sábado, 1 de agosto de 2009

A Ribeira do Calhau

Em primeiro plano, à esquerda, o início do atalho da Ribeira do Calhau (fotografia de Sérgio Lourenço)

A paz da tarde, o mar apaziguado a trepar as pedras com indolência e sem convicção. As algas num vaivém de cabeleiras verdes e castanhas. Mais adiante, a Ribeira do Calhau, corrente fresca, saborosa, com o sabor das entranhas do basalto, do musgo e das labaças, nascendo aos pés do rochedo, de curso breve como um voo de borboleta. Começa e acaba em trinta metros de vida. Ainda lá estão as pedras que foram lavadouro de muitas gerações, abandonadas, sem préstimo, fora do lugar algumas, recordação todas elas. Onde a que minha mãe preferia?...
Longo era o caminho para ali chegar. Mais longo ainda por ser difícil do que pelo longo tamanho dele. Um atalho apertado entre canas e ervas altas que, depois da chuva, se trocava frequentemente pela insegurança das pedras do Calhau. (Ter água em casa era um luxo. E, no Verão, para o necessário à família, formavam-se grupos à espera, de madrugada, em cada fonte que havia, de onde um fio delido enchia lentamente os potes de barro. Uma lentidão enervante, mas ninguém pensava que a vida, por vezes, quer ser vivida mais depressa. Ou talvez nós é que a estraguemos por não tomar, calmamente, o gosto ao tempo.)
A Ribeira do Calhau, quase sem tamanho, quase já mar quando nasce, vivia o suficiente para ser útil e acabava-se logo entre as pedras, sem uma grandeza aparente. Nunca uma cheia, nunca uma seca. A água a jorrar, paciente, numa monotonia embaladora, por um buraco que lhe media o caudal, como que um milagre no paredão da rocha. Ela soube de tudo, ela ouviu tudo sem indiscrições, as grandes dores e as grandes alegrias, as banalidades de conversas sem motivo. Ela soube de amores e desavenças, ela soube da vida e da morte.
Hoje, só o musgo e as labaças lhe falam de si, mais alguma cana que desça os rizomas na aventura de experimentar o prazer de mais água. Ou alguém que, andando às lapas ou à pesca, se curve, entre uma poalha de luz, a beber sem cobrança. Ou alguma alma, extraviada das convenções do viver, que ainda acredite que a solidão só dói quando há mais gente em redor.
Atalho da Ribeira do Calhau (fotografia de L. Filipe Braga)


20 comentários:

MaesDoc disse...

Pois é Daniel. Tanta, tanta coisa, tanta,tanta labuta de gente que nos acompanha o viver,que apesar de ser-nos útil ou quase imprescindível, passa-nos despercebida. Talvez, como dizes, por não aparentarem grandeza ou não utilizarem os bicos dos pés para se tornarem visiveis.

Creio que vão concordar comigo quando aqui me atrevi a dizer, e a sublinhar, a poesia que estava contida nesta tua descrição da Ribeira do Calhau. E que verdades nos contas daquele curto e bem escondido, quase envergonhado, caudal de água.

Só vendo e deixando a imaginação deslizar naqueles " calhaus de pedra", cada um deles , decerto, com a sua história, o seu contar.

E ao olhar para estas belas fotografias( como é bom ter editores e fotógrafos competentes na familia)atrevo-me também a dizer que continua a haver gente, onde eu me incluo e também já os meus dois filhos, que vai elegendo este Portinho da Maia como a " sua praia". Mesmo que o esforço de descer, e depois subir, aquele " rebentão" até à "trincheira", dê para usufruir somente de uns poucos metros quadrados do Calhau da Areia.

Mas também de uma baia única e duma liberdade imensa.

Abraços

Manuel Estrada

Mar de Bem disse...

...eu não sei o que são labaças...

Daniel:

A atmosfera da tua escrita deu-me uma frescura que só respirei na casa das tias em S. João do Pico. Lá não havia ribeira, mas havia o tanque da água da Chuva (acho que estes tanques deviam ser património da Humanidade). Começava a chuva e lá ia a Tia Rita tapar o ralo da entrada do tanque, para lavar o eirado. Passada uma meia hora, toda tapada, a tia Rita ia destapar o ralo, para que a água límpida jorrasse p'ra dentro do tanque. Essa era a nossa água!
Era fervida e posta em bilhas de barro de Sta. Maria. Que frescura, Deus meu!!!
Lá íamos nós até ao tanque buscar água para a comida, para as lavagens, para o que fosse preciso. Abrir a porta do tanque era abrir um novo mundo. Translúcido, silente, com um eco fenomenal. Eu tinha que cantar. Eu não podia tirar água sem cantar. Aí, às primeiras notas devolvidas por aquele espaço aquoso, me enebriava e cantava sem parar. Julgava que Deus me dera a voz mais maravilhosa e eu, subjugada a tanta beleza, não queria parar!!! Mas era preciso tirar água. Atirar o balde tinha a sua ciência. Tinha que chegar lá abaixo de lado, para poder encher. Se não, ficava a boiar.

