sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ilha a Ilha: Terceira

(Angra do Heroísmo com o Monte Brasil ao fundo)

Na Terceira, onde em cerca de quatrocentos quilómetros quadrados vivem perto de cinquenta e seis mil pessoas (sem contar com os militares e outros funcionários americanos da Base das Lajes e suas famílias), o melhor da paisagem talvez seja o que foi feito pela sua gente. Os terceirenses têm o culto da cor e da alegria. A policromia dos seus povoados expressa um estado de espírito colectivo, uma exaltação sensível da vida que não se encontra em nenhuns outros açorianos.


Tendo sido a ilha mais teimosamente portuguesa, a que resistiu sozinha às pretensões de Filipe II ao trono de Portugal, acabou por ser a que mais beneficiou com o seu governo, chegando a parecer que um pouco da alma espanhola foi deixado nela.


A Terceira gosta de festas. E, acima de todas, gosta da “festa” – a brava, dos riscos do redondel ou do divertimento das touradas à corda.


A cidade de Angra, a partir da qual triunfou o liberalismo, mereceu, por causa disso, que o nome lhe fosse acrescentado com a designação “do Heroísmo”, como a então Vila da Praia passou a ser “da Vitória”, porque perto dela os liberais derrotaram os absolutistas na primeira grande batalha campal da Guerra Civil. A memória da sua importância na defesa da rota das Índias está bem viva ainda na fortificação filipina que era uma das mais formidáveis de todo o Atlântico. Dentro das suas muralhas, depois da proclamação de D. João IV, a guarnição espanhola resistiu aos portugueses durante um ano e, quando se rendeu, os vencedores prestaram homenagem aos vencidos. Gente fidalga, os terceirenses.


Em grande parte destruída pelo sismo de um de Janeiro de 1980, a Angra renascentista limpou as suas formosas ruas que se cruzam verticalmente, repôs as pedras de dezenas de edifícios, e recebeu da UNESCO, como reconhecimento da sua harmonia arquitectónica e em honra da História que ancorou no seu porto, a distinção de ser considerada Cidade Património Mundial. Mas toda a ilha é património da Humanidade.


(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

18 comentários:

Anónimo disse...

Interessante texto, que reflecte bem o gosto pela terra.

Desconhecíamos a origem do nome Angra do Heroísmo.


Francisca e Mafalda

jv disse...

Fazer História,no nosso país a este nível só encontro,Oliveira Martins.
Num pequeno texto, temos a descrição completa do povo terceirense, de toda a sua história e da sua maneira de ser« uma exaltação sensível da vida». Genial, sem dúvida.
Alguém se lembra de mais alguma coisa que aqui esteja faltando?
Um abraço

samuel disse...

A cidade de Angra deixa-me sempre sem palavras.
Durante este curto texto, andei como um doido a aproveitar a claridade da descrição para molhar os pés em Porto Martins, dar um salto à Serreta, a cada passagem, acariciar o Monte Brasil com o olhar, lamentar que o Atanásio já não seja o que foi, elevar o espírito ao passar em frente da catedral (sim, os não crentes, também têm espíritos que se elevam, ora essa!...), "pecar" mais um pouco no Forno, sacudir o açucar da "Dona Amélia" e ir até ao fim da rua para desembocar no Páteo da Alfândega e aí ficar... sonhando com veleiros.

Obrigado!

samuel disse...

Errata:
Onde está páteo é favor imaginar que eu escrevi pátio.
Ah... e a Catedral teria ficado melhor assim... com C maiúsculo.

É tudo. :-)))

Abraço.

Eduarda disse...

Tens piada,Samuel.E sensibilidade,muita!E bom gosto,muito!
Daniel,obrigada por nos trazeres as ilhas embrulhadas em papel de cenário...Sei que Angra é uma cidade lindíssima e as suas gentes também.Sabes,quando a ferrugem do dia a dia nos magoa os olhos,nada melhor vir aqui para lhes proporcionar vigor,reflexão,saber beleza e humanismo.
Sabes que gostamos de ti,amigo.

