terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A Lenda dos Reis


A viagem dos Magos, de James Jacques Joseph Tissot

Em Sippar, na Babilónia, fora primeiro Baltasar quem percebera o sinal. Entre as estrelas da constelação dos Peixes, signo das terras do Mediterrâneo, uma luz mais forte predizia grandes coisas para o Ocidente. Júpiter, anunciador de fortuna e protector de reis, juntava o seu clarão ao de Saturno, a estrela de Israel. Baltasar descera, sem demora, do terraço onde estivera vigiando o céu, para despertar Gaspar e Belchior e lhes ouvir o conselho. Surpreendidos pelo vigor da mão e pela voz tremente do companheiro que assim lhes suspendia o sono, levaram tempo a compreender ao que vinha.

Baltasar explicou-lhes, perturbado, o que pensara do sinal celeste. Que talvez o Messias tivesse, enfim, nascido, nas terras da Palestina. Gaspar e Belchior subiram, com Baltasar, a perscrutar o céu. Brilhando claramente na imensidão da abóbada, a constelação dos Peixes tinha por companhia uma luz muito forte. Júpiter e Saturno, ali onde o Sol acaba um ciclo e começa outro, pareciam anunciar que um poderoso rei nascera para trazer aos homens a salvação de Deus. E assim Javé daria ao Povo Eleito, disperso pelos confins de além-Jordão, a notícia de que chegara o Messias de Israel. Os três magos contemplaram o sinal do Senhor até que o Sol, subindo para lá dos Montes Zagros, o apagou na luz.

Tinham viajado já por longes terras. Sabiam as estradas da Média e da Susiana, conheciam as ruas e os palácios de Artemita, Apolónia, Chala e Ecbátana, de Seleucia e Alexandria da Susiana. E descansando, num entardecer, à sombra dos muros orientais de Methone, sonharam com Persépolis e Passárgada. Tinham subido o Tigre e o Eufrates até Singara e Dura-Europus. Mas a viagem que agora imaginavam, em busca do Messias prometido, de Sippar à Palestina, seria mais longa e mais custosa do que todas, sobre o deserto da Síria.

Quando lhes foi propício o tempo, deixaram a Babilónia por Neopólis, a caminho do Jordão. Quase dois meses mais tarde, à vista do Monte Nebo se lhes toldou o olhar. O país dos Moabitas era vizinho já do seu destino, e ali morrera Moisés contemplando Canaã. Ao outro dia, a caravana espantou o sossego de Jericó, Betânia e Betfagé, e, depois de descer o Monte das Oliveiras e passar pelo vale do Cedron, os peregrinos entraram em Jerusalém, com os olhos sempre postos no pináculo do Templo, para louvar Javé no Átrio dos Gentios.

O brilho da estrela que os guiava perdeu-se por entre as luzes do palácio de Herodes, no outro lado da Cidade Santa. Se procuravam um rei, decerto no palácio de outro rei fora nascido. E os magos acreditaram que era ali o seu destino. Mas ainda não. Mais para o Sul, pois de Belém de Judá anunciara o Profeta que um Príncipe sairia a apascentar Israel.

Os magos, pela estrada de Belém, viram, uma vez mais à sua frente, a estrela que seguiam. E, aos pastores que pernoitavam nos prados em redor da Cidade de David, fizeram a mesma pergunta com que haviam inquirido um rei no seu palácio. Ouvindo-os dizer “Messias”, a única palavra que entendeu do culto linguajar dos estrangeiros, os olhos de um velho brilharam num lampejo de felicidade. E, correndo à frente deles como criança que fosse, morriam as estrelas já no firmamento quando parou, numa casa de pobres em Belém, e os fez compreender que era nela que vivia o Messias prometido.

E foi ali que entregaram os seus presentes de oiro, incenso e mirra.

(Em A Longa Espera, Signo, 1987)

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Fala dos Magos no presépio

(fotografia retirada daqui)

Belchior:

Anunciada está para estes dias
A vinda desejada do Messias.
Será este menino? Não o creio.

Gaspar:

O pai um galileu? A mãe aquela
Que tem tanto de pobre quanto bela?
Viemos de tão longe, e ele não veio...

Baltazar:

Um rei forte não faz um mundo novo,
Constrói o trono sobre a morte - o povo.
Num rei igual a nós, assim, eu creio.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pai Natal sem reforma

Fotografia encontrada no blog Por Entre Montes e Vales


Os anjos estavam muito admirados com a excitação nervosa do Pai Natal. Nunca o tinham visto assim. O velho chamou por um deles: “Lucílio!” O anjinho veio prontamente: “Estou aqui, senhor Pai Natal. Que deseja?” “O Mercurino já chegou?” “Está chegando agora mesmo.” E, vendo aparecer o querubim de quem falara, perguntou: “Qual foi a resposta de Deus ao meu pedido de aposentação?” “Nosso Senhor disse – respondeu Mercurino – que nem pensar.” “Nem pensar?... – Resmungou o Pai Natal – Isso é que penso. Não tenho outro remédio senão aceitar, mas pensar é cá comigo.” Mercurino tentou acalmá-lo: “O senhor Pai Natal fala sempre em aposentar-se quando chega a vez de despachar os presentes para as crianças portuguesas. Mas depois isso passa-lhe.” “Passa-me? Desta vez não passa. Isto é demais. Tudo torto. A começar por vocês. Eu pedi cento e quarenta e quatro mil anjos para me ajudarem, e que é que Nosso Senhor me mandou? Vocês, querubins, que não querem senão brincadeira.” “Somos anjos da primeira jerarquia, não somos?” “Vocês são da primeira jerarquia, mas não é para trabalhar.” “A gente faz o que pode, o senhor não tem razão de queixa, senhor Pai Natal, julgo eu.” Disse Lucílio. “Ai não, que não tenho. E nem sequer vieram todos. Além do pouco que vocês fazem, ainda faltaram à chamada sete mil setecentos e setenta e sete.” “Devem andar por aí perdidos no meio da algazarra da festa.” Era Mercurino a tentar desculpar os amigos. Mas o Pai Natal não estava com paciência para ter paciência. “Festa, festa, mas é para os outros. Já estou nisto há mais de cem anos, e Deus não me dá a reforma.” Depois quase gritou: “Mercurino!” O anjinho assustou-se: “Senhor? Que foi que eu fiz agora?” “Não fizeste, mas vais fazer.” O querubim respondeu: “Estou às suas ordens.” O Pai Natal disse: “Antes, o Menino Jesus dava uma ajuda bem grande em Portugal. Era ele que fazia quase tudo. Agora passa toda a santa noite refastelado no calor da manjedoura.” “E quem é que tem culpa disso? Não é nada connosco, as crianças é que lhe escrevem a si, não há nada a fazer.” “Há. Vai ter com José e pede-lhe que pelo menos empreste o burrinho para ajudar a transportar algumas coisas. Mas depressa! Vai numa asa e vem na outra, percebeste” “Sim, senhor, senhor Pai Natal.” E desapareceu voando à velocidade da luz.

“Querubins, querubins e mais querubins. Para onde quer que me volte só vejo querubins e querubins e querubins.” “Tenha paciência, senhor”, disse Lucílio. “A gente há-de fazer tudo como sempre tem feito.” “Paciência?” O Pai Natal voltava a falar alto. “Para suportar vocês era preciso ter paciência de santo, e eu não sou santo. Santo é o Nicolau. E nem sei se ele aguentava esta barafunda toda.” “Vai dar tudo certo, há-de ver.”

“Hei-de ver, hei-de ver… Querubins, é o que eu vejo. Que só querem é brincadeira. E onde estão os anjos a sério? Onde estão os serafins, as potestades, os principados, as dominações, as virtudes e os outros todos? Estão na gruta, cantando «Gló…ó…ó…ó… lá-lá-lará-lá-lá…» É o que fazem.” “Mas eu já disse que a gente faz o trabalho. Tenha calma.” “Lá estás com a calma…” “Não estou lá, estou aqui, senhor Pai Natal.” “Deixa de desconversar. A calma… sempre a calma. E os arcanjos?... Que é que eles fazem? Miguel deu uma sova em Satanás, e pronto. Ficou com fama e descanso para o resto da eternidade. E Gabriel?.. Levou um recado à Terra, uma vez, e reformou-se. Do Rafael nunca percebi sequer qual é o seu trabalho.” “Olhe, o Mercurino já chegou.” Informou Lucílio.

“Mercurino!” Gritou o Pai Natal. “Onde é que está o burrinho?” “São José não quis emprestá-lo.”“Também ele?... E eu é que tenho de resolver tudo, não é?” Mercurino explicou: “São José diz que o burrinho estás muito cansado da viagem.” “Ai está, coitado?... Ainda se eu pudesse contar com os camelos dos Magos… Mas estes ao menos tiram-me o trabalho de Espanha, o que é uma boa ajuda, valha-me Deus.”