Eram assim as minhas férias em casa das tias em S. João do Pico.

Paz às suas almas!

samuel disse...

"Ela soube de tudo, ela ouviu tudo sem indiscrições, as grandes dores e as grandes alegrias..."

Talvez exactamente por ser pequena, paciente, escorrer lenta, querer muito ser útil apesar da curta vida...

Abraço.

CS disse...

Poesia que nos adoça a vida.

Anónimo disse...

Daniel,

As fotos estão magníficas, mas o texto supera-as.
A nossa mãe já nos tinha falado das pedras de lavadouro, do tempo em que a água corrente era, como diz, um luxo e também do facto de cada lavadeira ter a sua.Fica difícil imaginar um tempo sem água correndo na torneira...mas pelo que descreve o que se perdia em conforto e comodidade ganhava-se em partilha.
Adoramos o texto.

Francisca e Mafalda

Daniel disse...

MAES
A Mãe está presente em cada um de nós. Sempre. Até a maior parte dos nomes mais belos e imprescindíveis da vida são no feminino.
O Sérgio é um valor acrescentado à família. O Luís Filipe é filho de um amigo de longuíssima data, que foi o melhor jogador de ping-pong dos Açores no seu tempo de praticante, e neto de outro amigo que foi motivo de um dos capítulos do livrinho em que figuram estas histórias.
Mar de Bem
Labaças - erva vivaz, da família das Poligonáceas, erecta ou ascendente, de folhas ondulado-crespas, ou basilares pecioladas ovaladas ou oblongas, cordiformes ou obliquamente arredondadas na base (etc.). Ficaste na mesma? Eu também ficaria, se não as conhecesse. Hei-de arranjar fotografia.
Samuel
Nunca falei sozinho. Excepto uma vez, numa rua famosa de Lisboa, sem que me desse conta de que estava a andar nela. Às tantas olhei a placa toponíica: Travessa do Fala-Só. Fazem-nos falta lugares desses.
Cid, eu também penso que é. Mas a paisagem.
Francisca e Mafalda
Tenho um capítulo num livro recente com o título roubado ao José Ricardo Costa, um magnífico cronista do "Jornal Torrejano". Chama-se "A arqueologia do silêncio". Ai se a gente pudesse praticar essa investigação do passado nas coisas que se calaram para sempre...

CS disse...

Tens a fotografia da "labaça" em "as palavras sao armas" ou simplesmente ir ao google escrever "labaça" clicar e... lá está a fotografia em "aspalavrassaoarmas"

Unknown disse...

Todo o texto é de estremecer de beleza.Passa-se em cada palavra e demoram-se os olhos nela. O período que abre o texto emana tranquilidade, tal é a sintonia semântica das palavras:paz, apaziguado,indolência.Depois é um rosário duro e poétoco, cheio de cenários de um passado que já pouco se encontra.
Finalmente, «partiu-me» toda a parte final "alguma alma, extraviada das convenções do viver, que ainda acredite que a solidão só dói quando há mais gente em redor".
Genial!!!!

Mar de Bem disse...

"Depois dos chícharos e das larioas deguste a labaça"

Cid Simões, muito obrigada!

P'ra semana estou de novo no Pico/Faial e vou à procura de labaças...

Lia:
Como sempre, mana, o diáfano manto da poesia te pertence. E, nós, comuns mortais, temos o privilégio de o conhecer, sem dúvida, mas tocar apenas as suas franjas.

Mana, beijos e boa estada pelas nossas ilhas (com toda a FIDALGUIA!)
O Daniel vai adorar-te!!!

Daniel disse...

Cid
Há muitas espécies de labaças, mas as tuas parecem-me ser de facto as mesmas da Ribeira do Calhau. Estão lá muito bem, ao lado das tuas armas preferidas. E só estas deveriamm ser permitidas.
Lia
Bendita Ribeira que tais sentimentos despertou em ti. Bentita tu pelas palavras que tão bem sabes urdir.
Mar de Bem
Adorar, reservo para Deus. Mas, daí para baixo, a Lia merece tudo.

