quinta-feira, 28 de maio de 2009

Ilha a Ilha: Pico

A passagem, durante séculos, dos carros de bois que transportavam as uvas para os lagares deixou estas rilheiras no lajido (fotografia gentilmente cedida pela editora Ver Açor)

Meu Deus, o Pico!... É uma paixão esta montanha que é uma ilha, esta ilha que é uma montanha.

Os vulcões construíram uma larga plataforma de que restam pouco mais de 433 Km2, e empilharam no meio dela, a um ritmo de dez metros por milénio, rochas sobre rochas até atingirem uma altitude de 2351, a maior de Portugal.

A montanha é o cenário de um espectáculo quotidiano de vertiginosos jogos de luz e sombra, de nuvens que a rodeiam como auréolas, que se detêm sobre o seu cume ou que a escondem totalmente. No Inverno, essas sessões diárias são ainda mais requintadas, quando a neve assume o papel principal. E, muito antes dos boletins meteorológicos científicos, já as gentes do Pico liam na aparência da montanha a previsão do tempo.

Povoar esta ilha, que é a mais recente do arquipélago, foi uma aventura e um risco como em nenhuma outra. O solo cultivável tem características mais de invenção que de descoberta. Os muros que dividem e protegem os terrenos agrícolas libertaram de incontáveis pedras o chão necessário. E, como não foi possível equilibrá-las todas em linhas ordenadas, muitas foram amontoadas, formando pequenas colinas, os “maroiços”, para ocuparem menos espaço. (Se fossem postas em linha recta no Equador, seriam suficientes para dar duas voltas à Terra.) O resultado é uma paisagem arrebatadora, tão selvagem quanto civilizada, mas capaz de produzir o melhor vinho destas ilhas, de vinhas plantadas em cada buraco entre as pedras onde caiba uma cepa, o que fizeram pela primeira vez os frades franciscanos em 1493.

A fruta e o queijo do Pico são também dos melhores, e a ilha, excepto em anos de calamidade, sempre deu para alimentar os seus habitantes, que já foram o dobro dos actuais menos de quinze mil, a quem ainda sobrava muito para vender no Faial.

Além disso, há o mar, aquele mar dos destemidos baleeiros e de inestimável abundância, que até fornece para vários usos a sua água, filtrada pelas rochas quando a maré sobe e ela enche os “poços de maré”. Aquele mar tão esplêndido quando é visto do miradoiro da Terra Alta, um despenhadeiro vertical de quatrocentos e quinze metros, a melhor varanda para ver São Jorge no outro lado do canal. Porque, como se não bastasse ao Pico ser o Pico, ele goza ainda da visão tão próxima daquela ilha e do Faial. Mas é também ele mesmo a mais grandiosa paisagem de que desfrutam ambas.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

sábado, 23 de maio de 2009

Ilha a Ilha: São Jorge

(fotografia gentilmente cedida pela editora Veraçor)

Se acontecer que se veja alguém apressado em São Jorge, quase de certeza que não é da ilha ou aprendeu longe dela o mau hábito de ter pressa. E pode ser que lhe digam: “Vai devagar, que isso acaba já aí.”

Isso é a ilha, que até nem é das mais pequenas. Da ponta do Topo à dos Rosais, são mais de sessenta quilómetros, praticamente o mesmo que mede São Miguel de Este a Oeste, que é o sentido em que se alongaram estas ilhas, excepto as do Grupo Ocidental, Flores e Corvo. Mas se São Jorge é a ilha do “comprimento demorado” – na definição do poeta continental Carlos Faria, que se apaixonou por ela – é igualmente a da “largura breve”. Quatro quilómetros apenas separam as majestosas escarpas do Norte das enseadas do Sul. É quanto basta, no entanto, para os montes subirem até uma altitude que chega a ultrapassar mil metros.

Desta fantasia geológica – uns esguichos de magma apertados por entre os bordos de uma falha tectónica – resultou uma paisagem tão extraordinária que, quando se dá com ela, se esquece tudo o que se tenha visto antes para pensar que aquele é o mais belo pedaço do Mundo. Mas, se era pouca a terra (cerca de duzentos e quarenta quilómetros quadrados) havia que aproveitá-la o melhor possível. Até nos lugares mais remotos podem encontrar-se dóceis vacas, que produzem o leite de que se faz um dos melhores e mais famosos queijos portugueses, ou uma ermida secular.

São Jorge é também a ilha das admiráveis fajãs, nesgas de espaço que lhe foi acrescentado pelo desprendimento de rochas das altíssimas arribas, criando como que uma nova espécie de ilhas – terra rodeada por mar e por montanhas quase intransponíveis. Nem o mais inspirado arquitecto paisagista seria capaz de inventar tal coisa.

