segunda-feira, 24 de maio de 2010

Para Elisa


Numa cidade com "Memória", o longo adeus do Sol de cada dia.
(fotografia Nuno Sá, gentilmente cedida por Ver Açor)

domingo, 9 de maio de 2010

O cagarro

Cagarro (Calonectris diomedea ), em algumas ilhas dito "cagarra", ave da família das pardelas. 


Acabaram-se as ceifas e as debulhas, as vindimas e o vinho doce. O pão a haver foi guardado nas casas-de-milho, os garajaus e os cagarros rumaram a Sul. Quando já com os primeiros frios do Outono apetecia aconchegar mais roupa ao corpo e mais mantas na cama, António descobriu num canto do quintal um casal de cagarros que haviam interrompido a viagem acabada de começar, porque um deles estava doente.

Nunca roubara um ovo àquelas nem a outras aves, a não ser uma vez, muito criança ainda, de um ninho de canários. E até chegara a meter-se numa briga de pedradas com dois rapazes que se preparavam para pegar fogo a um cagarro que se perdera em terra. Rachara uma das cabeças, e fugira para a justiça que a mãe não tardou a cumprir, porque ainda corria o sangue da ferida aberta pelo tiro certeiro e já a avó do ofendido esbracejava rua abaixo, gritando de tal modo que poderia ouvir-se em Ramá, se ela fosse Raquel e outra a geografia. Garantiu que o neto estava às portas da morte, com menos um alguidar de sangue nas veias e marca para toda a vida na cabeça, se escapasse. Pelos berros que ele deu e pela velocidade com que fugiu aos gadanhos da mãe quando esta lhe desinfectou a ferida com aguardente, facilmente se teria percebido que seria imortal se a cabeça fosse o seu calcanhar de Aquiles. Ficar-lhe-ia de facto para sempre a cicatriz, no caminho de passagem da risca do cabelo penteado para a direita, inaugurando uma nova alcunha na família, o “Cabeça Rachada”, que passaria aos filhos e aos netos por via varonil. A aguardente reabrira-lhe alguns capilares que começavam a fechar, e o conjunto dela com o sangue escorria pela cara e pelo pescoço até à camisa encardida, como se fosse o Cristo dos Terceiros. Um dos irmãos assistia à retirada com um espeto na mão, cheio de teias que fora escarafunchar nos buracos dos carochos, que eram do melhor que havia para estancar hemorragias daquelas. A mãe veio à porta e proclamou “urbi et orbi”: “Se apilho aquele demónio, racho-lhe a cabeça do outro lado, alma do diabo!” Entretanto a avó garantia à mãe do justiceiro que o neto era um anjo sem mácula e António um ferrabrás.

Aquela não fora a primeira desinfecção tentada, porque haviam pedido ao irmão mais novo que urinasse na ferida. O pequeno, que no Verão já não andava com o rabo à fresca nem o arrastava no chão de terra batida da casa até ficar negro, e roxo do frio, não o conseguiu por vergonha, ao mesmo tempo que a desorientação de vozes e correrias à sua volta o inibia e o alvo se mexia inquieto no seu campo de pontaria.

No dia seguinte, ao passar por acaso à porta do guerreiro em baixa, o doutor Fraga analisou os beiços da chaga. O rapaz esperneou e voltou a berrar desalmadamente enquanto a mãe e a avó o seguravam para o exame clínico feito por caridade. O diagnóstico foi o de que aquilo teria sido coisa para uns dois ou três pontos, mas que não vinha mal nenhum ao mundo por não ter levado os agrafos. E, ao ver a persistência da gritaria que acompanhava o espalhafato dos gestos, afirmou que não havia perigo de infecção porque ele não podia lamber o lanho. A mãe que lhe pusesse um pouco de tintura e, se a não tivesse, repetisse a dose de aguardente. Dose repetida imediatamente, ante a ideia de ser lavado com cachaça outra vez, foi a da gritaria e dos pulos descontrolados, que serviram de pretexto para que a mãe, impaciente e descansada porque não cabia a morte por aquele postigo aberto no casco do filho, o desancasse por conta do petróleo que lhe roubara para pegar fogo ao cagarro.


(Do romance A Terra Permitida)