segunda-feira, 23 de maio de 2011

Os Nós e os outros

Mosteiro de Nossa de Guadalupe (origem da fotografia: http://www.spainonline.com/)

Sentado na beira do tanque em frente ao mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe, Don Antonio Mayoral. Numa esplêndida tarde que tardava em acabar, o Sol morria. Falou-me dos Republicanos. E mostrou-me o indicador direito, torto, rígido, como um mapa feito de cicatrizes. Disse: “Foram eles que me fizeram isto…” Certamente haveria mostrado aquele dedo centenas ou milhares de vezes, e dito centenas ou milhares de vezes “foram eles que me fizeram isto”. Perguntei-lhe: “Já pensou que também fez isso a eles?” E com Don Antonio fiquei triste quando, tristemente, como se nunca tivesse pensado que havia eles no mesmo lado do sofrimento, respondeu: “É verdade…”


quarta-feira, 11 de maio de 2011

Crítica de Cinema (ficção)

Anschluss. Alice no País das Martavilhas, 1942 Oskar Kokoschka

Os Caídos, de Thorsten Borg

Thorsten Borg, um bom nome para um concurso de televisão. A pergunta poderia ser: “Onde nasceu o realizador Thorsten Borg? a) Alemanha; b) Brasil; c) Áustria; d) Estados Unidos. Embora por um acaso forçado, a resposta certa é b).

O pai, Hagen Borg, alemão e ariano, foi perseguido pelo nazismo. Fotógrafo amador, natural de Aachen, a Aix-la-Chapelle de Carlos Magno, onde vivia, era filho de um realizador menor neo-realista. Hagen fotografou sobretudo gente e cenários o mais possível semelhantes àqueles que o pai filmara. A exposição de meia centena das suas fotografias no início da Primavera de 1938 – uma sucessão de mendigos, bêbados, casebres e cemitérios – lançou sobre si a maldição. A má consciência nazista, que dias antes impusera a “Anschluss” à frágil Áustria, terá entendido a exposição como uma crítica miserabilista ao seu conceito de raça superior. A Gestapo queimou as fotografias, vasculhou a casa à procura de outras, que também destruiu, e passou a vigiar os seus dias e as suas noites. Mas Hagen Borg escondera as cópias, livrando-as assim do fogo do nazismo. E, sob um ténue crescente de Verão, ele e a mulher escaparam à vigilância e atravessaram a pé a fronteira com a Bélgica, indo até Plombières. Poucas semanas mais tarde, chegariam ao Rio Grande do Sul. Hagen levava uma maleta com as fotografias, a mulher levava no seio a filha mais velha. Thorsten teria de esperar ainda uns pares de anos pela sua oportunidade de nascer.

A ideia para o guião é melhor que o filme. A história – o realizador tentou contar uma história, embora pareça que não – nasce das personagens e dos cenários da exposição maldita. O momento em que as figuras e as paisagens fotografadas ganham vida é a sétima arte no seu estado mais puro. Por isso é difícil desculpar a maior parte do resto.

Thorsten Borg reconstitui a exposição de Aachen. Depois, dando um grande plano de cada fotografia, transforma os retratos de pessoas em personagens reais. Os casebres animam-se pelo movimento do fumo, um cão que ladra ou um gato que se espreguiça ao sol. Um sol que mais se subentende do que se percebe, porque o preto e branco da película é uma espécie de preto e cinzento. Monotonia quebrada pelo inesperado clarão do rebentamento da granada de um obus, supostamente na sua cor real. (Influência da menina do casaquinho vermelho, de “A Lista de Schindler”, de Spieldeberg? Talvez.) Com este clarão se anuncia a melhor sequência de “Os Caídos”, que parece inspirada numa das mais arrepiantes da “Vergonha”, de Bergman. Num dos casebres estão, aterrorizados, um casal de idade indefinida, um mendigo cego e uma surda. Mas aquele rebentamento e os que se lhe seguem são a prova de que o cinema nos habituou a um irrealismo que já não dispensamos. O clarão não é acompanhado pelo barulho da explosão, que só se ouve alguns segundos depois. À medida que o relâmpago das explosões aumenta de intensidade, tornando-se quase insuportável, o tempo até ao estrondo vai diminuindo com o encurtar da distância. Esta falta de sincronismo entre o clarão e o som é a tal realidade a que o cinema, que faz coincidir relâmpago e trovão, nos desabituou. A surda estremece a cada clarão, mas o cego só fica apavorado com os estrondos, que não a perturbam. Ambos haviam procurado a companhia do casal para estarem menos sós nos seus medos. O marido e a mulher permanecem abraçados, tremendo, como que querendo livrar-se de um frio gélido, com os olhos escondidos nos ombros um do outro. Nas últimas imagens da sequência, clarão e estrondo são simultâneos, e o casebre desaparece.

Na sequência anterior, Thorsten Borg fizera-nos sentir piedade pelos donos da casa. Na fotografia da exposição, a família, que se benze, está completa à mesa – o casal e três filhos. No filme, a cena acaba quando o pai, concluída a oração, pega na colher. Na cena seguinte, os filhos são já dois somente. Depois, apenas um. Finalmente, só o homem e a mulher. Borg põe então o casal sozinho a sentar-se para comer uma meia dúzia de vezes, diminuindo sempre a sopa e o pão. Até que se chegam ambos à mesa vazia, benzem-se como habitualmente mas não rezam, e retiram-se. Nos fotogramas das imagens dos destroços do casebre, Thorsten Borg sobrepôs umas gotas (talvez lágrimas) que escorrem como se alguém chorasse sobre a película ou a própria tela.

O realizador deu vida também a um dos cemitérios. E dar vida a um cemitério é enchê-lo de mortos. Penosamente assiste-se ao enterro de várias das personagens das fotografias e do filme. Em cada funeral há um acompanhante a menos – o que imediatamente antes fora a enterrar.

O problema de “Os Caídos”… são vários. Da cor, ou da ausência dela, já foi dito. Para fazer um “travelling”, a câmara parece ficar à espera de que o cenário se mova. E os actores são muito melhores no seu papel de mortos do que no de vivos.

Quando, triunfantes, surgiram as há muito desejadas quatro letras, ENDE (fim), corri para a porta para ver se ainda havia Sol. Felizmente, havia.