quarta-feira, 2 de junho de 2010

Tranças


Elvira indecisa diante do espelho. Finalmente, António resolvera cumprir o desejo de mestre Abílio, e o drama da vida de Cristo estava pronto para ser representado. António tivera dificuldade em convencer a maior parte dos actores, porque nenhum deles experimentara antes a arte de representar, mas o mais complicado fora resolver o problema de Cristo e de Judas. No primeiro caso, que qualquer um até desejaria, porque ninguém mostrou coragem para um papel que requeria aprender longas falas e uma presença quase constante em palco, no segundo por causa do odioso da personagem.

Elvira queria sacrificar o seu cabelo para oferecer a Jesus na figura daquele que ia representá-lo. O pecado que a marcara para toda a vida começara com uma brincadeira das mãos do moleiro nas pontas das suas longas tranças. Por elas suavemente se lhe insinuara o demónio, sem pressas nem maldade aparente. Fora subindo pelas tranças acima, chegara à cabeça, com ternura, tocara-a depois na face com um ar de espanto e de súplica.

Se gostava de que o tempo voltasse para trás, de que tudo não tivesse passado de um sonho mau?... Se preferia ter casado, como as outras raparigas da sua idade, de ter vivido pelo menos um dia a ilusão de ser feliz, de ser considerada uma mulher séria e respeitável?... Quem não o haveria preferido?... Os olhos húmidos por causa desses pensamentos do que fora e do que não fora... E Helena?... Helena não seria sua. Helena talvez não fosse de ninguém se não tivesse sido o seu pecado. Mudaria tudo, mas não a trocaria por nada, só lhe daria uns olhos que pudessem ver. Pelo preço de não ter Helena não mudaria um segundo que fosse da sua vida. Que Deus lhe perdoasse a sinceridade íntima de que era testemunha apenas a sua imagem no espelho, com os cabelos caídos pelos ombros, belos e negros, como se tivesse vinte anos, apesar de estar perto dos cinquenta. Uma beleza que ninguém aproveitou depois daqueles devaneios inconscientes no moinho. Pagara tudo tão caro... E, se mais houvesse ainda para pagar, que a oferta do seu cabelo para fingir que era o de Jesus, embora fingido também, fosse a última prestação, porque com mais nada teria com que pagar fosse o que fosse.

Talvez viesse a arrepender-se. Afinal, para Deus o seu cabelo contaria tão pouco, muito menos do que para ela mesma... Ou seria aquela oferta como o óbolo da viúva pobre de que Jesus falava no Evangelho? Seria Deus tão exigente que uma vida inteira de sacrifício não bastasse para apagar a memória de uns momentos? Quantas vezes fora feliz, e quanto fora feliz nessas poucas vezes? Um vale de lágrimas, o seu percurso neste mundo. É certo que António secara algumas, Deus lhe pagasse tão grande bondade. Ou seria António a janela que Deus abrira depois de se lhe ter fechado a porta da felicidade possível? Era António uma dádiva de Deus, ou uma dádiva de si mesmo? Seria que tudo o que é bom na vida é dado por Deus, e aos homens e mulheres só lhes resta decidir entre fazer ou não fazer coisas mal feitas? Não dissera Jesus à mulher adúltera que fosse em paz e não voltasse a pecar?... Ela não voltara a pecar, pelo menos pecados grandes, desses da carne, ou dos da alma, feitos de ódios e malquerenças.

Deus já lhe teria perdoado, de certeza. Ia chegando ao fim de fazer seis tranças, para que fosse mais fácil cortar o cabelo mais ou menos todo por igual pela base delas. Quando percebessem como estava curto, haveriam de anotar-lhe mais essa leviandade. Não se importava. Nem sequer diria, em sua defesa, a quem o dera. E, se o dissesse, talvez ainda pensassem que cometera um sacrilégio, ou que a sua intenção fora esconder um acto de vaidade por detrás de uma aparente boa intenção. Hesitou ao tocar com a tesoura na primeira trança. Valeria a pena o sacrifício? Ao fim de tantos anos ainda serviria de alguma coisa apagar uma recordação?

A trança caiu quase ao mesmo tempo que duas lágrimas.

(Do romance A Terra Permitida)

11 comentários:

Ibel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ibel disse...

Ibel disse...
Hoje não vou comentar o texto.
Vim para te abraçar, tentando chegar nesse abraço à tua Ilha Grande Fechada que vou encomendar na Bertrand. Assisti em directo à apresentação do livro.Gostei de te ver tão docemente perto, com a tua simplicidade que contagia todos. Tens o coração estampado no rosto, sem vaidades nem exibicionismos.
Mas tens também um sotaque impregnado da raiz da tua ilha fechada em sargaço de espuma,o que obriga a um ouvido redobrado de atenção.
O Sidónio escreveu um belo texto, com a dose certa de poesia com que habilmente liquidifica as palavras. O Manel Freire, esse dinossauro, foi extraordinário nas reflexões despretensiosas e na simplicidade que o caracterizam. O sonho coabita com a sua roupa e com o seu respirar numa pedra de sabedoria que é filosofal. Só a voz dele enche tudo e abriu-se toda na frase inaugural e noutras "padroeiras" da fome.
Hoje voltei a S. Miguel já "velhota", mas com a alma nova.Fui e fiquei. Virei ou não?
Adoro-te, Daniel e fico-me com este orgulho de ser tua amiga, com a certeza de que dormirei melhor.
ABRAÇO!!!!!!

Mar de Bem disse...

