sábado, 23 de maio de 2009

Ilha a Ilha: São Jorge

(fotografia gentilmente cedida pela editora Veraçor)

Se acontecer que se veja alguém apressado em São Jorge, quase de certeza que não é da ilha ou aprendeu longe dela o mau hábito de ter pressa. E pode ser que lhe digam: “Vai devagar, que isso acaba já aí.”

Isso é a ilha, que até nem é das mais pequenas. Da ponta do Topo à dos Rosais, são mais de sessenta quilómetros, praticamente o mesmo que mede São Miguel de Este a Oeste, que é o sentido em que se alongaram estas ilhas, excepto as do Grupo Ocidental, Flores e Corvo. Mas se São Jorge é a ilha do “comprimento demorado” – na definição do poeta continental Carlos Faria, que se apaixonou por ela – é igualmente a da “largura breve”. Quatro quilómetros apenas separam as majestosas escarpas do Norte das enseadas do Sul. É quanto basta, no entanto, para os montes subirem até uma altitude que chega a ultrapassar mil metros.

Desta fantasia geológica – uns esguichos de magma apertados por entre os bordos de uma falha tectónica – resultou uma paisagem tão extraordinária que, quando se dá com ela, se esquece tudo o que se tenha visto antes para pensar que aquele é o mais belo pedaço do Mundo. Mas, se era pouca a terra (cerca de duzentos e quarenta quilómetros quadrados) havia que aproveitá-la o melhor possível. Até nos lugares mais remotos podem encontrar-se dóceis vacas, que produzem o leite de que se faz um dos melhores e mais famosos queijos portugueses, ou uma ermida secular.

São Jorge é também a ilha das admiráveis fajãs, nesgas de espaço que lhe foi acrescentado pelo desprendimento de rochas das altíssimas arribas, criando como que uma nova espécie de ilhas – terra rodeada por mar e por montanhas quase intransponíveis. Nem o mais inspirado arquitecto paisagista seria capaz de inventar tal coisa.

É nesta ilha que os Açores são mais arquipélago. Rigorosamente posta no meio dele, de lá se avistam as outras quatro do Grupo Central: a Nordeste, a Graciosa e a Terceira; a Sudoeste, e a distância que um atleta excepcional pode fazer a nado, o Pico e o Faial. No entanto, os jorgenses viveram quase sempre isolados, bastando-se a si mesmos, com uma vida tão fortemente comunitária que bem se poderia dizer que era socialmente familiar. Os novos meios de comunicação romperam esse isolamento, que não impediu ter havido em São Jorge alguns dos mais antigos jornais do arquipélago e preservou uma espantosa cultura secular, sem lhe atrasar o conhecimento da modernidade, mas que manteve a ilha livre da maior parte das epidemias até à primeira gripe em 1891.

Aqui Diógenes não precisaria de acender a sua lanterna para encontrar um homem, nem um apreciador de música de andar muito – em São Jorge há quinze filarmónicas, um sétimo do total do arquipélago, o que é deveras notável para uma população de apenas nove mil habitantes.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

13 comentários:

Mar-ia disse...

São Jorge é a ilha mais perto da que me viu nascer, mas nem por isso a mais próxima.
No tempo dos Distritos Administrativos, Graciosa e S. Jorge, estavam sob a tutela do de Angra do Heroísmo. Se nunca se desentenderam, nunca firmaram afinidades. Com a criação do sistema autonómico, foram-se os distritos e São Jorge fez aliança com as ilhas geograficamente mais perto, e assim nasceram as ilhas do triângulo.
São Jorge, é uma ilha assombrosa, de escarpas altas e adversárias. É preciso contar horas para a contornar, seja para alcançar Faial e Pico, ou em sentido inverso, Terceira ou Graciosa.
Bastas vezes odiei o tal “comprimento demorado”, quando o mar e as viagens marítimas, eram a acessibilidade disponível.
Rolaram anos sem entrar nela. Quando venci o Adamastor, descobri o deslumbramento.
Não recomendável a quem sofra de vertigens, São Jorge é uma ilha impressionante, como bem - sempre muito bem - descreve o Daniel, para quem vai aquele abraço cúmplice e agradecido. E demorado.

Anónimo disse...

O texto aguçou-nos a vontade de saber mais sobre o arquipélago, especialmente sobre a ilha de S. Jorge.
Conseguimos "ver" as escarpas mergulhando vertiginosamente no mar, sentir o vento no rosto, salpicado pela água salgada.

Aqui deixamos a morada para quem quiser visualizar a ilha e os seus encantos.
http://www.youtube.com/watch?v=6XojHuNOEUY


Francisca e Mafalda

Eduarda disse...

Linda panorâmica!
Rendo-me aos vossos encantos.Não foi por acaso que Deus vos «isolou».(No bom sentido,obviamente!).
Abraço

samuel disse...

