sábado, 25 de abril de 2009

Trezentas e Quarenta Palavras

(Em memória do Capitão Salgueiro Maia e do cantor José Afonso)

Conheces o gosto da anona? E o cheiro do incenso em flor nas noites húmidas? Talvez. Mas com certeza não serás capaz de os explicar. Nem eu nem ninguém. Existem coisas assim: os sabores, os cheiros, as cores, os sentimentos... Há muitos milha­res de palavras, mas nenhumas são suficientes para dizer aquilo que só quando se sente se sabe como é. Eu gostaria de inventar as palavras que faltam à nossa Língua, a todas as línguas do Mundo, para falar de Abril. Em Portugal. Num dia com cravos a florir nas espingardas, porque ninguém queria usá-Ias para matar.

Estavam cansados da guerra, uma guerra má como todas as guerras. Em Angola e em Moçambique e na Guiné. Era o medo em Portugal. Havia verdades que era proibido dizer. Havia muita gente que mal tinha que comer. Havia muita gente sem casa onde morar.

Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Os homens que mandavam neste país, e que não queriam que ele mudasse, talvez dormissem àquela hora sem sonhar com o que ia aconte­cer. No rádio, uma canção começou: "Grândola, Vila Morena". (Uma revolta que começa com uma canção, sobretudo uma canção como aquela, tem de ser uma revolta boa). Era o sinal combinado. Os militares saíram dos quartéis para dizer ao governo que não o suportavam mais, mas ainda não se sabia quantos portugueses estavam no mesmo lado. Logo se perce­beu que eram quase todos, afinal.

E a revolução tornou-se numa festa tão bonita que esse dia foi um dos mais belos da História de Portugal. Foi uma alegria tão grande que se chegou a pensar ter valido a pena tanto tempo de sofrimento e medo para que ela acontecesse...

Mas não! A água mais apetecida é a que se bebe depois de uma longa e penosa sede, e ninguém se deixa estar dois ou três dias sem beber só para ter um gosto enorme ao beber...

Se eu pudesse inventar as palavras que faltam à nossa Língua para dizer isto melhor, nunca mais haveria alguém capaz de duvidar de como foi lindo aquele dia, nunca mais nin­guém haveria de permitir que alguma coisa, neste país, se parecesse com as coisas ruins de antes. E muito depressa se mudaria o que ainda não houve tempo de mudar.
José Afonso

No tempo da vergonha, ele era a paz,
E tinha a cor dos cravos já na voz.
Ninguém como ele foi então capaz
De ser tão puramente todos nós.
Salgueiro Maia
“Aqui tendes a herança que vos dou,
Um caminho onde todos são iguais.
Eu voltarei a ser isto que sou:
Um português igual a tantos mais.”

(Na manhã de 25 de Abril de 1974, faltou-me um abraço que certamente seria imenso... Como meu Pai gostaria de ter vivido essa manhã de todas as manhãs!...)

22 comentários:

Eduarda disse...

Adoro-te Daniel,adoro-te.
Que a lágrima que se me derramou ontem quando passava aos alunos o filme «Capitães de Abril» que recordava, com saudade, a determinação e amor MAR de Salgueiro Maia,mate a sede à gente e traga mais nobreza a este país.

samuel disse...

Oh, Daniel! Que coisa bonita, esta!...

Mar-ia disse...

Daniel.
Bela homenagem, que é preciso repetir, repetir. Quantas vezes? Todas.
Há um friozinho no ar. Um arrepio. A lembrar, que é preciso não esquecer os direitos de Abril.
Um direito que é um dever.
Abraço colorido

Cris disse...

Conseguiu expressar com tamanha beleza e intensa doçura que lhe é tão comum,o verdadeiro sentimento de abril.
Certeza do abraço na manhã de 74sim, faltou o tal abraço,o maior, o mais esperado,mas hoje ele te abraçaria ainda mais forte e com muito mais felicidade e realização se pudesse ler e conhecer a forma que dás as palavras.Ou se conhecesse um texto como esse.
Recebemos nós,essas linhas como um abraço,tão emocinante e especial como uma manhã de abril 74.

LIA disse...

Daniel,

«Conheces o gosto das lágrimas? E o cheiro dos beijos nas noites húmidas? Talvez.»
Foi asim que eu senti Abril, há 35 anos...
Mas hoje senti um calafrio e outras lágrimas, salitre de arte.Um Abril renovado em cada palavra da prosa e do verso.E no olhar do Zeca e do Salgueiro que era «Maia».
Ah, Daniel, quem teve um filho assim só pode estar a misturar as suas lágrimas de comoção àquelas onde bebeste a divindade que canta em tuas mãos.

Grande abraço, homem de Deus!
Poeta para ser homem
Homem ilhéu, voz do mar...

Anónimo disse...

Gostaríamos de saber escrever assim...


Temos uma grande MESTRA, a Dra. Isabel Fidalgo, por isso ainda temos esperança.


CANTEMOS ABRIL SEMPRE!


Francisca e Mafalda

Daniel disse...

Meus amigos
Acabo de chegar de uma festa na Escola da Maia que fechou por hoje (amanhã continua) com o meu filho a cantar canções do José Afonso. Ele não é filho de Abril (nasceu em 1978) mas é filho de mãe e pai que sempre ouviu falar de como isto era antes e da importância do José Afonso e de tantos outros para que tudo (alguma coisa, pelo menos...) mudasse. Por isso, mais do que as palavras intensas da Eduarda, do Samuel, da Mercês, da Cristina e da Isabel Fidalgo, emociou-me a presença destas duas jovens, Francisca e Mafalda. Pois é, a importância dos professores...
Abraço-vos a todos, lembrando uma noite desperto, há trinta e cinco anos, a ouvir as notícias de toda a esperança.
Daniel

LIA disse...