Chegou outro anjinho, Almito, com os pedidos de última hora. “Estão aqui os atrasados, como de costume”, disse. “E donde vem isso?” Perguntou o Pai Natal. “Um é da Turquia.” “Da Turquia?!” O Pai Natal gritou outra vez. “Isso aí é da responsabilidade de Nicolau. Não tenho nada que ver com essa zona.” “Mas a menina é portuguesa. E é a si que faz o pedido.” “A mim? A Turquia fica em Cascos de Rolha. Indeferido.”

“Mas está em caminho para Samarcanda.” “Samarcanda?... Onde é isso?” “No Uzbequistão.” “No Uz quê cristão?” “Não, não é assim. É Uzbequistão. Quase não há cristãos lá.” “Quase não há, não é? E logo haveria de calhar um que fosse português… Essa gente anda por toda a parte.” “Pois é, senhor… Os portugueses são assim. Morrem de saudades mas vivem anos sem fim longe de casa. E há aqui outra carta que veio de Portugal.”

“E que é que me pedem nessa?” “É para pagar o IVA dos presentes.” “IVA, que é isso agora?” “É o imposto de valor acrescentado.” O Pai Natal deu o maior grito do dia. “Imposto? A essa gente já não bastam os impostos na Terra, querem vir buscá-los ao Céu também? MERCURINO! MERCURINO! Vem cá, Mercurino.” “Estou aqui, senhor Pai Natal. Que deseja?” “Vai depressa procurar Francisco.” “Que Francisco?... Não faltam Franciscos no Céu.” “Aquele meio louco, de Assis.” “Ah, o que está sempre a brincar com lobos e passarinhos.” “Esse mesmo. Ele que vá lá a Portugal tratar do assunto. Mas diga que eu não pago, não pago, não pago. Então temos aí milhões de euros de presentes para levar para eles, e ainda vamos pagar imposto? Isto aqui não é a União Europeia. Francisco que diga isso, e não se ponha com cara de santo. Pode ir de sandálias.” Mercurino partiu em mais esta missão.

“Que pedidos fazem essas crianças da Turquia e do Uzbomcristão?” “Uzbequistão, Uzbequistão.” “Como queiras. E eles que querem?” “A menina que vive na Turquia quer uma boneca que chore.” “Uma boneca que chore?... Já não basta o choro de verdade, ainda hei-de dar uma boneca que chore? Nem pensar! Vai dar-se uma boneca, mas calada como uma pedra. Ainda mando alguma coisa, ou não?” “Como queira, senhor.” “E o menino do Uz… Uz… pronto, essa terra que fica em Cascos de Rolha de Cascos de Rolha?” “Pede uma metralhadora.” O pai Natal deu uns gritos ainda maiores que o grito de antes. “Uma metralhadora?... Não dou metralhadoras, não dou metralhadoras, não dou metralhadoras. E não se fala mais nisso.” “Mas é uma metralhadora de brincar.” “Não dou, não dou e não dou.” “E fica sem oferta, o pequeno?” “Vai ter uma lira.” “Uma lira? Onde é que vamos comprar uma lira a esta hora? “Desenrasca-te. Se não encontrares nenhuma damos a tua.” “Isso é uma oferta muito cara, não lhe parece?” “Não íamos tão longe, até esse Uz… Uz… para dar um traste qualquer, não é?”

O Pai Natal acalmou, e deu ordens em tom meigo, como era normal. “E agora nada de conversas. Vamos ao trabalho.”

A publicar na imprensa regional e a emitir como teatro radiofónico na Antena 1 Açores.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Suor Alheio


Paisagem com canas (fotografia retirada do blog Bis Bis)

Ficaram os dois no canto sem que ninguém os contratasse. António, porque era muito novo, o José “Pinta a Pulga”, porque já era velho.

Aquela era a primeira vez que António oferecera o corpo para ser avaliado músculo a músculo, tinha muito tempo ainda para esperar que as coisas mudassem. Mas ao outro já iam recusando a oferta de vez quando, dias de ganho a menos a somar aos de chuva e de nada haver nas terras para ser feito.

– Um velho também come... – Foi o lamento do “Pinta a Pulga”. E meteu pela rua abaixo enquanto António ficava no canto a olhar os últimos homens que partiam para mais um dia de pão garantido. Vinte passos dados, se tanto, o “Pinta a Pulga” voltou para trás.

– Vou falar com o senhor Vicente. Pode ser que ele tenha a caridade de me dar trabalho hoje.

António debatia-se com a velha raiva que sentia contra o senhor Vicente. Via o pai trazido numa padiola, mal limpo o sangue da cabeça, e, uns dias mais tarde, a mãe, que não parara de o chorar ainda, toda vestida da cor da casa, a agradecer como grande esmola as últimas três maquias de milho que ele ganhara antes de cair pela Rocha do Tamujo. Mas o orgulho é um luxo para os pobres. A mãe e as irmãs tinham bocas para alimentar e corpos para cobrir, e António não era menos apressado na hora de ter fome, embora menos exigente no ano de vestir. Cuspiu o orgulho com a saliva e disse que sim.

– Não tenhas vergonha, rapaz, nem esmoreças. Tens a vida toda pela frente, ainda vais ser dos primeiros a serem escolhidos, não tarda nada. Eu é que vou cada vez para pior.

Fora isso que pensara, mas, quanto à vergonha, não era por ela que ia acabrunhado. Era por aquele orgulho sempre cuspido ou engolido, no silêncio dos pobres, sabendo que o senhor Vicente lhe contaria as horas uma a uma, os quartos de hora, até a noite preparar a cama onde havia de deitar-se o Sol. Tentou por isso uma desculpa para evitar a humilhação a que estava quase resignado a submeter-se.

- Mas o tio João já não pegou nos homens de que o senhor Vicente precisa?...

Referia-se ao capataz do senhor Vicente, que era sempre o primeiro a escolher os trabalhadores.
– Pois pegou. Mas o senhor Vicente é capaz de nos dar um jeito.

... E disposto a dar um jeito estava, mas só a um, ao rapaz, impondo a sentença de mandar o velho embora. António pensou que talvez o fizesse por remorso antigo, e lutou na indecisão de acompanhar o “Pinta a Pulga” no regresso triste, enfrentando o orgulho da sua raiva arrimado ao pensamento da necessidade da mãe, das irmãs e dele mesmo, e à vergonha de voltar para casa sem ter sujado o sacho nem derramado uma pinga de suor. O senhor Vicente tinha o cerrado das Canas Vieiras para cavar, mas tinha de ser bem cavado, fundo, e sentenciou que o “Pinta a Pulga” não podia fazer o serviço como ele queria. E, apesar de saber que António estava muito acostumado a trabalhar com o padrinho desde que o pai morrera, mostrou-se um pouco desconfiado também a seu respeito. António disse:
– Se o senhor Vicente quiser, cavo-lhe esta terra a trato.

– Olha que cinco homens cavam esta terra num dia. Podes levar sete ou oito que só te pago cinco, entendeste?

Entendeu e aceitou. E esfalfou-se de crepúsculo a crepúsculo, com a velha raiva sempre no fio do sacho, como se a cada cavadela pudesse atingir a alma do senhor Vicente.

Quatro dias bastaram para fazer o serviço que era feito por cinco homens num dia.

Na hora de pagar, o senhor Vicente mediu alqueire e meio de milho.

– E as outras seis maquias?

O senhor Vicente, em tom de justiça definitiva, bem lembrado de que aquele era serviço de cinco homens num dia, respondeu:

– Pensas que eu sou tolo ou quê? Não foi só quatro dias que trabalhaste? Aí tens.

António não encontrou modo de dizer a sua revolta, o seu desprezo. E foi o senhor Vicente que lhe despejou em cima:

– O que essa canalha me tem roubado! Um fedelho como tu cava-me a terra em quatro dias, e andavam para aí sempre cinco malandros a fazer ronha para aguentarem até às trindades!

António sentiu vontade de o esganar. Ainda disse, a medo:

– Mas o trato não era de me pagar como se fosse cinco dias?

– Isso era se levasses mais tempo a cavar. Ou querias ganhar cinco dias em quatro? Ou amanhã ganhavas o dia sem trabalhar porque eu já tinha pago adiantado?

António foi-se embora sem ter dito mais nada porque tinha as esponjas das lágrimas quase a rebentar-lhe nos olhos.

(Adaptado do capítulo VII de A Terra Permitida)

domingo, 6 de dezembro de 2009

Pedido de Casamento


Os Comedores de Batatas, Vincent Van Gogh

Bateu à porta com a inquietação como fronteira entre o receio e a esperança. Não se importou que os últimos olhares curiosos à luz dos restos do crepúsculo se dirigissem para si, estranhando a visita, ou talvez não, porque muita gente já teria com certeza ouvido e contado tão improvável amor.

Foi recebido com pouca surpresa, bem menos do que imaginara. Helena mexeu-se na cadeira, inquieta, enquanto ele caminhava em direcção à cozinha, mal iluminada pela luz minúscula da lamparina, que tinha a torcida, acabada de acender, reduzida ao mínimo. Para a cega eram iguais os dias e as noites, e a mãe sabia também os cantos da casa palmo a palmo sem precisar de luz ou de olhos abertos, pelo que poupava no petróleo o mais que podia. Distraíra-se, no entanto, ao recebê-lo com tão vaga claridade e, por isso, pediu desculpa e deu um pouco mais na torcida.