IBEL disse...

A gente vai lendo as ilhas e,além de fortalecer conhecimentos históricos, fica cheia de pena de não viver por essas bandas de água.
Também nunca tinha associado a designação da cidade de Angra a factos históricos, mas a explicação tem toda a lógica, bem como o facto de ser a ilha "mais teimosamente portuguesa".
Agrada-me saber que as cores dos povoados "expressem um estado de espírito colectivo", o que comprova que as cidades e as terras são a alma de quem as habita.
E assim me vou apegando aos Açores e a quem os traz até aos nós com palavras simples e poéticas, sem grandes artifícios, como os rostos jovens, que são naturalmente lindos e convidativos à contemplação.
Abraço, amigo de palavras jovenis e apetitosas, como as cerejas «maduras»...

Cris disse...

Alguém que possui esse olhar e esse sentir,também deve ser patrimonio da humanidade...Palavras como estas deveriam correr o mundo,certamente adoçariam muitas vidas.
Precisamos de cores, festa, amor, prosa,significados,palavras elaboradas pela alma de Daniel,o resto não importa,já temos a cota suficiente...Beijos no coração querido Daniel.

Daniel disse...

F. e M.
Quando se aprende pelo menos uma coisa nova, o dia já valeu a pena. Obrigado por me aceitarem como professor.
JV
Hiperbólico, mas quando é para melhor a gente desculpa, não é? Olha que a Terceira é muito, mas muito mais do que isto.
Sam
Se houver de facto um julgamento eterno, o código é outro: "Viste-me com fome, e deste-me de comer" etc.
Eduarda
E quem não há-de gostar de amigos como vocês?
Ibel
As cerejas! Que melhor exemplo para a prodigalidade do teu comentário do que esse das irrestíveis cerejas?
Cris
Cada pessoa é património da humanidade. Se levássemos isto a sério, talvez tivéssemos mais cuidado naquilo que fazemos.
Obrigado a todos.

Anónimo disse...

Agora é historiador do Santo Cristo. Numa terra pobre como a nossa é vulgar a usurpação.Sobretudo no domínio da história, onde há médicos, advogados e agora também professores primários. Ao contrário é que seria uma aberração. Porque será? É a pobreza que vivemos.

Ok, ok, abram alas para os cumplices e defensores, os sams, os gagos, os rvns, ex-seminas e semi-padres de toda a ordem.
ignorem. Foi só vontade de provocação.

Daniel disse...

Anónimo
Gosto de uma boa provocação. Mas confesso que prefiro saber como são as orelhas do provocador.
(Ignora. Foi só vontade de provocação.)

Anónimo disse...

Subscrevo tudo o que disse o Samuel. É justo e merecido. Só lhe faltou mesmo sentar-se na frescura do jardim público de Angra do Heroísmo e deixar derramar a natureza…
Venho a terreiro, convidar o Daniel a entrar, já que está aqui vizinho.
Estou à espera de ver o retrato da minha ilha, a única do arquipélago, que nunca teve nome de santo.
Mas tenho tempo e paciência!
Já me falta a dita, para coisas demolidoras e gratuitas.
O Daniel dispensa a minha defesa, mas vem a propósito salientar os seus créditos e seriedade nos trabalhos que apresenta, sendo que ele trata por “tu” as coisas divinas e tem uma fina ironia até para as coisas mais prosaicas.
Está à vista
Maria das Mercês

Daniel disse...

Mercês, querida amiga
Seguindo a ordem geográfica, a tua lindíssima Graciosa vem a seguir. Logo que o Rodrigo tenha tempo, ela cá estará.
Quanto ao mais, e sem que de modo algum eu queira comparar-me a eles, como é óbvio, lembro que o Oliveira Martins era um simples empregado do comércio sem curso superior. O José Hermano Saraiva é jurista, como tu. O Gaspar Frutuoso era padre, tal como António Cordeiro e Sena Freitas. O Gregório Maranhão era médico.
E, segundo a versão da Vulgata, vem dito no capítulo I, versículo XV do Eclesiastes, que "stultorum infinitus est numerus". Pelo que não vale a pena gastares o teu latim, pois a primeira parte deste versículo afirma que "perversi difficile corriguntur".
Um abraço.
Daniel

jv disse...