Na minha única visita a São Jorge, para cometer umas cantigas, o tempo fez tal careta que os amigos da organização acharam, certamente muito bem, que não adiantava nada ir tentar ver fosse o que fosse da ilha. Fiquei confinado ao simpático quarto de hotel, pendurado sobre o porto e a uns rápidos passeios a pé, que ainda assim me renderam muito mar, um "jardim de brinquedo" muito bonito, em frente à lindíssima Câmara Municipal de Velas, com a sua fantástica grande porta vermelha...

Fiquei com uma enorme pena... e agora ainda mais!

Abraço!

Cris disse...

Daniel meu querido
Já fiquei apaixonada pela Ilha..."Uma fantasia geológica..."
Abriga quinze filarmónicas?
É total melodia...Agora, preciso admitir, desempenhas sozinho o papel de uma filarmonica quando descreves esse arquipélago.
Só posso curvar-me e fazer silêncio,a espera da próxima melodia.
Um abraço bem forte e um beijo barulhento.

CS disse...

A beleza impressiona-me;
o misticismo apoquenta-me.
O que é eu posso fazer?

Elisabete disse...

Belíssimo texto para uma belíssima ilha. É uma das que me falta conhecer, mas tenho visto fotografias e programas da RTP Açores que acabaram em deslumbramento.

IBEL disse...

Afinal,qual das ilhas é a mais bonita? Fica-se assim um cristão, neste caso uma cristã, a pensar: onde me levarão os olhos,se o que vejo plasmado na escrita é de uma «beleza demorada, num comprimento breve?»
Este ano ficar-me-ei por S.Miguel e pela minha «senhora graciosa», que não dispenso.E, se calhar, talvez oiça uma voz imperial que me diga"não é preciso ir depressa que a ilha acaba ali..."
Que seja tão bom quanto o sonho e o desejo de poisar essa terra transatlântica onde a palavra começa e o bordado nunca acaba.

Daniel disse...

Mar-ia
Que bom ter-te do meu lado, tu aí vizinha da frente da Ilha Esmeralda!
Francisca e Mafalda
Pelos vistos, eu não exagerei... Faltaram foi palavras...
Eduarda
Pois é, nem todo o "insulamento" é mau. Sobretudo por estas bandas.
Samuel
Tenho pena de to confirmar, mas acredita que perdeste um dos mais belos espectáculos naturais de Portugal.
Cristina
A ideia que se tem de um ilhéu não é bem essa, pois não? Mas em São Jorge o cálculo de probabilidades é sempre um rotundo fracasso.
Elisabete
Mas faltam os cheiros... e muito mais. Sobretudo, conversar com aquela gente.
Ibel
Essa é a pergunta mais difícil. Quando me responderes qual era a mais bela, se Lia ou se Raquel, eu responder-te-ei a essa pergunta.

Eduarda disse...

Daniel,
Gostei do «insulamento»...

Mar de Bem disse...

...e eu p'lo Pico, esquecida deste cantinho...

E o Francisco Lacerda, talvez o maior músico açoriano, era jorgense... Regeu orquestras em Paris! Creio que foi amigo de Debussy. (Valha-me S. Daniel!!!)

Em 1969 fui a S. Jorge "vigiar" exames. Pegaram em nós, as professoras, e levaram-nos "por montes e vales" (mais montes que vales, mais pastagens e vacas e, imagine-se! - coelhos atravessando as estradas como... caminhantes numa procissão...

Não fui às Fajãs, mas ainda hoje consigo respirar o ar húmido, fresco, cheirando a verdes que senti olhando através duma janela "arte nova" dum casarão de alguém que fomos visitar, creio que na Urzelina. Sinto, como se fosse hoje, a magia daquela sala de visitas. Eu estava nos finais do sec IXX princípios do XX. Lá fora da janela estava a vegetação ancestral e paradisíaca que me fez embalar naquela sala...

Respirei esse TEMPO lento e mágico, na URZELINA, em S. Jorge há quarenta anos..."Benzó Deus"!!!

Daniel disse...

Mar de Bem
O Francisco Lacerda foi, de facto, amigo muito próximo do Debussy.
Aproveito para te contar uma história passada com ele nas Furnas. O Lacerda estava doente e veio cá fazer uma cura de águas medicinais. Um dia entrou na sociedade filarmónica e assistiu a parte do ensaio. Tratava-se da abertura do "Barbeiro de Sevilha". No final de um ensaio geral da peça, ele pediu licença ao regente para falar com os músicos e dirigir novo ensaio. Explicou a história resumida na abertura, dizendo que instrumentos faziam de mexeriqueiras, de Fígaro, etc. Depois dirigiu. Quando acabou, o regente disse-lhe: "Isto não é a mesma coisa!"
Resultado: por esse tempo houve um concurso de bandas filarmónicas da ilha, e a Harmonia Furnense ganhou!

Mar de Bem disse...

Sabes, Daniel, que é um espanto as coisas que nos contas? As coisas que tu sabes!

...agora vou ouvir o "Barbeiro de Sevilha", munida de mais esta memória que nos deste. Tu és mesmo PROFESSOR e é um encanto aprender contigo. Bem hajas, Daniel, "da minha alma , do meu coração"!