Considero-me um privilegiado quando me chamam mariense. Porque, como filho destas ilhas, tenho a sorte de ter pai e mãe. Foi meu pai São Miguel, minha mãe, Santa Maria. E, se pode ter-se dupla nacionalidade, por certo que poderá ter-se dupla “insularidade”.
Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilégio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatro por São Pedro, na casa do Sr. Armando Monteiro, e seis meses na Ribeira do Engenho, numa casinha que era toda ao pé da porta e tinha o telhado à altura do caminho.
De São Miguel saí ainda de cabelos compridos, de que guardo uma vaga memória mas somente do dia em que mos cortaram, já em São Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, só sei o que me contava minha mãe. Tempo esse em que uma criança de dois anos podia andar pelas ruas e ir até longe, no longe relativo do tamanho do corpo, sem deixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroça ou de um carro de bois.
Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas lições recebi! Recordo a sabedoria de um povo a quem vi cavar um poço antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas tão simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto à semelhança de pequenos menires, onde o gado ia roçar-se placidamente. A minha definição como pessoa começou a fazer-se com estes e com outros ensinamentos casuais ou espontâneos, sem pedagogia diplomada.
Pode parecer um contra-senso considerar um privilégio ter vivido em Santana, porque aquela era uma das aldeias mais rurais de Portugal. Nem havia sequer uma canada razoável que lhe fosse caminho. A que existia servia, em parte, como leito de uma ribeira, onde aflorava a rocha irregular posta a descoberto pela erosão. Durante séculos, foi a única via que levava a Vila do Porto. Maior isolamento do que aquele é difícil de imaginar. Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodígios da superação.
De súbito, tudo mudou em 1945. Em Santana propriamente não, porque ela ficou imutável na sua rústica ancestralidade. Mas, mesmo ali ao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referência, porque até na religião os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus. Ia-se e vinha-se usando atalhos desenhados por milhões de passadas, cortados aqui e ali por muros que era preciso saltar. A aldeia isolada ficara a poucos minutos de um mundo novo e impensável. Mas aquela gente recebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Sol que gretava o solo árido no Verão, depois de secos os lameiros do Inverno. Aquela gente, que resistira à angústia da fome, numa penúria humilhante e indigna da condição humana. Como um pouco por toda a ilha, aliás. Mas que manteve uma dignidade bíblica, porque a dignidade é um estado de espírito mais do que uma afirmação social.
A nossa casa nunca fora chamada casa antes de lá morarmos. E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos não podia trabalhar. Não o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade de as mães não terem falta do que pôr na mesa à hora de comer. Apesar disso, não lamento nada da minha infância.
Fui pastor de cabras, de ovelhas e de vacas. Cavalguei em pêlo e sem esporas nem freio, como os índios. Nunca ninguém me ensinou a ter medo do dia nem da noite. Fui cowboy ou índio na mata de Monserrate e nas do Aeroporto. Mas não estraguei nenhuma árvore, nem os meus companheiros de aventuras. Contei histórias ao meu amigo Elias, e contava-me ele outra por cada uma das minhas. Matávamos o menor número possível de personagens, quer fossem índios ou bandidos. Apenas o essencial para haver vencedores e vencidos.
Entretanto, ia aprendendo em livros ou num quadro preto. Primeiro na escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1ª classe, a D. Doroteia, na 2.ª, a D. Úrsula, na 3.ª, a D. Francisca, na 4.ª. Continuam a ser das minhas heroínas preferidas. Fizeram o milagre de me ensinar a ler, de explicar que povo somos e a que terra pertencemos. Depois veio o Externato. Juntei à minha lista de heróis e de heroínas mais uns quantos predestinados para o bem e a sabedoria. Passei a pertencer também à geração do Cavaleiro Andante, sem dúvida a mais prodigiosa publicação juvenil que houve em Portugal. Não tínhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o José Guilherme Correia que mo emprestava sempre. E alguns livros também, como o José Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei há meio século. Foi assim que pude ler Emílio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.