Daniel, claro que a Terceira é muito mais do que isto, mas a partir daqui, só para os «entendidos», o essencial está aqui magnificamente retratado.
Faço-te uma pergunta, se eu ecrevesse assim, não me podias comparar a Oliveira Martins?
Não ignores.Isto não foi vontade de provocação.

Emanuel disse...

Gostei tanto, mas tanto deste post! Vivi alguns anos em Angra e isso deixou-me umas saudades marcadas a sangue. Tenho muitas saudades mesmo...

Excelente descrição! Como aliás é habitual neste blogue.
(Sim, que já andei a ler o que ficou para trás, que sou novo aqui)

Isso da "alma espanhola" da Terceira é mesmo verídico; conheço um pouco a mentalidade dos nuestros hermanos e acho que uma ligação cultural é mesmo essa: Fiesta!

E a descrição, num comentário anterior - do Samuel -, sobre os locais da Terceira foram precisos e saudosos...

Um Abraço!

Anónimo disse...

Caro Daniel:
Infelizmente, não conheço os Açores. Eu sei, eu imagino o que perco. É este medo dos aviões, sabe, uma vergonha! Mas vou lendo os seus textos e vendo paisagens, cores, gente. O azul do céu e da água. Saboreando a linguagem na poesia e na prosa, que me encanta. Por isso, acredite que foi, no que me diz respeito, uma óptima ideia a do aparecimento do seu blog. Vou conhecendo, assim, por si, Daniel, essas ilhas que devem ter uma magia especial que vem da Natureza e da mão de Deus, certamente.

Abraço amigo da

Soledade Martinho Costa

Mar de Bem disse...

Sabes, Daniel, foi a 2 de Janº de 1980, quase à meia-noite que, calcorreando as ruas desertas de Angra do Heroísmo com o Dr. Caetano Tomás, senti o que era o fim do mundo...

Não havia luz...
Noite tenebrosa, negra e...um silêncio aterrador.
Louco e sibilante o barulho do vento, trazendo aquele pó que invadia olhos, pele e cabelos... Papéis e outros detritos volteavam num vórtice tenebroso...e não havia vivalma... Nem uma criatura de Deus...

Pó, pó, pó...vento, vento, vento sibilante e... NINGUÉM!!!

E ANGRA renasceu do pó e foi Património Mundial da Humanidade!

Acho que todos nós poderemos e deveremos renascer quando as nossas vidas se esboroam. A cidade de Angra dá-nos o exemplo. E sabem porquê? ANGRA NÃO É TRISTE como alguns de nós!!!

Daniel disse...

JV
Aceito o teu comentário como uma elogio hiperbólico. É que o Oliveira Martins tinha uma força enorme ao escrever que, só de imaginar que te ocorreu pensar nele ao ler um texto meu, me dá um arrepio... saboroso.
Emanuel, então podes ser testemunha de que não exagero. Os terceirenses são gente extraordinária.
Soledade
Que bom ter-te por aqui! E que bom que tenhas aparecido no meio desta gente magnífica que me ilumina o blogue. Nada tem que ver com o tal, não é, querida amiga?
Mar(garida e Bem)
E pensar que bastava as casas terem um reboco de cimento e talvez nenhuma tivesse caído! Por isso é que normalmente só morrem pobres neste tipo de tragédias.

Mar de Bem disse...

Hoje ouvi uma conferência sobre Darwin. Falava-se que o crescimento dos alimentos é aritmético (aumento uniforme e constante) e o crescimento da população é geométrico (exponencial), por isso convém que se dizime a população de vez em quando, para haver equilíbrio, por isso a lei do mais forte. Alguém, no sec. XIX, era apologista de que não devia haver caridade para ajudar os mais fracos e/ou os mais pobres, para que a selecção natural se cumprisse.

Fiquei...Oh, Daniel, isto é de bradar aos céus!!!