– Ainda está praticamente de dia. – Disse António, apenas para mostrar que nada havia a ser desculpado.

Estava resolvida a dificuldade de começar a conversa. Cumprimentou Helena com um simples “olá”, a que ela correspondeu, envergonhada, dizendo “olá, António”. No prato de Helena havia duas batatas cortadas ao meio, no de Elvira nenhuma.

– Quando dei por mim, só tinha quatro batatinhas em casa. A gente amanha-se assim mesmo. – Deu sinal a António para que não fizesse comentários, e convidou por delicadeza: – És servido?

Aquela mulher era muito diferente do seu retrato falado.

– Interessa é encher a barriga. – Disse António com um nó na garganta.

Elvira pareceu querer sossegar nele a compaixão pressentida.

– Daqui a dias, não me há-de faltar trabalho a ceifar, se Deus quiser, e a respigar, que sempre trago uns braçadinhos de trigo para casa.

Depois de os ceifeiros porem em descanso as foices e o corpo, às vezes já noite alta se era de lua cheia, ela ficaria ainda colhendo as espigas esquecidas, mais abundantes nas searas segadas por mãos habituadas à caridade, no cumprimento de uma recomendação bíblica que talvez ninguém conhecesse mas que era cumprida como um mandamento divino.

Elas iam comendo em silêncio, devagar, naquele silêncio e naquele vagar habituais de quando a refeição é de iguarias raras ou de sustento insípido. António, que continuava sem saber o que dizer, e nem sequer sabia se convinha dizer alguma coisa, decidiu falar de outro modo. Pegou na guitarra e tocou o “Fado da meia-noite”. Quando acabou, as duas mulheres disseram que tinham gostado muito.

– É muito bonito. – Disse Helena.

– Tu és tão bonita como ele. A tua cara é tão bonita como ele. – Atreveu-se António.

– E é triste, também, não é?

Ter-se-ia referido à música ou à sua cara?...

Passados uns instantes, Elvira disse:

– Talvez te admires de eu não ter perguntado o que vieste aqui fazer. Acho que deves mudar de ideias.

António percebeu quanto lhe custou dizer aquilo.

– Mudar de ideias, não mudo.

Elvira enrolou na boca as couves e engoliu-as com dificuldade.

– Pois então ela que diga. Pergunta-lhe.

Ele pensava que era inútil perguntar. Mas fez a cena como pôde.

– Helena, tu queres casar comigo?

Helena baixou a cabeça, como se os seus olhos pudessem ver e ela não quisesse que eles vissem. E disse duas vezes “não”, com o nome de António pelo meio. Estranhou não se sentir atingido na alma ou no coração, ou lá onde é que essas coisas doem. O certo é que não o surpreendera aquela resposta, sem dúvida ensaiada pela mãe. Helena levantou-se logo a seguir, para se refugiar no quarto onde a sua noite era a mesma mas não podia ser vista por ninguém. Sem tempo para pensar no que fazia, António segurou-a pela mão direita. Ela não se esforçou muito para se libertar, e Elvira, apanhada de surpresa, ficou calada a olhar para os dois. Quando ela ia falar, António disse muito calmamente:

– Ó senhora Elvira, pela alma dos seus e pelo amor de Deus, mande-a sentar-se e acabar de comer. Não se fala mais nisso agora.

Condescenderam ambas, e acabaram a ceia em silêncio. Estavam os dois frente a frente. Dois pares de olhos que se viam muito bem. E foi nos dela que leu o tamanho da mentira que Helena dissera sem querer. Mas não estava disposto a negociar Helena.

– A senhora Elvira pensa que eu sou capaz de fazer algum mal a Helena!?...

Ela levantou os olhos. Eram tão bonitos como os de Helena e, se as suas lágrimas não causassem pena, seriam mais bonitos assim.

– Eu acredito em ti, não desconfio das tuas boas intenções, mas sei que vocês iam ser dois desgraçados.

Protestou com convicção mas serenamente.

– A desgraça fica por minha conta. E com a ajuda de Deus há-de ser a desgraça mais feliz do Mundo.

Elvira sorriu.

– Bem dizem que palavreado não te falta...

Elvira falou em tom de elogio.

– Eu sei que Helena gosta de mim. Então por que teima contra a gente?

Elvira olhou-o com a sua tristeza resignada.

– Não teimo contra vocês. Não teimo contra ti, porque és bom rapaz, e oxalá que Nosso Senhor te faça muito feliz como mereces. E não teimo contra a minha rica filha que, se pudesse, até lhe dava os meus olhos para ela deixar de ser uma infeliz.

António percebeu que era essa a oportunidade para um novo argumento.

– É disso mesmo que Helena precisa. A senhora não vai ficar a viver sozinha, há-de viver com a gente, não é? Há-de ajudar a tomar conta da casa e dos filhos que Nosso Senhor nos quiser dar.

– Se isso desse para fazer vocês felizes, eu fazia isso e muito mais. Mas olha, António, eu digo-te para teu bem... Pensa no que fazes. Mereces melhor do que Helena.

– Quanto tempo pensa que é preciso para poder acreditar em mim?

– Muito!...

– De vez em quando hei-de vir perguntar se já passou muito tempo.

Teriam uma maneira diferente de medir esse tempo, mas Elvira acedeu.

(Adaptado do capítulo V de A Terra Permitida)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Pão Permitido


O Moinho, Rembrandt

Elvira voltou do mato sempre igual a como ia, mas na solidão do moinho teve o seu amor de perdição. Porque o moleiro lhe moía o alqueire de milho sem descontar a maquia devida pelo trabalho.

Habituada a muitas fornadas, a mãe logo notara, na primeira vez, farinha a mais. Admirada, perguntou a Elvira:

– O moleiro esqueceu-se de maquiar o nosso milho?

– Não senhora, como a gente são pobres, ele teve pena e não maquiou.

Tendendo o pão da maquia a mais, sem mal cuidar no que ouvira, levantou os olhos para o tecto negro do fumo de muitas cozeduras e da lareira acesa quase todo o dia. E exclamou, como que numa jaculatória de acção de graças:

– Ainda há gente boa neste mundo!...

Por ser a mais velha, cabiam a Elvira os trabalhos a fazer longe, porque abaixo vinham duas irmãs e só depois, com sete anos apenas, o único macho da família. Por isso ia ao mato por lenha, ou à ribeira do Calhau lavar a roupa como as mulheres casadas, ou ao moinho, para poupar a meia maquia devida pelo transporte do grão no lombo das bestas do moleiro.

O pai morrera de fome, ou dos maus tratos dela, porque muitos anos a pouco mais do que pão de milho e pimenta, com algum chicharro de vez em quando, não aguentaram com força e com vida os braços do cavador que fora, até lhe dar em tossir e escarrar sangue. De nada lhe valeu comer muito agrião cru e beber espuma de sopa de caracóis acabados de apanhar, porque alimentar-lhe o corpo a carne de vaca, ovos e leite era coisa que nem pensar.

A mãe já lhe chorava a morte mais que certa, quando teve de fazer pela vida e ganhar como podia ou como queriam pagar-lhe. E louvava a Deus e aos homens por esse pouco, embora não ficasse atrás de nenhum a amarrar vinha, a semear, a sachar e em tantos outros serviços em que importava mais o jeito do que a força. Secou as lágrimas pelo defunto, ao sol de Julho, ceifando. Fosse Deus louvado e feita sempre a Sua vontade. Ainda que não percebesse como poderia louvar-se Deus por tão grande e outras penas, às vezes choradas com lágrimas também de raiva.

Quando Elvira percebeu que ia ter um filho numa idade de ter irmãos somente, não pensou que o Mundo se acabasse por causa disso, mas que se acabaria o seu mundo. Iria morrer de vergonha, matava-a a mãe, matavam-na as más línguas – e todas tinham razão nessa morte, que deveria ser quase como morrer deveras. Só podia salvá-la o amigo, ou amante, ou namorado, fosse lá o que fosse que era para ela o moleiro. Com muita ansiedade e muito medo esperou o dia de levar a saca com o grão para moer, três noites seguidas em que mal pregou olho, três dias em que mal provou bocado de pão. E a mãe aflita, a julgá-la doente – “não me morras, como teu pai, que fico sem ninguém que me valha” -, e ela feita vítima e carrasco de si mesma, sem entender sequer se tudo acontecera por desejo seu também, se apenas pela miséria de poupar uma maquia.

Batia-lhe o coração numa galopada louca, nem que tivesse vindo a correr com a carga às costas saltando pedregulhos e valados. O rapaz mostrou-se logo disposto ao que já se ia tornando um costume, mas, vendo-a naquela tristeza assustada, perguntou-lhe a causa dela.

– Vou ter um filho, José!...

– E que tenho eu a ver com isso?..

