sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Ram-Ram

Adão Contreiras, O Engraxador de Sapatos (desenho à pena sobre papel, 13x10)

O Ram-Ram não tinha dois dedos de testa. Nascera assim. Mas tinha coração. Coração e reflexos inacreditáveis. Ingénuo, parecia uma criança grande. A sua felicidade era completa com uma raqueta de ping-pong na mão e um adversário disposto ao sacrifício. Nisso, era o melhor dos Açores. E há muita gente que vive e morre sem nunca ter sido o melhor em nada. Porque a sua era uma língua de trapos, ficou-lhe o nome de Ram-Ram. Ou Quá-Quá. Não se ofendia.


Se fosse hoje, o Ram-Ram talvez não trabalhasse. Uma qualquer assistente social facilmente lhe concederia uma pensão de invalidez ou coisa parecida. Mas o Ram-Ram ganhava a vida honestamente como engraxador. Havia um professor que era um dos muitos que admiravam o seu talento desportivo. Por causa disso, não se atrevia a vê-lo ajoelhado a seus pés e tratava-o por Manuel. Mas entendia que não estava certo privá-lo do seu modo de ganhar dinheiro para o pão e alguma cerveja de vez em quando. Quando o encontrava convidava-o a acompanhá-lo à cervejaria. Ali ficavam ambos com os olhos à mesma altura. E o Ram-Ram exultava, anunciando aos circunstantes que o professor era seu amigo.


O professor não sabe se onde o Manuel está também se joga ping-pong. Mas sonha com um dia em que todos os homens tenham os olhos à mesma altura. Quer sejam engraxadores ou bancários, trolhas ou administradores. Um dia que não seja um dia de festa. Um dia que seja todos os dias.

19 comentários:

IBEL disse...

Que lindo e que maneira tão simples de dizer que não é necessário comemorar o dia do trabalhador, quando vier o dia "em que todos os homens tenham os olhos à mesma altura. Quer sejam engraxadores ou bancários, trolhas ou administradores".
Um grande abraço escritormor!

Cris disse...

"...sonha com o dia em que todos os homens tenham os olhos à mesma altura."
Gostaria de ter tido um dedinho de prosa com esse professor... Mas, consolo-me que sendo um professor certamente espalhou muitas sementes, e algumas provavelmente encontraram terra fértil.
É isso: "Não classifiquem a humanidade".
Um grande beijo no coração.

Emanuel disse...

Que maneira tão bela de contar como alguém era professor dentro da sala de aula e fora dela.
Gostei imenso!

Daniel disse...

Isabel
É gente como tu que nos faz sonhar que vale a pena escrever.
Cristina
Esse professor de certeza que também iria gostar de ter uma prosa contigo.
Emanuel
De facto, um professor deve sê-lo um pouco mais do que dentro da escola somente.
Obrigado aos três.

CS disse...

Amém!

Anónimo disse...

É por isso que como a minha mãe diz o professor não ensina apenas o que sabe, mas essencialmente o que é.

Linda mensagem.

Francisca e Mafalda

jv disse...

Tenho a certeza que professor também aprendeu bastante com o Ram-Ram, senão nem tinhamos este belo texto aqui.

jv disse...

Até que enfim que consegui publicar um comentário aqui.Santa ignorância.
Raio de sistema de verificação de palavras.
Um abraço

Daniel disse...

CS
Amém!
Penso o mesmo a respeito de ser professor. Obrigado por mais esta presença tão significativa para mim.
JV
Claro que aprendeu. Pelo menos a perceber que os bons sentimentos valem muito mais do que a inteligência.

samuel disse...

Onde está o Ram-Ram, joga-se muito ping-pong... e esse dia que o professor sonha, será uma espécie de campeonato do mundo, com muitos milhões de lugares no "podium".

Se tivesse sido Cristo a contar esta parábola, que personagens escolheria? :-)))

Abraço.

Daniel disse...