E havia o Clube Asas do Atlântico. O Asas! Nunca ninguém me pôs na rua nem mostrou desagrado pela minha presença. Nem imaginavam o bem que me estavam fazendo. Ali ouvíamos os relatos do futebol e do hóquei das nossas alegrias patrióticas. E era onde eu tinha à disposição os principais jornais que se publicavam em Portugal. Um dos mais bem escritos era A Bola, e por isso, ao mesmo tempo que a rivalidade entre o Sporting e o Benfica era um dos principais factores de unidade dos Portugueses, o desporto, contado naquele jornal que mudou tanto que se pode considerar extinto, era também uma lição de cultura.
Não longe, o campo dos jogos épicos do futebol romântico de dois defesas, três médios e cinco avançados. Com o mítico Badjana a dar os últimos pontapés na bola, jogando pela equipa da Direcção do Serviço de Obras, onde meu pai trabalhava. Depois veio outro clube, o de Gonçalo Velho, para o qual minha mãe e minha irmã bordaram os primeiros emblemas.
No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlântida Cine. O seu porteiro deixava muitas vezes as crianças entrarem sem pagar bilhete. Por isso o Sr. Cardoso faz parte da minha lista de heróis particulares. E o grito “ó Cardoso, apaga a luz” ainda ecoa nas minhas recordações como o anúncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver.
Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se é certo que sem uma fé sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo à maneira do Padre Artur é o testemunho do bem na Terra.
Mas qualquer pedaço de mundo vale pelo que vale a sua gente. A do meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma geração em que havia na ilha mais forasteiros do que naturais dela. Sorte nossa que a maior parte dos que em Santa Maria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortúnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonçalo Velho é sempre um momento de festa que dificilmente tem semelhança quando as amizades foram feitas por outras bandas.
O próprio aeroporto, começado a construir durante a guerra, acabou por ser um lugar de passagem para a paz. Se, em 1918, Franklin Delano Roosevelt escolheu Ponta Delgada para apoio ao transporte de tropas a caminho da Europa, por aquelas pistas passaram sobretudo soldados de regresso a casa. O nome de código da operação, “Green Project”, era ele mesmo uma declaração de esperança numa nova era.
Foi neste ambiente, um dos espaços nacionais onde mais se concentravam pessoas com ensino superior ou com uma cultura acima da média, que começou a germinar a minha vontade de fazer das palavras escritas um uso para além da obrigação de alguma carta familiar. Sem Santa Maria, sobretudo sem o seu Externato, eu teria ficado pela 4.ª classe, tal como todos os rapazes que nasceram na Maia, em São Miguel, no mesmo ano que eu. Por um desses acasos que são difíceis de explicar, cresci logo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antes de completar seis anos, perguntei a meu pai como é que se faziam versos. Ele era um improvisador de quadras e de histórias como poucos conheci na vida. Chegou a fazer o negócio de uma burra cantando ao desafio. E, nos intervalos do almoço, contava casos a homens da sua idade, mas tão interessados como crianças. Vi muitos filmes pelos seus olhos, ou ouvi-os da sua boca. Ele levou a sério a minha pergunta sobre poesia, e respondeu como se deve sempre responder a uma criança: dizendo a verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criança será um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que só guardo a memória de uns longos caracóis loiros. Sei que começava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: “Sou Daniel/ da ilha de São Miguel”.
Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Mãe também. E nela vivia então um poeta que fez parte do meu imaginário, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Araújo. Não tive a sorte de ser seu aluno, mas a ânsia de alcançar um estatuto semelhante ao seu foi talvez o maior impulso que me levou a dedicar-me à escrita.
Mas Santa Maria veio a ser para mim cenário de drama também. Numa certa manhã, os responsáveis pela Direcção do Serviço de Obras estavam reunidos para despedir pessoal. O critério escolhido foi o de optar pelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque éramos só minha irmã e eu. Minha irmã não estudara porque as propinas equivaliam a um terço do ordenado de meu pai. Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou não o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramática da 4.ª classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colégio, como chamávamos ao Externato.
