Pastor Com o Seu Rebanho, Charles Émile Jacque
A princesa do reino vem de passeio com a sua ama, e foge-lhe, ao perseguir uma borboleta azul. De repente dá com um pastor na ausência do sono. Pura, pára, em sossego, para não o perturbar. Fascinada pela beleza do jovem adormecido. A ama chama-a, ao descobri-la, e ela faz-lhe sinal de que se cale e não avance. Contempla o pastor, enquanto recua devagarinho, a olhar para ele, porque deseja vê-lo ainda um pouco mais e quer certificar-se de que não desperta. Inventa uma desculpa, diz talvez que um ninho. A ama acredita, voltarão no dia seguinte ao mesmo lugar. A princesa vai chegar-se ao sítio, sozinha, para não assustar o ninho, mente. O pastor desperta com qualquer ruído, ou porque se acabou o sono, e pensa que ainda sonha. A uma princesa pode conceder-se o direito de dizer a um homem “amo-te”. O pastor não o dirá, ainda que o sinta. Mas ela não fala. Os olhos bastam.
Todas as tardes se repete o passeio. Até que a desculpa já não pode ser um ninho e o amor se torna sem remédio. Na corte, há quem grite e quem emudeça, conforme os privilégios da hierarquia lhe consentem manifestar-se contra o inaudito escândalo. Três príncipes esperam uma promessa de casamento. A um deles, a princesa poderá ser dada como penhor para um tratado de paz. A outro, como garantia de um contrato de comércio. A um terceiro, para que no seu reino se abram portos a servir de abrigo às navegações dos barcos que seu pai manda a guerras e mercancias.
A princesa não entende os negócios do Estado, e só diz um nome e uma vontade. O pai convoca a corte e os três embaixadores dos príncipes pretendentes. A princesa veste os atavios da sua nobreza real, e os três embaixadores julgam que ela vale bem um reino ou uma guerra. A ama recebe ordem de a despir, e ela fica quase nua, por momentos. Contemplam-na o êxtase e a vergonha. Dá-lhe o pai, para que as vista, uma blusa pequena, verde como as ervas que há-de invejar aos animais, quando não tiver o que comer, porque a afasta da sua mesa, e uma saia grande, que lhe cai aos pés, azul da cor do céu que há-de cobri-la, quando lhe faltar abrigo, porque a expulsa do palácio.
Há quem chore, não ela. Mais real do que nunca, desliza por entre os nobres, os embaixadores, os criados, desce a escadaria sem pressa e sem temor Não corre, saboreia, calma, o primeiro passeio sem a sua ama, goza, antes do gozo, o fascínio do seu amor liberto. Não pensa nos soldados que hão-de morrer na guerra, nos cedros que o seu reino não venderá, nos barcos que hão-de correr perigos de naufrágio. E imagina-se a ser coroada rainha pelas boninas e malmequeres com que o pastor lhe cingirá a cabeça.
O pastor dorme, como sempre, àquela hora. A princesa desperta-o com um beijo. Ele estranha-lhe a roupa, o sinal de que a tomaram livre dos reais deveres, e já pode ser toda dele toda a vida. O pastor não a abraça, não exulta. Quere-a princesa e repudia-a plebeia. Ela vive apenas até ter a certeza de que ele diz o que sente.
Os deuses, que não olham a preços para conceder prémios ou exercer vinganças, revolvem as entranhas da terra com mil vulcões, que trazem à superfície todas as safiras e esmeraldas que ela guardava no seu seio. E cobrem, com milhões de pedras preciosas, como as últimas cores que a vestiram, um mausoléu enorme de basalto, que tem a forma do corpo da princesa, e muito fundo para que ninguém o veja nem perturbe o sossego dela.