Que havia de dizer? Como havia de dizer o que tinha de dizer? Onde lhe estava a saliva que lhe soltasse a língua e os lábios, secos, secos, como pedaços de barro em Agosto? E o coração pedra viva... Disse:

– José, tens de casar comigo!..

À espera, outra vez. Ele agora com um ar de ódio, que a assustou ainda mais.

– Casar contigo?!... Sei lá quem te fez isso! Andas por todo o lado, como uma cabra!..

De repente, o medo fez-se raiva.

– Não sabes?!... Sou uma cabra, seu estupor?... Não sabes que fizeste de mim o que quiseste? Eu mato-te, excomungado!

Atirou-se a ele com a fúria de uma alcateia que defendesse as ninhadas. Tentou bater-lhe na cara, arranhá-lo, mordê-lo, enquanto o rapaz, com a cobardia da culpa, se defendia com pouco êxito. Quando, por fim, conseguiu pegar-lhe nos pulsos e dominá-la, disse:

– Não grites, que ainda te ouvem!

Ela mordeu-lhe a mão direita com tanta força que sentiu o sangue nos dentes.

– Maldita! – Foi o grito de dor e, logo em seguida, uma bofetada.

Elvira abaixou-se, pegou numa pedra e atirou-lha. Falhou o alvo por pouco, e a pedra foi cair longe, rolando pela encosta. Tentou pegar noutra, mas ele saltou-lhe para cima e imobilizou-a no chão. E falou-lhe ao ouvido:

– Não chores. Desculpa. Fiquei fora de mim. Não esperava uma coisa dessas. Eu gosto muito de ti.

Elvira percebeu como o contacto do seu corpo excitava o rapaz. E não sabia se a verdade era a de antes se a de agora. Perguntou:

– Casas comigo, José?

Ele respondeu que sim.

– Olha que o senhor padre diz que está na Bíblia que um homem tem de casar com a mulher com quem fez o que fizeste comigo.

– Deus me mate, se eu não casar contigo!

Pela primeira vez, Elvira sentiu também desejo verdadeiro. Ficara mais calma com a promessa do rapaz. E não podia acontecer mal que não estivesse feito já.

– Vamos para o moinho, que alguém pode ver-nos.

Passou a semana ainda em sobressaltos nocturnos e ansiedade constante durante a vigília, mas agora com alguma esperança. O pior seria quando tivesse de contar tudo à mãe. Sabia Deus com que fúria ela iria reagir, mas pior, muito pior, seria se José não quisesse casar, se a tivesse enganado. Não podia fazê-lo, não lhe faria nunca uma desfeita dessas, que a desgraçaria para o resto da vida.

Desgraçou-a... Devia casamento a uma prima, tanto como a ela e havia mais tempo ainda. Quando Elvira soube disso, pela boca da própria mãe, que lhe deu a novidade e jurou ser capaz de a matar, ou a qualquer das irmãs, se lhe acontecesse uma desgraça semelhante, fugiu para casa da tia Ascensão, a única que poderia valer-lhe e talvez compreendê-la. Era a tia mais velha da mãe, e vivia sozinha, abandonada desde os vinte anos pelo marido, que a deixara com um filho de meses e fora procurar fortuna no Brasil. A tia não soube sequer se ele chegara vivo ao destino, porque nunca teve notícias suas. Viveu necessitada de pão e de afecto, o que lhe custou a vergonha de mais um filho. Acabaram ambos por emigrar para a América, terra também de esquecimento, mas que só o foi para o filho legítimo, talvez envergonhado dos passos mal dados da mãe. O outro escrevia regularmente e mandava algum dinheiro.

Elvira só havia de voltar a ver a mãe, que nunca lhe perdoou, no dia da sua morte. Quanto à filha, que no baptismo recebeu o nome de Helena, não chegaria a ver nem mãe nem avó, nem cor ou coisa nenhuma, porque nasceu cega, o que ninguém percebeu nos primeiros tempos, porque não se notava defeito nos seus olhos escuros, quase negros. Castigo de Deus, acusava-se, que assim mostrava o Seu poder na inocente criatura, como escarmento para todas as possíveis pecadoras desta vida de enganos.

Acabando-se dez anos de casamento, morreu a mulher do pai da sua filha. Elvira ficara a viver em casa da tia, de quem cuidou até à hora da morte, e que lhe deixou aquele tecto para ter onde abrigar-se. Uns meses depois do início da sua viuvez, com cinco filhos divididos por este mundo e o outro – três cá e dois lá –, José foi rogar-lhe, pelo amor de Deus, que casasse com ele. Negou-se-lhe com desprezo, senhora do seu triunfo ao fim de tanto tempo. “Aqueles pequenos não têm quem cuide deles...” Finalmente, a pedrada atingira o alvo.

Adaptado do romance A Terra Permitida (esgotado)

domingo, 22 de novembro de 2009

Erros de Português


Trocas o “xis” com o “ésse”?
Procura igual em Inglês.
Splendid não te parece
Esplêndido em Português?
“Dispendere” é bom latim.
Gastar dinheiro compensa,
Se o despendes com o fim
De encher, e bem, a despensa.
Podes ter uma obsessão,
E podes ser obcecado.
Faz acto de contrição
Se acaso já tens errado.
Obcecar é ficar cego,
Mesmo se é paixão simpática.
Como homem, faz-te estratego
Para escolher bem a táctica.
Confundes o indirecto
E o complemento directo?
Pois pensa no Brasileiro
Que é Português verdadeiro,
Um pouco mais a cantar.
Se ouves dizer “dei a ele”,
Para o mesmo afirmar
Diz “dei-lhe”, que é o legal.
Ou, se ouvires “eu vi ele”,
Não hesites, diz “eu vi-o”,
À moda de Portugal.
Confundes com os pronomes
A desinência verbal?
Pois aceita o desafio:
O “mos” em lugar dos nomes
É caso raro, tão raro,
Que convém é não dizê-lo,
E melhor não escrevê-lo,
Porque te fica mais caro.
Se “mos” puderes trocar
Pela forma feminina,
Então podes separar.
Como tens cabeça fina,
Vou já exemplificar
Com damas e seus bordados,
Ou com damas e com rendas.
Oh! que lindos! Dá-mos, sim?
(E só te pedi as prendas
Dos seus dedos tão prendados.)
Mas se eu te dissesse assim:
Oh! que lindas! Dá-mas, sim?
(Bem podiam ser as rendas...
Ou as damas. É o fim.)

domingo, 8 de novembro de 2009

Isaac, a vítima perfeita

(Não pretendo transformar este espaço numa catequese bíblica ou algo que se lhe pareça. Deixo, no entanto, mais esta breve reflexão que pode ajudar a compreender a diferença entre o real e o narrado na Bíblia. E isto sem prejuízo de a história de Abraão e Isaac não ser mais do que uma mera parábola acerca da Fé, o que é a hipótese mais provável.)

Muito crescia o respeito de Abraão pelo Deus que adorava. De Quem ele percebera um dia a declaração de que era o Deus supremo. E terá chegado um momento em que se convenceu de que eram muitos mais os favores que ele e o seu povo haviam recebido de Deus do que aquilo que faziam para Sua maior glória. Era certo que também Lhe prestavam culto e ofereciam sacrifícios. Seria isso suficiente? E se não fosse?... E se Deus julgasse que não recebia de Abraão e da sua casa e do seu povo a veneração que merecia? Que não Lhe eram gratos como deviam por tantos benefícios – pelo sol e pela chuva, pelos pastos e pela saúde, pelos filhos e pelos netos?

Os outros povos sacrificavam aos seus deuses de maneiras variadas. Mas havia um sacrifício acima de todos os sacrifícios. Aquele que decerto amoleceria até o coração mais duro do mais inflexível de todos os deuses. Era o sacrifício de um próprio filho. Abraão pensou que Deus lhe exigia esse limite imenso do sofrimento. Como prova de amor, como pedido de auxílio e de clemência para si e para os pecados do seu povo. Daria desta forma testemunho máximo não apenas desse seu amor, mas também da sua fé. E que seria da sua descendência, que Deus prometera mais difícil de contar do que a areia do mar?... Talvez lhe viesse por Ismael, que Sara quisera ver expulso, com Agar, sua mãe, para que ele não herdasse um quinhão igual ao do filho das suas entranhas.

Abraão chamou Isaac para o acompanhar até aos montes de Moriá. Iria ali oferecer um sacrifício ao Senhor. O menino estranha que levem fogo e lenha mas nenhuma vítima para ser sacrificada. Abraão disfarça como pode a falta da vítima e a dor infinita que lhe esmaga o coração. Decerto que durante toda a caminhada se debate a respeito de aquela ser a vontade de Deus. Se fosse possível, seria ele mesmo que se ofereceria em sacrifício. Pelo bem do seu povo.

