Monte Escuro (fotografia gentilmente cedida por Luís Alves)
O rei convocou a corte e o embaixador do príncipe pretendente, que lhe quer a filha como garantia para um tratado de paz. Mas ela nega-se, porque está enamorada de um pastor. Há quem grite e quem emudeça, conforme os privilégios da hierarquia lhe consentem. O pai manda que a vistam de burel e a fechem na torre mais alta do castelo. A princesa fica quase nua, por momentos. Contemplam-na o êxtase e a vergonha, e o embaixador julga que ela vale bem um reino ou uma guerra.
Esta podia ser uma cena da lenda das Sete Cidades, uma lagoa azul e outra verde, que são as lágrimas da princesa e do pastor, porque eram essas as cores dos seus olhos.
Os vulcões têm destes arrependimentos. Onde tudo foi fogo e destruição há poucos séculos ainda, agora há uma beleza indizível que teima em não caber numa fotografia ou em nenhuma pintura.
O mistério repete-se na lagoa do Fogo, onde se fica com a impressão de que deveria ser assim o Mundo antes de o Homem ter começado a pensar. E volta a acontecer à vista das Furnas, o vale da água e das águas, termais ou minero-medicinais, ferventes umas, outras quase geladas mesmo a seu lado, com os panelões das caldeiras a cozinharem sem descanso o seu caldo arrepiante de lama e enxofre. E na lagoa do Congro, chaminé redonda que o verde, aqui omnipotente, cobre até à beira da água.
Mas São Miguel é muito mais do que isso, como se o Criador tivesse resumido nela o melhor da sua obra. É também a solidez do maciço oriental, das fendas da serra da Tronqueira, onde o pico da Vara anuncia o último instante do chão da ilha. Uma paisagem que impõe o respeito temeroso das coisas perfeitas, que apetece nunca deixar, ou de que logo se quer partir porque nela nos sentimos demasiado expostos à nossa pequenez. Ali aconteceu um dos maiores dramas da vida de Edith Piaf: o campeão de boxe Marcel Cerdan, que ia ao seu encontro em Nova Iorque, era um dos passageiros de um avião que se enganou no caminho.
E é o monte Escuro onde, com a maior parte da ilha abaixo dos nossos pés, volta a sentir-se uma solidão magnífica que nos apanha de surpresa, os campos de golfe como jardins, os parques exóticos do século XIX, as ribeiras de água quente, uma paisagem poupada apesar dos setecentos e quarenta e sete quilómetros quadrados que fazem de São Miguel a maior ilha portuguesa, e que depois de cada curva do caminho, ou do cimo de cada nova colina, nos pode mostrar sempre novidades inesperadas.
Mas a paisagem não é só de ver mas de viver também para os mais de cento e trinta mil habitantes, em povoados pequenos e sossegados, ou em outros buliçosos de pressas modernas em ruas com centenas de anos. E, apesar de a avenida Infante D. Henrique, em Ponta Delgada, ser um longo traço de cimento e pedra que escondeu páginas de história, o progresso não chegou a tempo de destruir todo o passado antes de percebermos como precisamos dele. Por isso, se é possível assistir a ralis em que os pilotos correm para o campeonato dos Açores ou da Europa, ainda se pode, por exemplo, ver uma colorida cavalgada secular em honra de São Pedro – as Cavalhadas da Ribeira Seca da Ribeira Grande.
(Do livro Açores, editado pela Everest. A editora não autoriza a transcrição.)