terça-feira, 9 de novembro de 2010

Post Scriptum para os “Diários” de Fernando Aires


Fernando Aires (1928 - 2010)

Hoje a cidade amanheceu cercada de cinzento. É seu velho hábito vestir esse hábito de quase penumbra. Que incomoda. Que amolece o gosto pela vida. Que nos tira a vontade de nos levantarmos. Hoje, a cidade voltou a vestir os seus andrajos mais frequentes, como viúva pobre em permanente aliviar luto. E não me apeteceu levantar. Na minha “Ilha de Nunca Mais” não voltarei a erguer-me. O tempo… o tempo, para mim, agora já “era uma vez”. 

A notícia de que não me apeteceu levantar acinzentou de quase trevas pedacinhos de mundo aqui e acolá. Escureceu a claridade na Ponta da Galera. Arrefeceu o vento nordeste na Maia. Gelou corações em Providence ou em Lisboa, em New Bedford ou em Toronto, na Califórnia ou em Santa Catarina. Estranha sensação, esta, a de saber que eu, “uma unidade de sentimentos/ sensações”, fazia parte dos sentimentos bons de tantos amigos. 

Se for possível farei o possível para estar com ela, mas a Linda ouvirá sozinha a nossa música. Como eu amei esta Mulher! Como ela conseguiu ser o braço que me levantou tantas vezes em manhãs em que não me apeteceu levantar! Mas, hoje, não. Hoje tornou-se no nunca mais. Talvez tentem aliviar este insidioso luto cinzento com um cheiro a flores. 

Hoje não me levantei. Não volto a levantar-me, já disse. Não me cansei da vida, nem da família, nem dos amigos. Nem sequer me cansei de mim. Mas tinha de haver este dia. O dia de nunca mais.

Até qualquer dia, companheiros.

Maia, 9 de Novembro de 2010

(Daniel de Sá)

8 comentários:

Ibel disse...

Daniel

Autorizas-me a colocar este texto no facebook?

Eu devia estar zangada por tão longa ausência, mas a beleza do que escreveste dissipou as cinzas.
Por cá, um sol reverberante, mas não tanto como esta página, em que a morte falando, não magoa.

Toma lá um abraço dos tais que apertam.

Eduarda disse...

Meu bom amigo Daniel,

Foi com grande alegria que voltei a ver o sol nesta janela,mas ao mesmo tempo senti um vento frio a apertar o coração...sei o que significa a perda de um amigo,se sei,amigo...
Bela e sentida homenagem esta,Daniel!
Um beijo grande e até sempre.
(dediquei-te,no Facebook,a «Balada do Outono,do nosso Zeca).

Anónimo disse...

Isabel, não te zangues, por favor...
Eduarda, obrigado pela Balada e pelo Zeca.
Agora, conformado o espírito com a certeza de não poder voltar a falar com o meu amigo Fernando Aires, é tempo de voltar para outra página que ele talvez gostasse de ler.
Abraços.
Daniel

Eduarda disse...

Estamos vivos,amigo!Temos de estar!
Gostei de te ver e ouvir. :)
Abraço de cá.

Katharine Baker disse...

Os meus pêsames mais profundos na morte do teu amigo. Estou lhe enviando algumas fotos de Fernando Aires contigo que eu e o meu marido tirámos no encontro de escritores em PDL em Outubro de 2009 a/c do teu email "sapo" -- diga-me se o endereço é certo.

samuel disse...

Belo, o texto escolhido para interromper a longa ausência... triste, o motivo.

Abraço

Anónimo disse...

Eduarda, obrigado pelo cuidado. Mas, como já disse, apenas trabalho.
Katharine
Já recebi as fotos, preciosas. E já tas agradeci, como provavelmente já sabes.
Samuel, eu gostava mesmo muito do Fernando Aires. A primeira vez que ele falou comigo foi para me dizer que eu escrevia Português. Fiquei seu incondiconal amigo.
Abreijos (para usar a palavra criada pelo Manuel Freire).
Daniel

Anónimo disse...

Lindo texto, meu irmão! Deslumbras-me sempre, a cada dia.

Um abraço da tua irmã Isabel