Já está pronto o altar para o holocausto. Depois disso, só restarão as cinzas de Isaac. Abraão contempla o filho vivo pela última vez. Dói-lhe mais a visão do cutelo do que se este lhe trespassasse a própria garganta. Então percebe uma voz interior que o manda suster o gesto que seria o último que Isaac veria na sua curta vida. E dá pela presença de um carneiro ali perto, que ficara preso num silvado. Esta vítima bastará ao Senhor. Que não quer nunca sacrifícios humanos. Num momento em que a fé de alguns israelitas se deixará cair na tentação da idolatria, Deus o dirá assim pela boca do profeta Jeremias: “Encheram este lugar com sangue de inocentes, e levantaram o lugar alto a Baal, para, em honra dele, queimarem os seus filhos em holocaustos, coisa que jamais prescrevi, nem falei, nem me veio ao pensamento.”

domingo, 1 de novembro de 2009

Abraão

Deserto de Wadi Rum (fotografia retirada de AtlasTours.Net)

Os Hebreus. “Homens poeirentos”, o que talvez seja o significado irónico da palavra com que eram conhecidos. Caminhavam no pó, surgiam do meio dele, desapareciam entre nuvens de poeira. Nómadas, não tinham morada certa. A sua casa era uma tenda, a sua pátria era o deserto. Como outros povos que ainda não tinham encontrado um pedaço de terra que pudesse ser seu. Onde crescesse erva em abundância e a água jorrasse em permanência. Onde pudessem semear umas lentilhas ou uns grãos de trigo. Homens sem pátria, sem casa e sem Deus. Talvez prestassem culto aos deuses dos altares que encontravam no seu caminho de vagabundos.

Um povo sem deuses seus, sem um ao menos, era um povo incompleto. Como uma família sem pai ou sem mãe. Poderiam fazer um ídolo. Mas com que nome? Com que poderes? Para os proteger de quê e em quê, se de tanto eram necessitados? E seria mais um empecilho a transportar nas longas jornadas. De qualquer modo, saberiam sempre que ele teria sido fabricado pelas suas próprias mãos, que teria sido uma invenção sua. E compreendiam que a imaginação não faz a realidade.

Mas um dia, ou ao longo de vários dias, ou até durante anos sucessivos, por palavras ouvidas ou apenas no íntimo da sua mente, Abraão percebeu que alguém se lhe revelava. Alguém que se dizia o seu Deus e o Deus do seu povo. Um Deus sem imagem física, que nem sequer tinha um nome nem um rosto. Que caminharia com ele e com o seu povo, que estaria sempre com eles.

Os Hebreus foram-se afeiçoando a esse Deus desconhecido. Dele só sabiam que era o seu, e isso lhes bastava. Já eram, agora, uma família completa. Os outros povos talvez continuassem a escarnecer deles, mais ainda do que antes, por estarem convencidos de que tinham um Deus que não precisava de corpo nem de feições.

Deus tivera o cuidado de não dizer muito de Si mesmo. Nem sequer que era o único. Porque Abraão, e sobretudo a sua gente, dificilmente acreditariam nisso. Vivendo entre povos que prestavam culto a muitos deuses, ninguém poderia imaginar que afinal nenhum deles fosse verdadeiro, e que o único era aquele que Abraão dizia ter-lhe falado. Um Deus menor, sem dúvida, como menor era o povo que o proclamava seu.

A fé de Abraão foi aumentando. E a sua confiança tornou-se ilimitada quando Deus cumpriu a promessa de Sara, sua mulher, lhe dar um filho apesar da idade já muito avançada. Ela chegara a compadecer-se tanto do marido que até lhe oferecera Agar, sua escrava egípcia, para nela gerar descendência.

Entretanto, Abraão já percorrera um longo caminho. Partindo de Ur, sua terra natal, e tendo passado por Babilónia e Mari, chegara a Haran. E fora aqui, onde, tal como em Ur, se adorava a mesma deusa que habitava a Lua, que começara a receber a revelação divina. Depois seguira para sul, porque Canaã era o seu destino. Terá passado por Karkemish, Alepo e Damasco, fixando-se em Siquém. Mais tarde, em tempo de uma grande fome, procurou refúgio no Egipto, que era o sonho de todos os famintos por causa da abundância de colheitas que cresciam nos aluviões do Nilo.

Quando regressou do Egipto, montou as suas tendas perto dos carvalhos de Mambré, junto ao Hebron. E aí ergueu um altar ao Senhor, como antes fizera num monte a oriente de Betel. Um altar vazio. E já então Melquisedec, sacerdote e rei de Salém, celebrara com pão e vinho uma vitória de Abraão contra os inimigos que tinham feito prisioneiro seu sobrinho Lot. E saudara o patriarca dizendo: “Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo que criou os Céus e a Terra.”

Abraão terá percebido que o seu Deus de algum modo também se ia revelando à inteligência de outros homens de boa vontade. O Deus que lhe manifestara a existência e prometera a protecção do seu povo era, afinal, Senhor de toda a humanidade.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Caim e Abel, uma história universal

Caim e Abel (Simon Vouet e Pietro Novelli, 1620)


Os rios Tigre e Eufrates haviam formado a ubérrima planície da Mesopotâmia. E aí se fez Babilónia, uma das primeiras e mais importantes cidades da história humana. No início do século VI a. C., Nabucodonosor atacara Jerusalém, destruíra o Templo e levara prisioneiros muitos milhares de judeus. E foi durante esse doloroso cativeiro, que só haveria de terminar com a libertação de Ciro, em 538 a. C., que grande parte da Bíblia foi composta. O Génesis, que recolhe muitas histórias e mitos do Médio Oriente, foi um dos livros que se escreveram na cidade opressora.


Babilónia representava para os judeus a incarnação do mal. E fora a agricultura a tornar possível a vida sedentária e a criação de cidades. Estas aparecerão em vários momentos do Antigo Testamento como lugares de perdição. Sodoma, Gomorra e Nínive são dos exemplos mais conhecidos. E a própria Jerusalém será com frequência amaldiçoada por profetas que desse modo a acusavam dos pecados que o povo de Deus tantas vezes cometeu.


Em oposição ao mal urbano, estava a vida livre, isolada e vagabunda dos pastores. E os Hebreus haviam sido um povo essencialmente dedicado à pastorícia. É deste contraste que nasce a história de Caim e Abel. O agricultor Caim mata o irmão, pastor, levado em parte pelos ciúmes que sentiu por causa de Deus não ter aceitado o sacrifício que Lhe oferecera. Mas, segundo o autor bíblico, Deus não recebeu a oferenda com agrado porque conhecia o íntimo de Caim, propenso ao pecado. De tal maneira que, depois de fugir da sua terra e dos remorsos do seu crime, ele haveria de fundar uma cidade, precursora de todas as Babilónias do Mundo. Caim é, de certo modo, a incarnação dos babilónios criminosos, e Abel a vítima inocente em quem o autor retrata o seu próprio povo.


Este é o fundamento moral da história de Caim e Abel. Um mito que dura há milhares de anos, e que, embora de um modo inconsciente, Hollywood contou inúmeras vezes nos seus filmes do género “western”. A diferença é que o herói que vem de longe, das imensas pradarias, para fazer justiça na cidade dominada pelo mal, triunfa quase invariavelmente. Ao contrário de Abel. Que fica também como símbolo de que todos os assassínios e todas guerras são fratricidas, porque todos os homens são irmãos.


É curioso o aparente paradoxo de Caim ter fundado uma cidade, apesar de viver nesse mundo bíblico em que só existiriam Adão, Eva e ele mesmo. Os autores do Antigo Testamento mostram-se, com frequência, pouco preocupados com questões lógicas, o que é a melhor indicação do carácter simbólico dos seus escritos. Pouco depois deste episódio de crime fratricida, é-nos apresentada uma fantasiosa genealogia de Adão até Abraão. O que é uma forma de afirmar o povo hebreu como descendente do primeiro casal humano, que, tal como consta em outros mitos do Médio Oriente, fora formado do barro pelas mãos do próprio Deus.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Saramago, a Bíbilia e a minha opinião

Cristo de São João da Cruz, 1951 (Salvador Dalí)


A primeira vez que li Saramago foi no Levantado do Chão. Desde Quando os Lobos Uivam que não tinha havido outro romance português que me fascinasse tanto. Depois, veio o Memorial do Convento, e aí encontrei algumas das mais belas páginas de sempre da literatura portuguesa. Foram-se seguindo outros livros, mas nenhum voltou a entusiasmar-me tanto como aqueles.


Só arranjei tempo para O Evangelho Segundo Jesus Cristo muito depois da polémica gerada à sua volta. Não me impressionou em termos religiosos, sendo quase nulo como investigação histórica. E levei todo o livro até encontrar uma frase literariamente genial: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez.” Pouco, para um autor de quem tinha passado a esperar sempre do melhor que pudesse ser escrito em Português ou em qualquer outra língua, e cujo estilo já me parecera um tanto ou quanto cansado em O Ano da Morte de Ricardo Reis. Há anos que não o leio. Não duvido de que tenha perdido alguma boa obra, mas o tempo não dá para tudo e o mundo está cheio de boa literatura.