Hoje, por uma nota que vislumbrei na internet, aproveitei e consolei-me a ver a sessão do relançamento dum teu livro, creio que "Ilha grande fechada".
E ainda dizem que a internet nos torna ensimesmados, já que a partilha e intercâmbio de ideias se torna um pouco mais solitária!!! Como sabes, preciso dum tu cá tu lá, olhos nos olhos, mas à falta de melhor, antes assim.
A aparência formal da sessão foi neutralizada pelo jeito descomprometido e descontraído de falar do Manuel Freire. Não consegui ouvir as tuas palavras, mas terão sido parcimoniosas, já que não perdes tempo com congeminações simplórias ou gratuitas. Cada tua palavra é uma pedra duma construção para a eternidade. Nada em ti é efémero, excepto a tua própria vida. Tudo o mais, saído de ti e materializado em palavras, é eterno, porque assim o quis Deus que te deu a verve e tens obrigação de a pôr ao seviço dos outros,isto é, ao nosso serviço. BENZÓ DEUS!!!

Mar de Bem disse...

"A trança caiu quase ao mesmo tempo que duas lágrimas."
...e três, que minhas também se arvoram...em ser lágrimas!...

Decepar pedaços de nós, como que sublimando a dor e mágoa, como quem sacode a última lembrança duma quase felicidade inalcançável, como quem se transcende a um patamar sem sentidos, sem emoções, sem lembranças, sem dor e sem mágoa, tal como Margarida Dulmo em o "Mau tempo do canal", se despegando daquele, só daquele anel - a serpente cega... Nunca, mas nunca mais haverá lembranças, que essas só entopem os caminhos a trilhar.

E o futuro foi aquilo que não se viu...

Ibel disse...

"Elvira queria sacrificar o seu cabelo para oferecer a Jesus na figura daquele que ia representá-lo. O pecado que a marcara para toda a vida começara com uma brincadeira das mãos do moleiro nas pontas das suas longas tranças. Por elas suavemente se lhe insinuara o demónio, sem pressas nem maldade aparente. Fora subindo pelas tranças acima, chegara à cabeça, com ternura, tocara-a depois na face com um ar de espanto e de súplica."

Como a tua Ilha Grande Fechada escondia tantas tranças infelizes, Daniel! Ilha do homem impiedoso, que tem mãos para afagar e para fazer descer aos infernos. Haverá muitas tranças cortadas para remissão dos pecados num mundo ainda tão preconceituoso.

Grupo 2 Área de Projecto - "Gravidez na Adolescência" disse...

Olá Daniel,

A escrita grande, que nos alimenta a alma. A simplicidade feita letra, feita música.
Foi sempre esta a nossa opinião, desde que o "conhecemos", o ano passado pela mão da nossa professora, mais que bem querer, IBEL.
Doce,generoso, verdadeiro, o comentário feito a este texto, adjectivos que bem caracterizam a professora da nossa vida e o amigo Daniel.

Beijinhos a ambos

Francisca e Mafalda

Daniel disse...

Amigas da minha alma
Comentários feitos com aquele talento que só à amizade é possível. A ternura em cada palavra. O meu espanto agradecido a Deus que vos pôs no meu caminho. Como é belo haver ouvidos atentos ao que dizemos e corações capazes de amar as mesmas coisas que amamos! E eu cada vez com mais desejo de conhecer este par de gémeas que me fascinam sempre que por aqui deixam sentimentos à flor da alma.
Beijos.
Daniel

samuel disse...

"A trança caiu quase ao mesmo tempo que duas lágrimas."

...o que é estranho, pois as lágrimas, pelo menos estas, são muito mais pesadas do que qualquer trança...

Abraço.

Daniel disse...

Samuel, meu Caro, Galileu já explicou isso há muito tempo.
Um abraço.
Daniel

Isabel Biscaia disse...

Bom dia Daniel,
É longa já a distância no tempo desde que comentei pela última vez os teus fabulosos textos. Tenho-os lido, sempre com muita devoção e carinho, no entanto, sinto-me demasiado pequena para ser capaz de escrever seja o que for nesta tua sala de visitas que simpatica e generosamente deixas à nossa disposição para virmos beber as tuas palavras sempre fascinantes.
Desta vez não me contive por duas razões principais: A primeira, e a mais importante, é para te dar um abraço e mostrar a minha gratidão por me permitires ler-te e nas tuas palavras encontrar sempre não só ensinamentos como depois e também uma serenidade e paz semelhante à que me lembro de encontrar nos horizontes da minha (nossa)Santa Maria. Tu tens esse condão: Fazes-me regressar.
A outra razão da minha vinda até aqui, hoje, é a de este teu texto me fazer lembrar não só a minha trança como as lágrimas que deixei fugir também quando a tive que separar de mim definitivamente. Ainda hoje me lembro daquela sensação... não sei se me sentia mutilada se despida...mas a tristeza acompanhou-me por muito tempo e ainda hoje revejo as marcas desse episódio.
Este teu texto, como os demais, deixou-me encantada e agradeço-te do coração a tua generosidade em partilhá-lo comigo.
Aqui fica o meu abraço com saudade das nossas conversas...eu sei que tens andado muito atarefado, por isso não tenho enviado correspondência, no entanto, o teu lugar está sempre guardado no meu coração. Obrigada, meu Amigo.
Um beijo.
Isabel

Daniel disse...

Isabel
Pois é, querida amiga, Santa Maria deixou-nos essa marca indelével. É um lugar mítico na nossa memória e nos nossos afectos. Todos os que por lá andámos nos estimamos muito, até ao ponto de o manifestar nesse exagero de palavras que usaste a meu respeito.
Um beijo com um abraço.
Daniel