Mar de Bem disse...

Resolvi "ler" os comentários, porque normalmente passo só uma vista de olhos por eles.

O 1º comentário, do Manuel Estrada, é um consolo de alma. Este HOMEM, não está no mundo para ver passar os comboios!!! Ele traduz-nos a beleza dum sentir, que não é só dele mas também de sua família, por aquelas pedras, regadas por um fio de água doce, que semeiam aquela baía dos deuses.

Manuel Estrada, muito obrigada por partilhar connosco o seu sentir.

Daniel, obrigada por teres AMIGOS assim, que nos presenteiam com a sua emoção.

BEM HAJAM!

jv disse...

Daniel, e eu, inicialmente, um pouco desiludido por não aparecer a fotografia da Ribeira do Calhau, mas percebi de seguida que é na genialidade do texto que ela emerge na sua totalidade de Ser Ribeira do Calhau. Só quem a percepciona assim a pode entender verdadeiramente na sua essência, e que ela é realmente tudo isto.
Lá continua ela,imperturbável,guardando intactas as memórias que se vão diluindo nas novas gerações, mas que assim se avivam, magistralmente,com quem com ela as partilhou.
Obrigado pelo belos comentários
Um abraço a todos.
José Fernando

Daniel disse...

Mar de Bem
Pois é, graças a Deus tenho amigos excelentes. E o melhor deste Espólio tem ficado dito nos comentários.
José Fernando
A Ribeira do Calhau mais se pressente do que se vê, actualmente. Sobretudo, sente-se. Se reparares bem, mais ou menos na direcção da casa do António Maurício, nota-se uma mancha de verde que entra um pouco pelas pedras do calhau adentro. É um seu sinal de vida.

SilentFreak disse...

A Ribeira do Calhau - que nunca os homens conseguiram privar do mar, nem o mar conseguiu tomar dos homens, embora ambos o tenham repetidamente tentado - reveste-se de uma grandeza que não possuem os seus congéneres de muito maiores e afamados caudais. Isto por nascer praticamente no seu auge, e findar serenamente, sem necessidade de maior espectáculo que o seu silêncio.
E sem necessidade de velozes drakkars Vikings, ou lestos rabelos, lá deixamos as nossas grandes dores, desavenças e amores, e de lá trazemos a nossa paz.

Quem acha que é um capricho insignificante das rochas, pode ter razão no que diz.

Provavelmente também nunca terá estado no Calhau; pelo menos não no início da manhã ou no fim da tarde, as alturas propícias para uma pessoa se lembrar de que o tempo passa. Nem terá lido o que nos ensina o Daniel sobre ela.

MaesDoc disse...

Margarida, Mar de Bem

Há coisas que nos vêm ter à mão, como que designios programados por peritos. No meu caso uma familia a que se juntou, por acréscimo, os céus dos Açores e a Maia como ponto de partida e de chegada de tudo o resto. Onde encontrei , há mais de vinte cinco anos o Daniel a Maria Alice e seus filhos, que me acolheram com uma amizade fora do comum e que me ensinaram, eles sim, a gostar da Maia e que me levam a confessar este sentimento que, felizmente, se renova a cada ano que passa.

O resto , as palavras ditas, são reflexo do que o Daniel nos vai por aqui deixando e que também provocam na Margarida, bonitas reflexões, que connosco vai dividindo. E que eu também agradeço.

Abreijos( como muito bem, e originalmente, nos diz o Samuel)

AdoContinente disse...

... até eu, já gosto da Maia !

"a solidão só dói quando há mais gente em redor"

abraços

Mar de Bem disse...

Engraçado, o Manuel Freire também diz abreijos... Será dos cantores?

Pois então, abreijos p'ra si, Manuel Estrada e p'rao meu precioso Amigo Daniel. Que bom, a alma fica mais consolada...

Daniel disse...

Meus Caros
O Espólio vai fechar por três dias. Quer dizer, as portas estarão sempre abertas, mas eu não acederei a ele porque devo estar este fim-de-semana em Santa Maria, a propósito de um colóquio sobre Roosevelt e a importância estratégica dos Açores.
Para assuntos pendentes, conto com a boa vontade do "editor".
Abraços ou beijos conforme a condição.
Daniel

Rodrigo de Sá disse...

E se não fosse o facto dos Red Sox estarem empatados a zero com os Yankees à entrada para o 9 inning, já estava eu na cama sem saber de nada.

Mar de Bem disse...

Daniel, que inveja!!!

...e mais não digo, que fico à espera de "novas"...