A propósito de Caim, Pilar, sua mulher, disse que o leitor, no final, sentir-se-á como se tivesse sido apunhalado no estômago. Ora não me apetece ser apunhalado. Nem mesmo literariamente. Para histórias negras, que nos amarfanham a alma, basta a realidade. Não é necessário reinventá-la em coisas como o Ensaio Sobre a Cegueira, por exemplo. Do qual poderia dizer-se, também, que é um manual de maus costumes. Nunca recuei na leitura de livros tétricos, pungentes, mas reais. Ainda que me tenha ficado para toda a vida o sabor amaríssimo do Diário, de Anne Frank, ou da Esperança, de Malraux.


Quanto às declarações de Saramago a respeito da Bíblia, ele pode dizer o que quiser. Mas tem de aceitar que quem julga que ele está errado o diga frontalmente. A liberdade de expressão não é só para dizer, é também para contradizer.


A Bíblia não é um livro, é um conjunto deles. É a literatura e a história de um povo. E também a história da sua fé. Escritos sem preconceitos nem vontade de agradar a ninguém. Há, nos autores bíblicos, uma liberdade de expressão que qualquer amante da liberdade deveria admirar. Porque eles se revoltam contra o poder real abusivo ou contra os ricos à volta dos quais nada medra. Chegam a revoltar-se, até, contra o próprio Deus. E apenas contam a verdade ou aquilo que entendiam como tal. Cheios de imprecisões históricas, geográficas e teológicas. Nenhum deles é um livro de ciência, embora a visão do Mundo segundo a ciência daquele tempo também lá caiba. Quando se acreditava, por exemplo, que havia um oceano superior, inesgotável, de onde vinha toda a água da chuva, e por isso capaz de provocar uma inundação que chegasse a cobrir as mais altas montanhas. Ou que o Sol andava à volta da Terra, ideia que permaneceu durante mais dois milénios. Contra o próprio Galileu poderia ter sido usado um dos seus livros, o Tratado da Esfera, em que ele ainda seguia Ptolomeu.


Na Bíblia, que não é um tratado de Teologia, a imagem de Deus reflecte a necessidade de um povo. Por isso umas vezes Ele é visto como a infinita misericórdia, e outras como um vingador absoluto. Porque os filhos de Israel precisavam de sentir a esperança para o perdão dos seus pecados ou a crença num libertador. E, para os costumes de então, tal como para a realidade de hoje, só um exército mais forte podia vencer a força de um opressor. Ao longo dos séculos em que a Bíblia foi escrita, os Hebreus nunca fizeram uma guerra de conquista. Foram apenas vítimas das maiores sevícias, cativeiros e destruições que nesses tempos aconteceram.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Umas eleições de há mais de um século

Relógio da Igreja do Divino Espírito Santo, Maia (fotografia de Sérgio Lourenço)

O senhor Melo Nunes deixou nome numa rua e memória de ser rico e sabido. Não foi avaro de nada do que teve, fez bem, como entendeu e pôde, a pobres e ignorantes. Como o tempo lhe sobrava e saber tinha o bastante para isso, andou toda a vida metido em política, progressista estreme, único guardião influente do seu partido na zona inteira dos Fenais ao Porto. Foi presidente vitalício da assembleia de voto que funcionava na Maia, aonde vinham votar também os eleitores dos Fenais da Ajuda, Lomba da Maia e Porto Formoso.

Por umas eleições, disse-lhe o governador civil, progressista como ele, que era preciso ganhar na Maia. “Mas como?!...” lamentava Melo Nunes. O padre do Porto Formoso era regenerador; os Câmaras, da Lomba da Maia, igual; os Bettencourt, dos Fenais da Ajuda, iam, interessadamente, pelos mesmos caminhos. Que fazer?... Nem que tenha de anular as eleições…” alvitrou, como recomendação, o governador. Havia de ver-se…

No dia das eleições, oito horas certas, Melo Nunes abriu a assembleia e preparou-se para nomear os restantes membros da mesa. Chamou parece que o regedor dos Fenais da Ajuda para um dos cargos, e ele logo disse que não podia, era incompatível. Melo Nunes sabia-o bem, mas folheou demoradamente o livro dos regulamentos, até que lhe pareceu que era de mais, “encontrou” a lei. “Tem razão, sim senhor.” Entretanto, combinação feita com o padre e o sacristão, dera de olhos a este que disfarçadamente foi adiantar uns minutos ao relógio da igreja. Fez nomeações de incompatibilidades sucessivas, procurou sempre do mesmo modo o artigo de lei respectivo, o sacristão foi sempre, igualmente, viciando as horas do relógio da igreja, o único que marcava o tempo para todos os presentes.

Última nomeação feita, o incompatível a protestar: “O senhor sabe que não posso fazer parte da mesa!” E Melo Nunes, avisado de que o relógio chegara às nove: “E os senhores sabem que, passada uma hora, se não está composta a mesa não há eleições.”

E não houve. Mas, quando os rivais perceberam o logro, quase o matavam, com o padre do Porto Formoso a esgrimir a bengala no comando dos descontentes.

A Melo Nunes tiveram os amigos leais de guardar-lhe a casa durante três dias.
(Do livro Sobre a Verdade das Coisas, esgotado)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O teu nome Calie

Sabes daquele teu retrato que eu costumo dizer que é o dos olhos grandes? O poema para ele, que me daria direito pleno de figurar numa galeria de poetas, tentei-o começando assim:

“A perfeição, quase:

A beleza exausta de tanto o ser.”

Numa tarde de muito sol, em Santa Maria, para as bandas da Flor da Rosa, avistei de longe um homem a trabalhar, do outro lado de um daqueles insólitos e fundos barrancos com que a ilha tantas vezes nos surpreende, numa quinta onde eu sabia que havia dióspiros. Olhei com a força de um desejo infantil que nunca passou fome mas raramente tinha dessas carícias no paladar. E aconteceu o que eu não imaginara que pudesse suceder: o homem chamou-me com um gesto como quem ordena, corri até à beira do muro, e ele deu-me uns dois ou três frutos maduros, deliciosos, um milagre de doce frescura na aridez da paisagem e da minha gulodice.

Santana vista das proximidades do Clube Asas do Atlântico (Fotografia de Ana Loura)

Que tem isto que ver contigo?... Tem que eras, no tempo em que te chamei Calie pela primeira vez, um fruto ainda por amadurecer. Eu teria de enfrentar muitos barrancos antes de te me ofereceres, numa longa jornada que me parece um destino traçado por Alguém que sabe mais do que nós. Fui um Pêro de Alenquer que desconhecia por que rotas se ia à Índia mas lá chegou porque os ventos de uma monção favorável e de favor o conduziram, de cabo a cabo e de porto em porto, até às margens seguras de Calie.

Na primeira ocasião em que reparei em ti eras uma criança ainda. Sabia lá os rumos que as nossas vidas haveriam de percorrer! Eras linda e prometias sê-lo cada vez mais. Além disso, sabia-te inteligente, aluna com média de dezasseis no Liceu. E eu lembrava-me do que sempre me custara passar a barreira dos doze em todas as disciplinas, para ter direito a quadro de honra no Externato de Santa Maria. Nos quatro anos que por lá andei, consegui-o em seis períodos, algumas vezes com uma bênção condescendente na Matemática e no Desenho. Nem imaginas a alegria que isso me dava e o desalento em que os outros seis me deixaram. Daí para cima, quero dizer trepar pela pauta até um catorze ou um quinze, era coisa rara e só podia acontecer em História ou Geografia, em Português ou mesmo Física.

Procurai descobrir a personagem (fotografia de Laudalino Pacheco, Julho de 1974)

Pensarás então, talvez, que gostei de ti porque tinhas uma cara bonita e um corpo airoso... Não, meu Amor, não foi só por isso. Mas, como disse um poeta popular que eu inventei – e toma-o como se fosse eu a dizê-lo de ti –: “Os olhos amam primeiro,/ O coração vê depois.” E o meu, quando pôde ver, gostou do que viu.

(Do tal livro em longa preparação A Longa Jornada Até Calie)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Os junquilhos de Monserrate


(Meio século depois, a árvore crescera muito, mas ainda havia junquilhos no mesmo lugar. Foto Pepe)


Não me confundo na ilusão de claramente ter visto num Natal o que vi  porque muito desejava ver. Sei como o sonho entra livremente pela verdade dentro, naquela idade em que a fronteira entre a imaginação e os olhos não tem fiscais. Mas nesse Natal eu vi. Terá sido o dos meus quatro anos, e o Menino acabara de deixar junto à lareira um pequeno Dakota de plástico, em cujas asas haveria de voar todas as distâncias. Olhei pela chaminé ainda a tempo de um vislumbre de maravilha: a sua perninha esquerda, rechonchuda como a de um ingénuo Murillo, escapava-se rapidamente, na pressa de atender outras crianças. Ninguém foi capaz de me dizer que era mentira. E ainda hoje, apesar de saber que não podia ter visto nada mais do que as paredes negras da chaminé, tenho na memória, nítida como a das coisas mais reais, a forma e a cor exactas dessa imagem fugaz.


