Cavalhadas da Ribeira Seca da Ribeira Grande, que se supõe terem origem nos jogos de canas
Muito tristes viviam ainda as gentes de São Miguel, e mais que todas a de Vila Franca do Campo, por causa da tragédia que subvertera a capital da ilha na noite de 22 de Outubro de 1522. O capitão Rui Gonçalves da Câmara, que escapara ao cataclismo por se encontrar numa quinta do Cabouco mais a mulher e seu filho Manuel, também tivera muito que chorar, pois morreram todos os restantes da sua casa: as filhas Jerónima e Guiomar, o filho mais velho e um bastardo, sua irmã Melícia e todos os serviçais que haviam ficado em Vila Franca.
Assim que por sua própria experiência tão terrível sabia quão grande era a dor que enlutava os sobreviventes e compreendia o terror que em toda a ilha escurecia os corações. Por isso pensou fazer alguma coisa que distraísse os espíritos e alegrasse as almas aflitas. E o melhor que lhe ocorreu foi convocar os cavaleiros de São Miguel para um jogo de canas, de modo a que a luta simulada e o entusiasmo que nela punham todos os que participavam mais os que a ela assistiam os alegrasse ao menos por umas horas.
O jogo foi marcado para o Domingo de Páscoa do ano seguinte ao da catástrofe, num campo junto ao mar na Lagoa, onde o capitão residia por causa da fatalidade que lhe sepultara a casa e a maior parte da família.
Foi esplendoroso o desfile dos cavaleiros, que saudaram na tribuna o capitão Rui Gonçalves da Câmara, sua mulher, D. Filipa Coutinha, e os outros homens importantes que tomaram assento junto dele. Vestiam os desafiantes ricas librés, pelotes ou gibões de seda e de veludo, quase todos de cores garridas e alguns de branco, com abundância de botões de oiro, levando muitos deles dois cavalos ajaezados de tal maneira que se diria que tanto era o cuidado de luzirem luxo os homens nas cavalgaduras como em si mesmos. Só os poucos que foram de Vila Franca, mais doídos que os restantes por mais de perto lhes ter tocado a desgraça, estavam modestamente de preto e roxo. A própria mula que transportava as canas ia muito bem ataviada e com luzentes chocalhos de prata. Pertencia a alimária a André Gonçalves Sampaio, de Ponta Delgada, que por ser muito rico era chamado o Congro, que se tinha nesse tempo como o maior peixe do mar, e dele ficou nome num pico e numa formosíssima lagoa.
Os combates estavam ordenados de maneira a que os cavaleiros de Ponta Delgada e da Lagoa lutassem contra os de Água de Pau, da Ribeira Grande e de Vila Franca.
O Abade de Moreira, que durante alguns anos viveu na Ribeira Grande, era um dos mais destemidos e temidos cavaleiros que foram ao combate. E isso certamente se devia a mais tempo dedicado à arte de bem cavalgar toda a sela do que bem servir a Deus no Seu altar. Coube-lhe a honra de desafiar D. Manuel da Câmara, o jovem filho do Capitão. Mas, se era uma honra ter como adversário aquele que a subversão de Vila Franca tornara herdeiro de Rui Gonçalves da Câmara, não menor honra seria para o moço defrontar o façanhoso Abade daquela vila das Terras da Maia.
Os dois cavaleiros correram um para o outro parecendo querer que as montadas se chocassem. Mas, como que obedecendo a um sinal combinado, e mal se lhes notando um leve puxão nas rédeas, estacaram a uns trinta passos de distância de focinho a focinho. Pretendia avaliar cada qual a determinação do rival, mas de imediato o Abade de Moreira deu um toque com o joelho esquerdo nas costelas do cavalo, e este arrancou logo em galope, descrevendo círculos, da direita para esquerda, à volta de D. Manuel da Câmara, que mantinha o seu cavalo a rodar sobre as patas de modo a ter os olhos sempre fixos no contendor.
O Abade foi observando o modo ágil como cavalo e cavaleiro não lhe davam nunca o flanco, e, numa manobra imprevista inverteu o sentido da corrida, o que fez a multidão gritar de espanto em uníssono, pelo risco de tal manobra e pelo perigo em que se punha o Abade, porque assim dava o lado direito ao adversário, sem a protecção, portanto, da adarga, que levava na mão esquerda. O animal quase bateu com o quadril direito no chão, mas num ápice saiu de uma nuvem de poeira, de narinas muito abertas a latejarem no esforço da corrida. D. Manuel da Câmara, momentaneamente julgando o adversário vulnerável, atirou-lhe a cana quase por instinto. O Abade previra que tal acontecesse, e por isso arriscara a manobra temerária. Mas, em vez de se defender com a adarga, inclinou-se para a direita, ficando com todo o corpo abaixo da garupa, movimento que ajudou o cavalo a equilibrar a projecção do movimento para fora que a meia volta e o galope provocaram.
