente. Por isso foram temidos aqueles navegantes, porque não se sabia quem eram.

Ilha para ver devagar. Para sentir devagar. Porque nela o tempo é outro. Santa Maria é o reencontro da paz no meio da força arrebatadora de sua natureza insólita.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

16 comentários:

Cris disse...

Querido Daniel
Uma Ilha com aromas,onde cresceu um menininho que por muito tempo acreditou na visita do menino Jesus na noite de Natal.
Uma ilha para se ver devagar,tenho uns livros especiais que me causam esse sentimento,desvendar bem devagar,para sentir devagar,porque neles o tempo também é outro,onde nos remete a uma outra forma de vida,intensa...mas o tempo corre devagar.
Um grande beijo do tamanho da minha saudade.

LIA disse...

Realmente um grande escritor vê-se nas descrições e tu, Daniel de Sá és um gigante!
"Ilha para ver devagar. Para sentir devagar. Porque nela o tempo é outro."
Também eu li devagar e senti devagar, com vontade de estar nessa ilha que só pode ter mesmo esse nome.E reencontrei-me com a paz,"uma paz insólita"e linda!

Abração!

Lia disse...

Falta a vírgula na apóstrofe,Daniel de Sá,ó prodigioso milagre, de palavras densas e leves.

Catarina disse...

A professora Ibel indicou-nos o nome deste blog e na aula, a propósito do poema de Manuel Alegre"Trovas do vento que passa" leu-nos um poema intitulado "borboleta negra".Conhece? A turma ficou emocionada.
Este texto também é muito bonito.Não conheço os Açores, mas o meu tio já deu aulas em S. Miguel.

Daniel disse...

Cristina
Outro beijo com o mesmo tamanho.
Lia
Confessoo que o teu comentário me tocou especialmente. É que, se houve um tipo de escrita que eu trabalhei, foi o de tentar descrever as paisagens, dando-lhes alma. Pelo menos segundo o teu amável critério parece que o consegui. Obrigado.
Catarina
Como me sabem bem as minhas próprias palavras na boca da tua professora! E logo na companhia do Manuel Alegre, um amigo muito querido, um poeta extraordinário.
Aquela Borboleta Negra infelizmente repetiu-se indefinidas vezes num tempo de loucura. Eu mesmo me emociono sempre que o releio, por causa dessa verdade tremenda.
Onde foi o teu pai professor? E de quê?
Um beijo.

CPrice disse...

que descrição Daniel ..! Parabéns e Obrigada por este momento .. estive lá eu.

:)

CARARINA disse...

Viva.É outra vez a Catarina.O meu tio é que deu aulas em S.Miguel há 15 anos atrás.Deu aulas de educação visual.Agora vive na Inglaterra e é arquitecto.Mas vai de tempos a tempos aos Açores.
Pensa comprar aí uma casa para passar férias.Diz que quem viveu aí só pensa em voltar. Vou enviar-lhe o nome do blog.

samuel disse...

Estes textos são "o sonho" de qualquer documentário que se preze...

Abraço

Mar de Bem disse...

Porque é que a editora não autoriza a transcrição???

Quando íamos para Lisboa estudar, meu irmão e eu, nunca desembarcamos em Sta Maria. Não tínhamos ningúem que nos esperasse!...
Lembro-me dela altaneira e amarela! Aquelas arribas e falésias não eram negras como nas outras ilhas. Explicaram-me que era a ilha mais antiga dos Açores, por isso tinha aquelas colorações; outros mais sonhadores achavam que aquela cor pressupunha que ela estivera ligada ao Continente... e que não era de formação vulcânica...

Para mim ela é a mais antiga. É a pioneira dos Açores!

Aquele TEMPO DEVAGAR não é só em Sta. Maria. E então a Graciosa? Bem diz o marido da Mercês: "andar depressa para quê? a ilha acaba logo ali!"

...à minha frente ergue-se a ilha mais nova dos Açores... Ai, Pico, Pico!!!

Daniel disse...

Samuel
E um comentário como o teu é o sonho de qualquer escriba que se preze.
Mar de Bem
De cada vez que eu pedi à Everest para publicar textos (porque mos haviam pedido) ela concedeu. Foi o caso do Joel Neto para o "Correio da Manhã" e do Diniz Borges para um jornal da Califórnia. Por acaso esta parte do livro ("Ilha a Ilha", que aqui irá aparecendo à medida que o Rodrigo tiver tempo para os publicar) foi usada pelo Diniz para aulas de Português e por uma professora universitária de Toronto em aulas sobre cultura ibérica (a tradução em Inglês).

Daniel disse...

Once, obrigado por teres lá estado.

João disse...

É a terceira vez que leio coisas suas e a minha setora de português tem razão quando diz que o senhor escreve muito bem e é multifacetado.

carmélio disse...

Mar,

O facto da editora não autorizar a transcrição não significa que não se possa trancrever.

Daniel disse...

João
A tua "setora" é uma jóia. Obrigado pela visita, pela leitura e pelo comentário.
Carmélio
És um anarquista. Mas simpático.
Um par de abraços.

carmélio disse...

Daniel,

Obrigado pelo "anarquista", mas de que linha de pensamento? Bakunine, Kroptokine ou de Saco e Vanzetti?
Apenas pequei numa deixa de Mar de Bem e lancei uma axa (ou acha?) numa questão muito debatida desde que os senhores deste planeta não tiveram outro remédio senão conceder-nos o acesso à rede electrónica.
Achas que Lawrence Lessig e Dan Gillmor nos seus trabalhos propõem uma alternativa anarquista? E achas que Noélia de Mata Fernandes, no seu trabalho publicado pela Minerva Coimbra,em 2003, "A Autoria e do Hipertexto" tem algo a ver com anarquismo?
Bem, vou ler o que dizes sobre o 25.

Daniel disse...

Anarquista carmeliano, simplesmente. Porque um anarquista que se preze não segue outra linha que não seja a sua, Carmélio.
Um abraço.
Daniel