O Miguel Corte-Real, esse homem da linhagem dos primeiros povoadores e a quem Santa Maria muito deve, não concordou com a ideia, alegando que eu estudava, e que meu pai e minha mãe, costureira, se sacrificavam a trabalhar mais do que podiam para eu ter aquele privilégio. Estava a questão por decidir quando chegou um funcionário com uma notícia dramaticamente irónica. Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida.
(Texto lido no colóquio Santa Maria nas rotas do Atlântico, promovido no dia 9 de Agosto pela Fundação Luso-Americana, sob a responsabilidade de Mário Mesquita)
Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilégio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatro por São Pedro, na casa do Sr. Armando Monteiro, e seis meses na Ribeira do Engenho, numa casinha que era toda ao pé da porta e tinha o telhado à altura do caminho.
De São Miguel saí ainda de cabelos compridos, de que guardo uma vaga memória mas somente do dia em que mos cortaram, já em São Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, só sei o que me contava minha mãe. Tempo esse em que uma criança de dois anos podia andar pelas ruas e ir até longe, no longe relativo do tamanho do corpo, sem deixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroça ou de um carro de bois.
Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas lições recebi! Recordo a sabedoria de um povo a quem vi cavar um poço antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas tão simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto à semelhança de pequenos menires, onde o gado ia roçar-se placidamente. A minha definição como pessoa começou a fazer-se com estes e com outros ensinamentos casuais ou espontâneos, sem pedagogia diplomada.
Pode parecer um contra-senso considerar um privilégio ter vivido em Santana, porque aquela era uma das aldeias mais rurais de Portugal. Nem havia sequer uma canada razoável que lhe fosse caminho. A que existia servia, em parte, como leito de uma ribeira, onde aflorava a rocha irregular posta a descoberto pela erosão. Durante séculos, foi a única via que levava a Vila do Porto. Maior isolamento do que aquele é difícil de imaginar. Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodígios da superação.
De súbito, tudo mudou em 1945. Em Santana propriamente não, porque ela ficou imutável na sua rústica ancestralidade. Mas, mesmo ali ao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referência, porque até na religião os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus. Ia-se e vinha-se usando atalhos desenhados por milhões de passadas, cortados aqui e ali por muros que era preciso saltar. A aldeia isolada ficara a poucos minutos de um mundo novo e impensável. Mas aquela gente recebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Sol que gretava o solo árido no Verão, depois de secos os lameiros do Inverno. Aquela gente, que resistira à angústia da fome, numa penúria humilhante e indigna da condição humana. Como um pouco por toda a ilha, aliás. Mas que manteve uma dignidade bíblica, porque a dignidade é um estado de espírito mais do que uma afirmação social.
A nossa casa nunca fora chamada casa antes de lá morarmos. E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos não podia trabalhar. Não o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade de as mães não terem falta do que pôr na mesa à hora de comer. Apesar disso, não lamento nada da minha infância.
Fui pastor de cabras, de ovelhas e de vacas. Cavalguei em pêlo e sem esporas nem freio, como os índios. Nunca ninguém me ensinou a ter medo do dia nem da noite. Fui cowboy ou índio na mata de Monserrate e nas do Aeroporto. Mas não estraguei nenhuma árvore, nem os meus companheiros de aventuras. Contei histórias ao meu amigo Elias, e contava-me ele outra por cada uma das minhas. Matávamos o menor número possível de personagens, quer fossem índios ou bandidos. Apenas o essencial para haver vencedores e vencidos.
Entretanto, ia aprendendo em livros ou num quadro preto. Primeiro na escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1ª classe, a D. Doroteia, na 2.ª, a D. Úrsula, na 3.ª, a D. Francisca, na 4.ª. Continuam a ser das minhas heroínas preferidas. Fizeram o milagre de me ensinar a ler, de explicar que povo somos e a que terra pertencemos. Depois veio o Externato. Juntei à minha lista de heróis e de heroínas mais uns quantos predestinados para o bem e a sabedoria. Passei a pertencer também à geração do Cavaleiro Andante, sem dúvida a mais prodigiosa publicação juvenil que houve em Portugal. Não tínhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o José Guilherme Correia que mo emprestava sempre. E alguns livros também, como o José Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei há meio século. Foi assim que pude ler Emílio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.