Daniel,

Comovida fico eu com os "meus meninos" que aqui vêm. A Francisaca e a Mafalda são duas maninhas gêmeas, excelentes alunas do 1oºano e com um grande sentido crítico e amor à liberdade.
Beijos para elas e para ti.

carmélio disse...

Daniel,

Se eu fosse aqui dizer-te como consegues, com as palavras, filmar as coisas e os sentimentos, eu estaria constantemente a dar-te os meus parabéns. Mas não é o meu feitio
Depois da tentativa das Caldas, a questão que se colocou na minha célula, era: "E que íamos fazer se o golpe resultasse?"
Na manhã de Abril, perguntei-te: "E agora, QUE FAZER?"
Sim, o segundo dia mais feliz da minha vida.

carmélio disse...

Correcção:
"Perguntei-me" e não "perguntei-te"

Mar de Bem disse...

...e o que me custa pensar Abril...

Abril, em que te tornaste?

Aquela manhã limpa e límpida está cada vez mais longe, porque quem devia, não está fazendo o que deve! Querem tirar-nos Abril...

NÃO, não nos tirarão a memória! NUNCA!!!

Daniel disse...

Carmélio, desta vez exageraste.
Mar de Bem, ainda temos a liberdade.

Mar de Bem disse...

Daniel, se pensares bem, já não temos assim tanta liberdade, porque nos massacram e enrodilham as nossas vidas se não "os" seguirmos...e a pacotilha não tem rótulo de identificação...
Já começas a olhar para a sombra...e já não acho graça!

BEIJOS, HOMEM!!!
(estes ainda posso mandar e...de graça!!!)

Daniel disse...

Mar de Bem
A minha esperança é que passe esta crise de identidade do regime instituído por um PS que de socialista não tem nada.
As melhores coisas do Mundo são sempre de graça. Se assim não fosse, não seriam as melhores.

amigona avó e a neta princesa disse...

Muito obrigada pela ternura e intensidade das tuas palavras, gostava de saber escrever assim!!! Apenas uma pequenina adenda: a 1ª canção foi 'E depois do adeus' - Paulo Carvalho. A seguir sim, veio a linda 'Grândola...Voltarei se me permitires...o teu cravo parece ainda mais vermelho...um abraço...

Cid Simões disse...

O Cantigueiro deu-me o endereço e eu aqui estou também a saudar o Daniel.
Os militares foram muito, muito importantes mas o povo que os acarinhou não o foi menos. Abril de Novo!

carmelio disse...

Agora sim: os militares fizeram o golpe de estado e o povo sonhou a revolução.
Na falta duma verdadeira vanguarda revolucionária, a pequena-burguesia vingou novamente, tornando, a casa ano que passa, aquele sonho num pesadelo.

Daniel disse...

Amigona
"E depois do adeus" foi o sinal de que todos se deveriam pôr a postos para iniciar a Revolução. "Grândola" foi o sinal de partida. Por isso considero que com esta é que o movimento se pôs em marcha.
Cid
Obrigado pela saudação e por esse amor a Abril.
Carmélio
As asneiras que se fizeram e continuam a fazer não maculam em nada a pureza de Abril, e muito menos a integridade moral do Zeca e do Salgueiro Maia.
Abraços.
Daniel

´Tiago disse...

"E depois do Adeus",segundo o que vou ouvindo, não me parece ter sido a canção mais importante, mas a Grândola,ainda hoje humedece os olhos do meu avô.
Cá em casa todos lemos este texto e de Braga vão os parabéns de toda a família. O meu avô copiou as quadras e aposto que anda a espalhá-las pela Brasileira.

Eduarda disse...

Tiago,
TODAS as canções que se ouviram na inenarrável manhã de Abril foram importantes.Todas.«E depois do adeus»foi uma loucura,todos a cantávamos,todos a sabíamos.É linda.Zeca,nem se fala.Foi(é)
o herói.
Pelo que «vejo»,suponho seres aluno da Drª Isabel.Então o teu avô leva o nosso Daniel à Brasileira?Olha que eu vou lá muitas vezes!
Beijinho

Daniel disse...

Tiago
Tenho a certeza de que o teu avô se lembra rigorosamente do sítio onde estava e com quem quando ouviu a notícia. E de que esse foi um dos dias mais felizes da sua vida. Dá-lhe um abraço meu, por favor.
Para além das razões do teu avô para se comover com a "Grândola" e tudo o mais do Zeca, eu tenho outra. É que, por o José Afonso ser amigo de uma cunhada minha, oferecera-se para vir cantar aos Açores de graça. O secretário regional da Educação já assegurara o pagamento das despesas da viagem, e eu já reservara o "direito" de o acolher em minha casa. Foi precisamente nessa altura que se manifestou a doença de que viria a morrer, e a viagem ficou por fazer-se.
Eduarda, é isso, amiga. Tudo o que soa a Abril soa bem. Muito bem.
Abraços.
Daniel

UNO disse...

Caro Daniel de Sá

Se pensarmos que os nossos queridos militares, em vez de caçar lutadores pela liberdade nas colónias, podiam e deviam ter derrubado o regime fascista muito antes, o 25 de Abril perde muito do seu interesse. É por causa dessa data que somos o caixote de lixo da democracia portuguesa. Os "socialistas" de cá, tipo Carlos César, até já legitimam a Guerra Colonial, como naquele mamarracho de Ponta Delgada.