Um deles, talvez um homem que trabalhava na terra para o patrão durante o dia e, à noite, servia na taberna do mesmo, para que o "dono" pagasse à Caixa para o empregado poder receber abono de família. Um inspector do trabalho descobriu a injustiça e foramm ambos chamados ao Tribunal do Trabalho, que obrigou o patrão, à vista do juiz, a pagar ao empregado. À saída, o patrão disse-lhe: "Passa para cá esse dinheiro, que é o meu trabalho." E ele passou.
(Um deles tem lugar no "podium", com certeza.)

Mar de Bem disse...

Ai, meu Deus, tamanhas mágoas...

Quando eu era adolescente, o carroceiro a quem eu cumprimentava todos os dias, como a todos, um dia parou a carroça e disse-me: "menina, queria que conhecesse a minha filha". Era uma menina linda que o acompanhava nesse dia e fiquei contente por partilhar com ele o seu grande orgulho de pai. Acima de tudo, porque os senhores desta terra não se dignavam olhar para este homem com a dignidade que ele merecia, porque ele era carroceiro.
Mas, minha gente, viram os sentimentos daquele homem em relação à sua filha? E o orgulho de o partilhar com uma menina de sociedade, que eu nem tinha consciência de que o era...!!!

Ele, o carroceiro já deve estar no sítio dos "podiuns" de todos os ping-pongues. Sua filha, nem sei quem seja (Lisboa tira-nos anos de vida!), mas acho que precisava mesmo de saber o grande orgulho que seu Pai tinha de si...

Daniel disse...

Mar de Bem (este nome fica-te mesmo bem)
O meu Pai também foi carroceiro. Uma profissão difícil, sobretudo no tempo da Grande Guerra. Chegou a fazer viagens de Ponta Delgada até Algarvia! (De Ponta Delgada à Maia são mais de trinta Km, e daqui a Algarvia são mais ou menos outros tantos.) Havia bestas e bois que morriam de exaustão. Houve uma noite de temporal em que teve de dormir na Algarvia, recolhido por um extraordinário maestro de filarmónicas, com quem criou amizade para o resto da vida.
Um abraço.
Daniel

CS disse...

Mergulho na vossa sensibilidade e acredito cada vez mais (contra a corrente) que podemos construir um mundo melhor. Obrigado!

Mar de Bem disse...

Oh, Daniel, há vidas imensas que nunca iremos vislumbrar.

Só de imaginar o que o teu Pai calcorreava, dá-me um cansaço... e estou sentada!!! Meu Deus, o que as pessoas trabalhavam, as canseiras que passavam...

Não aceito por isso, as queixas de criaturas que se julgam no direito a tudo ter e, se não o têm, armam-se em vítimas. Essas, não são dignas de dó, nem da nossa atenção!!!

IBEL disse...

Daniel,

Talvez um dia nos surpreendas com um texto sobre o teu pai e a tua mãe...
Li uma vez no Delfos algo sobre o teu Natal(julgo), mas adorava um retrato dos teus pais, em palavras.

Cris disse...

Querido Daniel
Não sabemos qual foi o destino que abraçou a Preciosidade do carroceiro da Mar de Bem,mas, sabemos o destino de um outro,um homem a quem eu realmente lamento não ter olhado dentro dos olhos,um guerreiro,que nos deixou um fruto de um valor inestimável,nos deixou parte de sua alma,de seu suor,de seu cansaço,ofertando ao mundo tão injusto,uma luz.Antes de qualquer coisa,ele gerou um ser humano de alma rara,e nos presenteou a todos os que com um pouquinho de sorte podem conhecer uma brisa sua.Felizes são os que podem desfrutar dessa convivência estreita a seu lado.
Deixo um beijo a Mar de bem por sua importante e sensível lembrança,e outro no seu coração.

Daniel disse...

CS
Gente como a Mar(garida) de Bem Madruga, a I(sa)bel e a Cris(tina) são os fundamentos do mundo novo por que todos ansiamos.
Quatro abraços.
Daniel

Mar de Bem disse...

Cris, é bonito o teu abraço...
Sinto-me honrada com ele, porque eu só gosto de coisas bonitas.Tão bonitas como tu, Daniel, que nos alindas a alma, com toda a tua sabedoria, a tua generosidade, as tuas lindas palavras...(não consigo acertar coisa com coisa...meus olhos estão cada vez mais pequeninos...de sono)
Beijos morninhos, p'ra todos...