E havia o Clube Asas do Atlântico. O Asas! Nunca ninguém me pôs na rua nem mostrou desagrado pela minha presença. Nem imaginavam o bem que me estavam fazendo. Ali ouvíamos os relatos do futebol e do hóquei das nossas alegrias patrióticas. E era onde eu tinha à disposição os principais jornais que se publicavam em Portugal. Um dos mais bem escritos era A Bola, e por isso, ao mesmo tempo que a rivalidade entre o Sporting e o Benfica era um dos principais factores de unidade dos Portugueses, o desporto, contado naquele jornal que mudou tanto que se pode considerar extinto, era também uma lição de cultura.
Não longe, o campo dos jogos épicos do futebol romântico de dois defesas, três médios e cinco avançados. Com o mítico Badjana a dar os últimos pontapés na bola, jogando pela equipa da Direcção do Serviço de Obras, onde meu pai trabalhava. Depois veio outro clube, o de Gonçalo Velho, para o qual minha mãe e minha irmã bordaram os primeiros emblemas.
No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlântida Cine. O seu porteiro deixava muitas vezes as crianças entrarem sem pagar bilhete. Por isso o Sr. Cardoso faz parte da minha lista de heróis particulares. E o grito “ó Cardoso, apaga a luz” ainda ecoa nas minhas recordações como o anúncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver.
Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se é certo que sem uma fé sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo à maneira do Padre Artur é o testemunho do bem na Terra.
Mas qualquer pedaço de mundo vale pelo que vale a sua gente. A do meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma geração em que havia na ilha mais forasteiros do que naturais dela. Sorte nossa que a maior parte dos que em Santa Maria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortúnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonçalo Velho é sempre um momento de festa que dificilmente tem semelhança quando as amizades foram feitas por outras bandas.
O próprio aeroporto, começado a construir durante a guerra, acabou por ser um lugar de passagem para a paz. Se, em 1918, Franklin Delano Roosevelt escolheu Ponta Delgada para apoio ao transporte de tropas a caminho da Europa, por aquelas pistas passaram sobretudo soldados de regresso a casa. O nome de código da operação, “Green Project”, era ele mesmo uma declaração de esperança numa nova era.
Foi neste ambiente, um dos espaços nacionais onde mais se concentravam pessoas com ensino superior ou com uma cultura acima da média, que começou a germinar a minha vontade de fazer das palavras escritas um uso para além da obrigação de alguma carta familiar. Sem Santa Maria, sobretudo sem o seu Externato, eu teria ficado pela 4.ª classe, tal como todos os rapazes que nasceram na Maia, em São Miguel, no mesmo ano que eu. Por um desses acasos que são difíceis de explicar, cresci logo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antes de completar seis anos, perguntei a meu pai como é que se faziam versos. Ele era um improvisador de quadras e de histórias como poucos conheci na vida. Chegou a fazer o negócio de uma burra cantando ao desafio. E, nos intervalos do almoço, contava casos a homens da sua idade, mas tão interessados como crianças. Vi muitos filmes pelos seus olhos, ou ouvi-os da sua boca. Ele levou a sério a minha pergunta sobre poesia, e respondeu como se deve sempre responder a uma criança: dizendo a verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criança será um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que só guardo a memória de uns longos caracóis loiros. Sei que começava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: “Sou Daniel/ da ilha de São Miguel”.
Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Mãe também. E nela vivia então um poeta que fez parte do meu imaginário, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Araújo. Não tive a sorte de ser seu aluno, mas a ânsia de alcançar um estatuto semelhante ao seu foi talvez o maior impulso que me levou a dedicar-me à escrita.