Cavalheiresco, o Abade permitiu que D. Manuel da Câmara fosse buscar outra cana, não mostrado querer atacá-lo sem que ele pudesse atacar também. O moço cavaleiro voltou à luta, e, correndo sempre a direito, passou pelo Abade protegendo o corpo com o corpo do cavalo, como aquele fizera antes. E, sem mudar essa posição, levou o animal a voltear da direita para a esquerda, envolvendo o Abade como este o envolvera antes. Irado por se sentir ameaçado de modo semelhante àquele com que ameaçara, o Abade não obrigou o cavalo a rodar com a rapidez necessária para enfrentar sempre o rival. D. Manuel da Câmara, percebendo-o em desvantagem, mal protegido, atirou-lhe a cana num movimento tão brusco do braço que se desequilibrou ligeiramente. A cana fora mal dirigida, e o Abade, como que tendo-lhe adivinhado a intenção e o desequilíbrio, atirou a sua de imediato, mas o jovem cavaleiro, num prodígio de reflexos, agarrou-se às crinas com a mão direita e protegeu o flanco com o pequeno escudo de coiro, recebendo assim o golpe na adarga.
Enquanto a multidão, que viera de todas as partes da ilha, aplaudia o lance certeiro do abade e a ágil defesa de D. Manuel da Câmara, D. Filipa Coutinha enfureceu-se, gritando da tribuna que ao filho a cana deveria ser sempre atirada por cima da cabeça, como se fazia ao rei em circunstâncias iguais. E mais gritou ainda que fossem contra o afrontoso cavaleiro e o matassem.
O Abade correu até onde estava o seu moço de esporas, que fora dando pequenos trotes com o segundo cavalo para o ter pronto logo que o amo precisasse dele, e, sem descer daquele que montava saltou para cima do outro, pedindo ao moço “dá-me o arremessão”. Por momentos, terá havido quem julgasse que o abade fugia, mas ele logo voltou ao meio do terreiro, bradando: “Venham matar-me, que aqui estou. Mas antes deixarei cinco ou seis mortos e não sacramentados.”
Rui Gonçalves da Câmara, mais sensato e mais sabedor da honra de ser homem do que a mulher decerto saberia, disse em alta voz para o Abade que atirasse ao filho outra cana. Os ânimos de uns serenaram, os que temiam ter de obedecer a D. Filipa animaram-se, e a capitoa sentou-se de novo, contrafeita mas obediente como convinha ao seu estado.
O Abade voltou ao moço de esporas, devolveu-lhe o dardo, entregou a adarga, e mandou que ele lhe desse duas canas. O rapaz nem se atreveu a perguntar por que razão o fazia, porque sabia que nada nem ninguém poderia demovê-lo fosse do que fosse, para o bem ou para o mal. Aos que estavam perto o Abade falou, dizendo: “Pediu uma cana, dar-lhe-ei duas.” E, empunhando uma em cada mão, correu de peito aberto, de pé sobre os estribos, na direcção de D. Manuel da Câmara, que temeu precipitar-se em atirar a sua cana, porque, se falhasse, ficaria duplamente à mercê do adversário. Confiou em poder defender-se com a adarga, e só atirar quando tivesse o alvo perto de si. Mas, de modo inesperado, o Abade atirou a cana que levava na mão esquerda à altura da cabeça de D. Manuel, que levantou a adarga para se defender. Quase no mesmo instante, apontou à barriga a outra cana. Sem tempo pare se proteger, o jovem cavaleiro foi atingido no ventre. A cana, muito seca e leve, não poderia fazer ferida grave, mas o rapaz não conseguiu conter um “ah”, mais de espanto que de dor.
A multidão aplaudiu em delírio, excepto uns quantos que queriam estar nas boas graças de D. Filipa. O Abade desceu do cavalo, tirou o barrete com a mão direita e passou-o para a esquerda, e, dirigindo-se a Rui Gonçalves da Câmara, de modo a que o filho ouvisse também, disse: “Sois pai de um homem. Servir-vos-ei a ambos em tudo, com a minha bênção, a minha palavra e a minha lança. Basta que preciseis de alguma delas. “
Nota – Exceptuando a descrição do combate e o final do conto, o mais está de acordo com o relato de Gaspar Frutuoso.