Mas, quando comprei um pião ao Leonardo por cinquenta centavos – valor que ele me fiou, fiando-me eu em que meu Pai mo daria –, aconteceram coincidências que ainda me parecem demasiadas para não terem resultado daquele acaso de que alguém disse ser o nome que às vezes damos a Deus. Tão outros tempos eram esses que meio escudo, para uma criança, era uma pequena fortuna. E mesmo para os adultos, que nem sempre o tinham. Por isso não te admires de eu ter receado não arranjar com que pagasse ao Leonardo. 


Quando meu Pai me deu o dinheiro, guardei-o na algibeira, sabendo que podiam passar-se vários dias, mesmo semanas, sem que encontrasse o meu credor, um amigo que eu raramente via. Fui à cantina do Aeroporto fazer compras e, já perto da capela de Nossa Senhora do Ar, dei com um mendigo da Vila sentado no murinho de protecção do aqueduto que atravessava a estrada vindo da mata da Secretaria. Não hesitei um segundo na intenção de lhe fazer esmola com a tal minha pequena fortuna que, na verdade, nem sequer me pertencia. E o curioso é que eu tive a certeza de que o problema criado por tão espontânea boa vontade se haveria de resolver... Não sei porquê, nem sei esperando o quê, mas tive-a. Se fosse meu feitio jurar, jurava isto por ti, Calie.


Ao passar na casa desse santo que foi o padre Artur, a irmã, que estava em roupa imprópria para sair à rua, pediu-me para lhe comprar uma caixa de fósforos, que custava quarenta centavos, na cantina, que era do outro lado do caminho. Trinta, trinta e cinco passos não apressados, talvez, de porta a porta. E deu-me, como recompensa pelo insignificante favor, exactamente cinquenta centavos, que era o dinheiro branco mais pequenino e que sempre gostávamos de ter, pelo menos esse, para deitar na bandeja quando se beijava o Menino no fim da Missa do Galo. Em outras circunstâncias provavelmente teria recusado, e não me lembro de ninguém me ter dado nunca uns dez centavos sequer por um recado, durante os treze anos que vivi na Ilha-Mãe. Regressei a casa pelo caminho menos habitual, que era o mais longo antes da sucessão de atalhos que levavam a Santana, e que normalmente só escolhia quando ia pedir o Cavaleiro Andante ao José Guilherme. Contra as minhas expectativas, porque não era habitual vê-lo por essas bandas, encontrei o Leonardo e paguei a dívida.


Menor importância terá tido para mim um outro caso, mas que pode até ser de mais poética ingenuidade. Numa tarde de vinte e quatro de Dezembro, entrei na capela e vi que ainda ninguém tinha trazido flores para enfeitar o altar. Disse à irmã do padre Artur que sabia onde encontrar daqueles junquilhos amarelos que cheiram mesmo a Natal, e fui a correr para a mata de Monserrate, porque tinha visto uma moitazinha deles em frente da ermida. Que desilusão, meu Amor... Não havia nem um. E sabes o que fiz? Ajoelhei-me a rezar à porta de Nossa Senhora para que alguém encontrasse flores e as fosse levar para a festa do nascimento do Seu Filho. Quando voltei, havia já, ao lado do altar, um braçado de junquilhos mais ou menos como o que eu pensara poder trazer de Monserrate.


(Os junquilhos de Monserrate seriam para o altar que havia no lugar deste, antes do incêndio que destruiu a capela de Nossa Senhora do Ar. Fotografia de Ana Loura)


Não penses que recordo estas coisas como actos de bondade ou de uma fé admirável e simples, a fé dos pequeninos, que eu mesmo tenha praticado. Foi há tanto tempo, que essa criança inspira-me mais ternura que saudade. Vejo-a como se não fosse eu, acompanho-a nestas recordações como se a seguisse de perto ou estivesse parado atrás dela. Neste preciso momento acabo de voltar da mata de Monserrate sem lhe ter visto a cara. Mas reconheço, Calie, que se alguma coisa boa ficou em mim foi porque dela aprendi. E se é certo, meu Amor, que terei o cuidado de dizer-te o mais possível coisas boas, não é para que pareça a teus olhos que fui sempre um puro, mas para que o penses do mundo onde vivi, porque a literatura já tem demasiadas páginas cheias com o mais feio que há em nós. Mas, se em algum momento imaginares que andei triste – e talvez seja verdade – lembra-te de que esta história tem um final feliz.


(Ficou linda, a ermida, mas os meus junquilhos não voltarão a florir. Fotografia de Ana Loura)


(De A Longa Jornada Até Calie, em preparação)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A vizinha Maria José, o pão



O abraço comovido com o vizinho Manuel Figueiredo, filho da vizinha Maria José, em cuja casa a minha mãe também cozeu o pão. Está paralítico há oito anos, e não nos víamos há vinte e um. (fotografia de Ana Loura)


A primeira vez que vi a vizinha Maria José foi lá pelas bandas de Monserrate, acima de Santana, perto das terras que João Tomé comprou a João da Maia por escritura de 1492, a Roça das Canas, memória que se guarda num dos documentos mais antigos destas ilhas. Só muito mais tarde soube quem foi esse homem, que eu então talvez pensasse que era alguém vivo ou defunto ainda recente, e que dera nome também a uma chã perto da Ribeira do Engenho.

Não sei se minha irmã fazia parte do grupo, mas lembro-me muito bem de estar ao pé de minha Mãe a assistir à conversa com aquela senhora que logo ofereceu o seu forno quando soube para onde íamos morar. Não recordo nenhum outro momento desse dia: nem o nosso espanto, que decerto o tivemos, e grande, ao ver a nossa nova “casa”, nem nada da viagem, antes ou depois. (Nesta espécie de pintura mental observo o cenário aí uma meia dúzia de passos atrás da vizinha Maria José, e vejo-me com a direita agarrada à mão esquerda de minha Mãe.) Do mesmo modo, esqueci a mudança e como foi feita, tal como os primeiros dias de Santana.

Talvez convenha explicar o que era um “vizinho” em Santana. Se a palavra fosse usada com rigor, haveria lá muito poucos porque, além de pequenos grupos de duas ou três casas aqui ou além, eram todas longe umas das outras. Da nossa, que passou a ser a primeira habitada em relação a quem vinha do Aeroporto, até à última havia, para as minhas pernas de criança, coisa de duas léguas, o que, no entanto, deve ser dividido pelo menos por cinco, se se quiser estar perto da verdade. Ainda assim, e alargando-se o povoado por quase outro tanto, umas quatro dezenas de famílias não davam para garantir proximidade que justificasse tratarmo-nos por vizinhos. Mas a amizade justificava. A casa da vizinha Maria José, apesar de ser, num dos tais grupos de três, a mais próxima, tinha a separar-nos um dos nossos pastos e um pedaço de canada. Pelo meio, era preciso passar uma torrente que enchia com as chuvadas fortes, o que, se era o caso quando voltávamos da cozedura, obrigava meu Pai a ter de pegar em minha Mãe ao colo para a atravessar.

Nesses, como nos outros dias, quase sempre nessas noites, vinha connosco o cheiro do pão fresco. E é tão reconfortante recordar este cheiro como o dos nossos filhos acabados de lavar... Mas havia semanas em que, por uma ou outra razão, minha Mãe não chegava a cozer, e então comíamos pão da padaria, o que era para nós, habituados ao outro, o verdadeiro, uma insuperável gulodice. Um luxo maior, no entanto, pois custava por dia pelo menos metade do que meu Pai ganhava.

Creio que até as codornizes se admirariam se por acaso me viam atravessar os pastos sem ser na correria do costume, e os gafanhotos ficariam espantados de não me baterem na testa com a violência habitual. Ou porque ia atrasado para o Externato – o “colégio”, pois era assim que o chamávamos – ou para outro qualquer destino, como o Clube Asas do Atlântico, para ouvir o relato. Mas a cena que vou recordar não foi em tempo de codornizes a fazer ninho nem de gafanhotos a encher o ar de asas e ruídos leves.

Era Inverno no calendário e no tempo que fazia. Eu fora comprar pão à cantina, e trazia-o protegido num saco de lona e, a mim, dentro de uma casaco grosso. Calçava botas de cano, de borracha, para enfrentar os lamaçais de palmo. Vinha a correr, claro, porque ainda tinha o primeiro almoço para tomar, e era preciso mudar de roupa e voltar a tempo da aula mais matinal. Chegando perto do bairro de S. Lourenço, quase a voltar na rua que dava para o primeiro atalho de Santana, encontrei uma jovem para quem se aproximava o dia de ser mãe. Andava a muito custo, com dois sacos nas mãos que pareciam pesar-lhe como uma cruz. Os olhos anunciavam lágrimas prontas a nascer, e ela pediu-me, numa súplica angustiada, que a ajudasse a levar as compras a casa... que depois me dava a esmola, acrescentou, como quem joga a última esperança num grito de socorro. Sem tempo sequer para reduzir muito a corrida, disse-lhe que não podia, que tinha de ir para o colégio. Só instantes depois percebi que ela, pelo traje e pelo saco do pão, me confundira com um pedinte. E, embora aquele pão tivesse sido comprado com o suor de meu Pai, o cansaço de minha Mãe e a ajuda de minha irmã e um pouco a minha também, não fiquei ofendido com a confusão, nem me importou que ela tivesse ou não entendido, pela minha resposta, que eu não andava a pedir esmola. Apenas me pesou imenso que não pudesse valer-lhe, que tivesse tão contados os minutos que um só seria suficiente para me fazer chegar atrasado ao meu encontro com outros caminhos da civilização.