Mas Santa Maria veio a ser para mim cenário de drama também. Numa certa manhã, os responsáveis pela Direcção do Serviço de Obras estavam reunidos para despedir pessoal. O critério escolhido foi o de optar pelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque éramos só minha irmã e eu. Minha irmã não estudara porque as propinas equivaliam a um terço do ordenado de meu pai. Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou não o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramática da 4.ª classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colégio, como chamávamos ao Externato.
O Miguel Corte-Real, esse homem da linhagem dos primeiros povoadores e a quem Santa Maria muito deve, não concordou com a ideia, alegando que eu estudava, e que meu pai e minha mãe, costureira, se sacrificavam a trabalhar mais do que podiam para eu ter aquele privilégio. Estava a questão por decidir quando chegou um funcionário com uma notícia dramaticamente irónica. Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida.
(Texto lido no colóquio Santa Maria nas rotas do Atlântico, promovido no dia 9 de Agosto pela Fundação Luso-Americana, sob a responsabilidade de Mário Mesquita)
20 comentários:
Daniel,
Gostamos muito, muito deste texto, que sendo intimista é também autobiográfico. Permitiu-nos, por isso, conhecer melhor o autor e perceber como a adversidade aguça o engenho humano.
Um texto saboroso, repleto das memórias simples que constroem a nossa vida.
Francisca e Mafalda
Daniel,
Gostamos muito, muito deste texto, que sendo intimista é também autobiográfico. Permitiu-nos, por isso, conhecer melhor o autor e perceber como a adversidade aguça o engenho humano.
Um texto saboroso, repleto das memórias simples que constroem a nossa vida.
Francisca e Mafalda
Texto aasombroso!
Só para saber de "uma casinha toda ao pé da porta" e de um apagar de luz que era o "anúncio de todas as claridades", teria sido uma bela ideia passar por aqui... mas isso sou eu, com a mania dos pormenores.
Abraço.
Samuel, são os pormenores que fazem a diferença.
Eu aprendi isto muito cedo com o autor do texto, nem sequer imagina ele como, como a tantas outras coisas.
Francisca e Mafalda
Finalmente conheci em pessoa a vossa muito querida professora, bem como o Fidalgo e a Ana. Para que tudo fosse perfeito nem sequer faltou uma coincidência espantosa: a minha cunhada Isabel, professora de Filosofia no Seixal e em cuja casa aqui da Maia nos encontrámos, foi colega e muito amiga, em Braga, do António Fidalgo!
Se vocês acham que valeu a pena a pessoa que resultou de um passado como o meu, então esse passado valeu a pena.
Samuel
Sempre a tua generosidade "assombrosa". De facto, como diz o meu especialíssimo amigo JV, os pormenores é que são, normalmente, o mais importante. É por eles que se distinguem as papoilas nas searas.
Querido Daniel!
fico sempre pasmada ao ler os seus textos! quero comentar, mas nunca sei como fazê-lo (pertenço ao grupo dos "desafinados" da escrita :)!). só posso confirmar que os seus escritos, são mesmo papoilas nas searas!...
bem haja!
beijocassssss
vovó Maria ( a "cantigueira" terceirense)
Vovó Maria, "cantigueira" e terceirense" são duas qualidades que nuito aprecio.
Obrigado, amiga. Retribuo os beijos.
Daniel
Meu querido escritor
"Os olhos já não podem ver as coisas que só o coração pode entender".
"Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida."
Ai, ai, Senhor meu Deus!!!
Daniel, meu Amigo, com que tristeza escreveste esta singela e dolorida frase...
Esta declaração de amor não é simplesmente à tua ilha Mãe, mas acima de tudo à VIDA QUE TEU PAI DEU E VIVEU EM STA. MARIA. Esta declaração de amor é, através da ilha, a teu Pai, porque a ilha é o sangue e a vida de teu Pai. P'ra sempre!
Daniel, um beijo cor de malva.
Cristina
Feliz seria o mundo se o coração é que comandasse sempre a nossa vida.
Margarida
Custou-me escrevê-la e custou-me dizê-la. Porque me custou terrivelmente vivê-la. Talvez meu Pai não desgostasse do resultado dos seus sacrifícios para que eu pudesse ter estudado umas coisitas mais do que os rapazes da Maia da minha idade.