É nesta ilha que os Açores são mais arquipélago. Rigorosamente posta no meio dele, de lá se avistam as outras quatro do Grupo Central: a Nordeste, a Graciosa e a Terceira; a Sudoeste, e a distância que um atleta excepcional pode fazer a nado, o Pico e o Faial. No entanto, os jorgenses viveram quase sempre isolados, bastando-se a si mesmos, com uma vida tão fortemente comunitária que bem se poderia dizer que era socialmente familiar. Os novos meios de comunicação romperam esse isolamento, que não impediu ter havido em São Jorge alguns dos mais antigos jornais do arquipélago e preservou uma espantosa cultura secular, sem lhe atrasar o conhecimento da modernidade, mas que manteve a ilha livre da maior parte das epidemias até à primeira gripe em 1891.

Aqui Diógenes não precisaria de acender a sua lanterna para encontrar um homem, nem um apreciador de música de andar muito – em São Jorge há quinze filarmónicas, um sétimo do total do arquipélago, o que é deveras notável para uma população de apenas nove mil habitantes.

(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

sábado, 16 de maio de 2009

A Festa do Senhor Santo Cristo

A Fé e a Esperança. A Fé em Deus no culto do Senhor Santo Cristo no Santuário de Nossa Senhora da Esperança. Os olhos humanos precisam de reflexos divinos para se aproximarem do Infinito. Que podem ser as cores do ocaso ou as pétalas de uma flor. Ou uma bela imagem feita por mãos desconhecidas. Esta, por exemplo, que representa Jesus no momento em que Pilatos O apresentou à multidão. Por isso lhe chamam o “Ecce Homo”.
A primeira procissão do senhor Santo Cristo dos Milagres aconteceu quase de certeza numa 6ª-feira, dia onze de Abril de 1698. A data com mais frequência repetida, onze de Abril de 1700, é absolutamente improvável, porque esse dia foi Domingo de Páscoa. Além de se haver tratado de uma procissão de penitência, o que anula a hipótese de ter sido realizada em data tão festiva, atente-se no que a certa altura diz o padre José Clemente ao descrever o cortejo: “Em último lugar ia o pálio com o Santo Lenho, a que acompanhava uma tão numerosa multidão de povo, que os oficiais deixaram o trabalho, os mercadores as lojas e os forasteiros as vilas e lugares circunvizinhos.” Era impensável que houvesse alguém que se atrevesse a trabalhar em dia santificado. A obrigação do descanso dominical era absoluta, havendo até a imposição de ao menos uma pessoa em cada família assistir à missa do dia, sob pena de pagamento de 50 réis, como deixou expresso o Bispo D. Frei João dos Prazeres na sua visita à paróquia de Pedro Miguel, no Faial, em 1690.


Lamentação

“Os nossos pecados atraíram
o desprezo do Senhor sobre nós,
como um pastor que esquece os nomes das suas ovelhas
e não reconhece os balidos dos seus cordeiros.
A desolação esteve durante o dia nas nossas casas
e deitou-se, à noite, nas nossas camas.
O calor do fogo era como gelo para os nossos corpos,
e o mel mais amargo do que o fel nas nossas bocas.
Não desejávamos o dia, durante a noite,
porque todos os dias eram dias de sofrimento.
Temíamos o entardecer
porque cada noite era a noite do nosso pavor.”

Isto disseste do teu Deus
como se Ele tivesse empunhado a espada contra ti,
como se Ele te houvesse alvejado com as setas do ódio.
Mas, quando vires o Filho do Homem
erguido sobre a terra da desolação,
contarás um a um os seus gemidos
e uma a uma as gotas do seu sangue.
Saberás então que o Senhor habita contigo para sempre,
que aquele é o preço por que serás libertado.
Eu tomarei sobre Mim as tuas culpas
para que, por todo o sempre,
Deus não reclame nenhum dízimo de sangue.
O Senhor veio a ti de mãos vazias,
e lavará os pés, antes de serem trespassados,
para que nem sequer o pó dos teus caminhos
receba a afronta dos cravos do sacrifício.

(fotografias gentilmente cedidas pela editora Ver Açor)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Ilha a Ilha: Graciosa