Essa imagem ainda hoje é uma obsessão para mim. Sei que se a jovem senhora tivesse sabido que se enganara decerto ficaria envergonhada e me pediria desculpa. Mas depressa haveria de esquecer o equívoco, ao contrário de mim, que nunca mais deixei de pensar nela. Assim, um sofrimento físico que foi só seu, de que ela com certeza nem se lembra já, passou a fazer parte das minhas memórias, com um sentimento de culpa como se o meu atraso desse dia tivesse sido consciente e um dos piores da minha vida. E nem me conforta pensar que, se fosse mais cedo, eu nem sequer teria visto aqueles passos doridos e ouvido aquela súplica angustiada.

Em dias de grandes chuvadas, meu pai pegava em minha mãe ao colo para passar por aqui.
(fotografia de Ana Loura)

(De A Longa Jornada Até Calie, em preparação)

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Vento


Esta viagem fisicamente custou menos, porque não havia baldes de água a transportar...
(fotografia de Ana Loura)

Como eram pobres os pobres naquele tempo! Havia os que nunca se deitavam com fome nem dormiam com frio, e os que muitas vezes não tinham pão para a ceia e vestiam chita e caqui mesmo no Inverno.

Em Santana existiam três fontes: uma perto do poço da ribeira onde as mulheres lavavam a roupa, outra no meio do povoado e uma terceira lá mais para baixo, onde a ribeira começava a despedir-se da gente para completar a viagem até aos Cabrestantes.

Íamos buscar água a qualquer das duas primeiras fontes, porque a distância era a mesma, embora para a que ficava no meio de Santana não fosse preciso saltar quatro ou cinco muros. E era nela que havia o bebedoiro para o gado. A nossa mula era teimosa como sói dizer-se da espécie, dava sempre dois pares de coices no ar quando a montávamos, mas depois obedecia mansamente. E não precisava de ser conduzida até à água, porque ia beber por sua própria conta sem demorar mais que o necessário nalgum tufo de erva inesperado e raro. Mas, se a distância não era muita, o peso da água a chocalhar nos baldes parecia torná-la longa, longa, porque as forças estavam ainda longe de ser de braços adultos e fortes.

Ricardo de Mesquita, brasileiro da ilha de Santa Catarina, imaginou o vento sul, visitante habitual de Florianópolis, a falar assim: “Acho que vou ficar mais um pouco aqui. Talvez arme um redemoinho para encontrar, na esquina do Trajano, as meninas do colégio Coração de Jesus. Saias plissadas, rodadas, que sempre levanto ao passar. Algumas gostam. Disfarçam, mas gostam... // Os garotos que ficam encostados na outra esquina, a de Jerónimo Coelho, // aplaudem minha passagem. Enfim, alguém gosta de mim!” Vem num livro que reúne as crónicas premiadas no concurso Franklin Cascaes, e ofereceu-mo a Lélia Nunes, também ela vagamente insular, porque descende de açorianos de há dois séculos e meio e Santa Catarina está à distância de uma ponte do continente.

O padre Artur queria fazer de cada um de nós um santo à sua imagem e semelhança. Certa vez pregou muito magoado contra as fotografias de bailarinas quase nuas no Carnaval do Rio, mostradas na revista “O Cruzeiro” a páginas meias com imagens de Cristo derramando sangue por causa dos nossos pecados. E, quando havia documentários, ou mesmo algum filme de longa metragem no Atlântida Cine, para os alunos da catequese, ele ficava na cabina de projecção pronto a fazer censura “ad hoc”, tapando com a mão a lente logo que aparecessem umas pernas femininas com vista acima do joelho. Mas nada podia contra o vento...

É juntando tudo isto que fui dizendo, como conversa da tua avó Maria do Carmo, sem fio aparente mas a fazer sentido lá mais para o final, que chego aonde queria chegar.

Mas espera... ouve, meu Amor... Este vento hoje está frio. E eu na fonte, atrás dela, à espera de que acabe de encher a lata. Não lhe sei o nome nem lhe lembro a cara. Mas veste roupa leve, saia talvez de chita, que usou no Verão e há-de usar no Inverno entre uma barrela e outra. Mora mesmo ali ao lado, não tem de ir longe por água. O vento é frio mas bonançoso. E, de repente, dá-lhe na gana um sopro mais forte. Levanta a saia dela até à cintura. As suas mãos, em aflição, não acodem a tempo de impedir que fique à mostra, por instantes, a nudez absoluta por debaixo da saia. Dá meia volta, envergonhada, e foge a correr para casa, deixando a lata na fonte.

Não era uma bailarina daquelas que o padre Artur transformava em sombra. Não era uma sambista carioca que quase se despia por vontade própria no calor tropical. Era uma rapariguinha a quem a roupa escondia mal a sua intimidade, e quase nada protegia do frio que vinha no vento. Se fosse pintor, faria dessa imagem fugaz um quadro sobre a pobreza. Sinto-me triste, neste hoje de há muitos anos e neste hoje de quando escrevo. Estou tão triste na fonte, a encher o meu balde, como ela na sua vergonha.

(Do possível livro de memórias contadas a minha mulher, Maria Alice: A Longa Jornada Até Calie)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Manuel Vavô

Manuel “Vavô” não casara, era pouca cabeça para chefe de família, não tinha aqueles carinhos de mulher que ajudam um homem a viver com mais decência: comida a tempo e horas, o calor de uma caminha aquecida por outro corpo também, uns cuidados de águas quentinhas, para lavar as pernas doridas de trabalhar, e álcool aquentado numa lata de lustro posta sobre o candeeiro, como a mãe fazia ao pai em dias de mais estafa; umas sêmeas de emplastro ou pão em vinagre quente, para mazelas de estômago; roupa lavada e corrida para vestir ao Domingo. Nada, andava aos tombos da fortuna e da aguardente, que lhe era sustento e remédio mais que tudo, que lhe enganava tristezas e sossegava desejos. Por isso trabalhava conforme o apetite, mas, se estava em maré de o fazer, era homem de se contar com ele todo. Só não era de fiar para tarefas aprazadas com rigor. Se lhe dava a moleza da solidão, ficava-se por ruas e tabernas enquanto houvesse uns vinténs para aquecer o estômago, que só quando a fome era de mais ele entendia que lhe doía de fome. Numa noite em que ficara sem ceia, Manuel “Vavô” sentiu cheiro de petisco no “café”do José Virgínio, que tresandava a temperos de violentar paladares, apesar de a porta estar fechada por recato dos convivas. Lá dentro só homens de respeito, ainda que capazes de perder tanto o tino na pinga quanto o Manuel que os ouvia nas risadas da festança. Bateu à porta com algum receio e certa expectativa. Veio abrir o guarda Silva, que espalhava bazófias em disfarce de sabido e voz de vogais abertas e sílabas inteiras. Era uma figura que se pretendia imponente, incapaz de um desalinho, rigoroso no cumprir das leis. Viu quem era e mandou que desaparecesse.

(O café do José Virgínio era na primeira casa à direita)

Manuel “Vavô” insistiu. Teimou uma segunda e uma terceira vez, ao menos uma isca e um copinho de vinho. O guarda cansou-se da teima, e para que o outro não porfiasse agarrou num cabo de vassoura e foi-se contra ele. Era mesmo para bater! Manuel “Vavô” fugiu com todas as forças, e o guarda abalou no seu encalço. Subiram a rua da Igreja em correria de fúria e de medo, voltaram à esquerda no Caminho do Concelho, arfaram pelo Penedo fora até à Fonte Velha.

(Troço do Caminho do Concelho referido na história)

Aí, ao entrar a canada, o carro de bois do Guilherme avivou a coragem do perseguido e deu-lhe uma razão mais forte: um fueiro! Pegou nele e voltou-se contra o guarda que não desistia de querer zurzi-lo. O perseguidor deu meia volta, mais veloz que Veloso a fugir do bando negro. Desceram o Penedo num ai, o Caminho do Concelho como dois foguetes, a rua da Igreja como se tivessem lume no rabo. E foi nesse imprevisto de se ter voltado o feitiço contra o feiticeiro que os amigos dessa noite de farra, que esperavam à porta a solução do combate, receberam a salvo, e com chacota dissimulada de um espanto divertido, o soldado vencido pelo argumento da força.

(Penedo)

(Fonte Velha ao fundo no centro)


Do livro Sobre a Verdade das Coisas (esgotado)

Fotografias de Sérgio Lourenço (Setembro de 2009)