Caro Daniel de Sá,
Permita-me que o trate assim desta maneira próxima e que desejo amiga, pois apesar de não nos conhecermos, pelas suas lindíssimas palavras sinto que o conheço desde os meus tempos de infância em Santa Maria, terra onde vi a luz pela primeira vez em Junho de 1950, mais precisamente no velhinho hospital de Vila do Porto.
Nasci e vivi em Santa Maria até aos meus 14 anos. Sou a filha mais velha de um funcionário do Aeroporto (Biscaia) que foi para Santa Maria em Agosto de 1946, incluído no primeiro grupo de funcionários que deram início ao Aeroporto de Santa Maria como Aeroporto Civil Português.
Morei no Bairro de S.Lourenço, no Aeroporto, pertinho do parque infantil, mesmo junto ao canto onde terminava o carreiro que atravessava os pastos e que ia dar a Santana. Todos os dias eu via pessoas a passar por esses caminhos que também por diversas vezes percorri, quanto mais não fosse em brincadeiras para ir apanhar amoras ou musgo para fazer o presépio.
São maravilhosas as suas descrições, tão transparentes e iluminadas que se eu conseguisse fechar os olhos ao lê-las, iria conseguir ver tudo de novo ao fim de 43 anos de distância. Nelas eu vejo reproduzidos episódios e lugares por onde passei nos meus 14 anos de Santa Maria que poderei dizer foram sensacionais.
Tenho muitas e belíssimas recordações da minha infância mariense, de tantos amigos de lá deixei e que felizmente ainda conservo, mas creio que desde que deixei a minha Ilha consigo reparar com mais detalhe em todos os pormenores que sem qualquer esforço ficaram retidos na minha memória.
Não pretendo alongar-me demasiado em evocações de episódios da minha infância porque não desejo tornar-me fastidiosa para quem possa ler este meu comentário. Outras oportunidades surgirão, decerto.
Recomendada por um amigo mariense consegui adquirir o seu livro "Santa Maria a ilha-mãe" que li e reli com muitíssimo prazer. Já há algum tempo que também vou visitando o seu blog e de cada vez me encanto mais com a sensibilidade e facilidade de transmitir o seu sentir que coloca nos seus textos.
Já há bastante tempo que tencionava escrever umas palavrinhas, mas não me atrevia. Desta vez superei o acanhamento porque o incentivo (a sua declaração de amor a Santa Maria) foi superior aos meus receios de não ser capaz de transmitir o meu sentir.
Muitíssimo obrigada por todos os momentos que me proporciona.
Aqui deixo o meu abraço cada vez mais mariense apesar da distância.
Isabel Biscaia
Iasbel, querida amiga (pergunto eu agora: posso tratá-la assim?)
Não pode imaginar quanto me maravilhei com esta mensagem. De certeza passei por sua casa vezes sem conta. O meu padrinho de crisma (Dédalo Leitão) morava também no bairro de São Lourenço. Em frente ficava a casa do Sr. Dalberto Pombo, no mesmo bloco da família do Sr. Cardoso, que não era o porteiro do Atlântida Cine. Perto da sua casa (da sua, Isabel) ficava a do Sr. Zeferino (que tentou consertar-me um relógio que se adiantava seis horas por dia e não conseguiu), aonde eu ia muitas vezes, pois era amigo do Henrique. Havia também a Susana, mais nova uns anitos, e que tinha uns olhos dos mais belos que conheci. Em frente era onde morava o Sr. Sarmento, com quem vivia o cunhado, o Elias, que refiro no texto. Foi com este que ouvi o primeiro relato de um jogo do Sporting. (4-2, ganhou o Belenenses, com 4 golos do Matateu. Há uns anos recordei este jogo com o Vicente, irmão do Matateu.)
Tenho infindas recordações do bairro de São Lourenço. Ah, e claro que ouvi falar muito do Sr. Biscaia, mas não me lembro da cara.
O meu pai foi para Santa Maria em 1945, e eu, com a minha mãe e a minha irmã, em 1946, precisamente.