Não é uma miniatura de ilha, mas é quase. Com a beleza e a graça das miniaturas bem feitas. Provavelmente por isso a chamaram Graciosa. Mas há quem pense que o seu baptismo foi em honra da Virgem, a cheia de Graça. Qualquer que seja a verdade, merece o nome.
Apesar de os vulcões se terem apagado há tanto tempo que a sua obra está com certeza completa, há ainda lembranças deles, como as cinzas de uma fogueira, nas fumarolas da baía dos Homiziados e na Furna do Enxofre – onde é possível um temeroso vislumbre das entranhas da Terra – ou nas termas do Carapacho, cujas águas curam doenças do corpo e talvez do espírito.
São sessenta quilómetros quadrados de serras pouco mais altas que colinas e de pequenas planícies que sempre bastaram para alimentar os seus habitantes, que já foram quase dez mil na década de 1950 e, agora, são menos de cinco mil. (A atracção das sereias da fortuna... Pensando bem, no entanto, talvez houvesse sido melhor para muitos terem-se feito amarrar às suas pedras brancas, como Ulisses ao mastro do seu navio.) Gente que aprecia os prazeres da vida, seja nas longas, breves noites dos bailes de Carnaval, seja no entusiasmo ocasional de uma tourada ou em algum concerto público ou num recital familiar. (Aí por meados do século XX havia na Graciosa um piano por cada cinquenta habitantes.) Gente que não sente a ilha como solidão, que é sentimento que só de fora se pode julgar que existe. Por isso o seu poeta Victor Rui Dores escreveu: “Ilhéu prisioneiro em Lisboa/ fiz-me ao Tejo e rumei às ilhas/ - para o lado de lá de tudo isso".
(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ilha a Ilha: Terceira

(Angra do Heroísmo com o Monte Brasil ao fundo)

Na Terceira, onde em cerca de quatrocentos quilómetros quadrados vivem perto de cinquenta e seis mil pessoas (sem contar com os militares e outros funcionários americanos da Base das Lajes e suas famílias), o melhor da paisagem talvez seja o que foi feito pela sua gente. Os terceirenses têm o culto da cor e da alegria. A policromia dos seus povoados expressa um estado de espírito colectivo, uma exaltação sensível da vida que não se encontra em nenhuns outros açorianos.


Tendo sido a ilha mais teimosamente portuguesa, a que resistiu sozinha às pretensões de Filipe II ao trono de Portugal, acabou por ser a que mais beneficiou com o seu governo, chegando a parecer que um pouco da alma espanhola foi deixado nela.


A Terceira gosta de festas. E, acima de todas, gosta da “festa” – a brava, dos riscos do redondel ou do divertimento das touradas à corda.


A cidade de Angra, a partir da qual triunfou o liberalismo, mereceu, por causa disso, que o nome lhe fosse acrescentado com a designação “do Heroísmo”, como a então Vila da Praia passou a ser “da Vitória”, porque perto dela os liberais derrotaram os absolutistas na primeira grande batalha campal da Guerra Civil. A memória da sua importância na defesa da rota das Índias está bem viva ainda na fortificação filipina que era uma das mais formidáveis de todo o Atlântico. Dentro das suas muralhas, depois da proclamação de D. João IV, a guarnição espanhola resistiu aos portugueses durante um ano e, quando se rendeu, os vencedores prestaram homenagem aos vencidos. Gente fidalga, os terceirenses.


Em grande parte destruída pelo sismo de um de Janeiro de 1980, a Angra renascentista limpou as suas formosas ruas que se cruzam verticalmente, repôs as pedras de dezenas de edifícios, e recebeu da UNESCO, como reconhecimento da sua harmonia arquitectónica e em honra da História que ancorou no seu porto, a distinção de ser considerada Cidade Património Mundial. Mas toda a ilha é património da Humanidade.


(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O Ram-Ram

Adão Contreiras, O Engraxador de Sapatos (desenho à pena sobre papel, 13x10)

O Ram-Ram não tinha dois dedos de testa. Nascera assim. Mas tinha coração. Coração e reflexos inacreditáveis. Ingénuo, parecia uma criança grande. A sua felicidade era completa com uma raqueta de ping-pong na mão e um adversário disposto ao sacrifício. Nisso, era o melhor dos Açores. E há muita gente que vive e morre sem nunca ter sido o melhor em nada. Porque a sua era uma língua de trapos, ficou-lhe o nome de Ram-Ram. Ou Quá-Quá. Não se ofendia.


Se fosse hoje, o Ram-Ram talvez não trabalhasse. Uma qualquer assistente social facilmente lhe concederia uma pensão de invalidez ou coisa parecida. Mas o Ram-Ram ganhava a vida honestamente como engraxador. Havia um professor que era um dos muitos que admiravam o seu talento desportivo. Por causa disso, não se atrevia a vê-lo ajoelhado a seus pés e tratava-o por Manuel. Mas entendia que não estava certo privá-lo do seu modo de ganhar dinheiro para o pão e alguma cerveja de vez em quando. Quando o encontrava convidava-o a acompanhá-lo à cervejaria. Ali ficavam ambos com os olhos à mesma altura. E o Ram-Ram exultava, anunciando aos circunstantes que o professor era seu amigo.


O professor não sabe se onde o Manuel está também se joga ping-pong. Mas sonha com um dia em que todos os homens tenham os olhos à mesma altura. Quer sejam engraxadores ou bancários, trolhas ou administradores. Um dia que não seja um dia de festa. Um dia que seja todos os dias.