Um abraço de amizade, com a idade da nossa idade na ilha. (Quer dizer, um abraço puro como se a vida estivesse na alvorada ainda.)
Daniel
Caro Daniel,
É com todo o gosto que lhe retribuo o seu abraço. A simpatia das suas palavras é de facto enorme, tão grande como a alegria que sinto ao lê-las.
Esta sua descrição, uma vez mais, transporta-me àqueles lugares que ficaram registados no meu imaginário de infância com um pormenor incrível.
Recordo os campos abertos que ficavam junto à minha casa, com as mimosas e as giestas amarelas, a macela, aqueles muros de pedra sobre pedra cobertos de musgo, tanta vez que o meu olhar se fixou nestes pormenores, aparentemente insignificantes mas que afinal ao fim de tanto tempo ainda compõem a paisagem da minha memória.
De facto essas pessoas que menciona eram todas elas minhas conhecidas e dos meus pais também. A minha casa ficava ao cimo do parque infantil (que era zelosamente guardado pela D. Fernanda e que muito aturou as nossas traquinices). Morámos mesmo em frente da casa do Sr.Herculano Ponte, que tinha uma escola primária particular (em casa dele) que era frequentada por muitas crianças da nossa idade.
Mas essa casa foi a minha segunda casa em Santa Maria: até 1955 morei no nº. 1 do Bairro de Santa Bárbara, mesmo em frente do Clube, data em que mudámos para uma casa maior, então a do Bairro de S.Lourenço.
As recordações dos tempos passados no Clube, (nas tardes e noites em que acompanhando os nossos pais nos divertíamos tanto com os filhos de outras pessoas que lá procuravam o convívio de amigos), no Terminal (bar e redondezas por onde não parávamos de correr quando íamos lanchar ou simplesmente passear e esperar os aviões para ver outras gentes), no nosso colégio (com tantas histórias e onde convivíamos com tantos amigos), no verão, as idas a S.Lourenço, aos Anjos, à praia (nos grupos organizados no velho Bus do Aeroporto), etc., são inúmeras, assim como os amigos que no curto espaço de 14 anos que vivi em Santa Maria consegui ganhar e que felizmente ainda hoje tenho o grato prazer de contar e de manter contacto. Sou uma pessoa grata ao destino por me ter proporcionado esta ventura.
Olhando as suas últimas linhas em que se refere ao Matateu... é curioso... lembrei-me de um episódio em que fui interveniente e que em poucas palavras lhe terei o gosto de contar: Eu teria por volta de 4 ou 5 anos. Estava com os meus pais a almoçar na Messe do Clube. Por coincidência estava lá também o Matateus (ceio que estaria de passagem pela ilha, eventualmente integrado numa viagem do grupo de futebol). Eu olhei para ele e disse-lhe “És da cor do chocolate”... ele muito simpático achou graça ao meu dito. Pegou-me ao colo e foi ao bar comprar um chocolate que me ofereceu... Nunca mais me esqueci deste episódio.
Quando ao Sr. Zeferino... a Suzana e o Henrique andaram no colégio ao mesmo tempo que eu, lembro-me muito bem deles e tenho até fotografias em que eles estão. Soube há pouco tempo que o Henrique já não está entre nós. Tive muita pena. Mas tal como já perdemos o Henrique já perdemos outros colegas e amigos ... é assim a vida. Tão depressa nos dá como nos tira. Tirou-me o Luis filho do meu padrinho de baptismo Sr.Carlos Silva da Rosa d’Ouro, tirou-me o Nelinho (da casa Voga), tirou-me a Clarinha (filhado S. Israel)... todos estes eram meus colegas de turma e a partida deles trouxe-me muita tristeza e deixou-me tanta saudade...
Enfim...por agora vou interromper estas minhas descrições dos meus tempos passados na minha Santa Maria. Já estarei a alongar-me demasiado.
Terei muito gosto em enviar-lhe algumas fotos e contar-lhe outros tantos episódios sobre Santa Maria. De desejar, poderá contactar-me para isabelbiscaia@gmail.com , onde teremos mais espaço para nos alongarmos nas nossas recordações. Quem sabe poderão ser-lhe úteis para as suas memórias ou para algum trabalho.
Outro abraço de amizade
Isabel
Isabel
É o sortilégio daquela ilha fantástica. Esta possibilidade de contactar consigo encanta-me. Vou já enviar uma mensagem particular.
Um forte abraço.
Daniel
Não sou mariense mas apreciei a beleza do texto como se fosse.
Magnífica a frase sobre a vaga deixada em aberto pelo teu pai.
Abraço.
onésimo
Onésimo, a tua visita surpreendeu-me. Mas a única coisa previsível em ti é a imprevisibilidade.
Um forte abraço.
Daniel
Olá Daniel
Foi a Isabel Biscaia que me lembrou o teu blogue.
Agora,depois de enxugar a lágrima no canto do olho, que não consegui evitar ao ouvir-te, bem como ao Lopes de Araújo, resolvi vir aqui deixar-te um olá.
Só mesmo tu podias falar numa casa "que era toda ao pé da porta" ou no "longe relativo ao tamanho do corpo" ou "o meu pai deixara vago definitivamente o seu lugar na vida".
Ouvir-te lembrar o Sr. Cardoso do Cinema fez-me recordar também o Chefe Lázaro que nos mandava dar 2 corridas à volta do cinema para depois nos deixar entrar todos para o "geral" com um "não quero ouvir barulho" nem sempre respeitado.
Ou o Dédalo Leitão pai do meu querido amigo Gilberto e de quem ouvi "briefings" na Meteorologia que só ele sabia dar.
Ou do senhor Pombo que se esqueceu das suas bagas e sementes sempre no bolso e nos deixou antes do combinado.
Ou do Daniel Cardoso que se agarrou ao trem do avião e viajou para longe sobrevivendo à aventura.
Ou do Lourenço de Melo, nosso chefe na Mocidade Portuguesa.
Ou do Dr. Bento Rodrigues cuja serenidade, bondade,humanidade e saber tivemos a felicidade de conhecer.
Ou do Severino, do Henrique da Susana do Nini,do João.
Ou dos Gamboas...
Um dia destes passo aí na Maia para te dar um abraço por seres capaz de me fazer recordar com todo o detalhe a nossa Santa Maria.
Sabes, ao pé de ti em Santana, morava a Adelaide que tantos anos trabalhou na nossa casa e quantas vezes chegava encharcada pelo atravessar da ribeira de Santana.
Os nossos pais trabalharam ambos na Direção D'Obras.
Precisamos de conversar mais sobre o que aconteceu desde então.
Um grande abraço
Luis Candeias
Luís
É a isso que eu chamo o sortilégio de Santa Maria. Falas aí de gente de que gostei muito também. O Dédalo Leitão, por exemplo, que era meu padrinho de crisma; o Gilberto, que também nos deixou muito "antes do combinado" (morámos juntos na casa de São Pedro do Sr. Armando Monteiro, durante uns três meses, era o Gilberto um bebé, e eu ia vê-lo ao berço e prevenia, quando era caso disso: "Ó Sr.ª Helena, o Gilberto tem a fralda molhada); da Susana, que tinha um dos pares de olhos mais bonitos que conheci... Enfim, a nossa Santa Maria de gente, difculdades, sonhos e algumas desilusões. Uma Ilha que soube sempre ser mãe. E onde a coisa mais bela que podemm dizer a meu respeito é que sou mariense. Mas já estou a repetir-me.
Um forte abraço. E obrigado por esta visita e pela promessa de outra, em carne e osso, quando calhar.
No teu cantinho até os comentários valem.
Beijos a todos
Realmente, não sou de nenhuma ilha e vim aqui parar sabe-se lá como... mas, adorei ler cada letra, cada palavra, incluindo os comentários. Adorei!!! Como gostaria de ser capaz de escrever assim... E como gostaria também de sentir a amizade que depreendi nas leituras... Parabéns e obrigada por existirem.
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