quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

E Os Seus Não O Receberam (Ou “el cuento de las chocolatinas”)

Imagem do blog Mi Pequeño Mundo

                                         A D. Juan Aguirre, Bispo de Bangassou

O Juanjo (Juan José Aguirre Muñoz) nasceu em Córdova, destinado a uma vida de bem-estar material. Mas, aos dezassete anos, decidiu ser missionário. Fomos companheiros em Moncada (Valência). Um dia, contei-lhe este conto, que publicara no jornal Açores. O Juanjo gostou. E, de vez em quando, pedia-me: “Cuéntame el cuento de las chocolatinas.” (“Conta-me o conto dos chocolates.”) E eu contava. E aqui o conto outra vez. Em Bangassou, num dos países mais pobres do Mundo, a República Centro-Africana, pode ser que ele o leia qualquer dia, e volte a gostar.
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Deixara um rasto de Bem na Sua passagem pelos povoados da Samaria, de Judá e da Galileia. Dera vista a cegos e devolvera os paralíticos aos caminhos; sarara os leprosos e até ressuscitara mortos. (Chorara por Lázaro, sabendo como fora doloroso que ele morresse. Teria corrido, a curá-lo, para evitar-lhe a agonia da morte. Mas tinha sido preciso que os homens presenciassem mais um milagre espantoso para que não duvidassem do Verbo de Deus.) Como Deus, tudo Lhe era eterno. O sofrimento e a dor confundiam­-se já com a bem-aventurança no Céu. O agora de Deus não era o mesmo que o dos homens. Vinha dos tempos da Criação, estava no futuro, coexistia com o presente. Deus vivia o antes e o depois, sem antes e sem depois. No Seu Sermão da Montanha, Cristo, o Deus, via já todos os pobres no Seu Reino; os que choram, consolados; os famintos de justiça, saciados. Mas Jesus, o Homem, vivia no tempo. Assistia ao avolumar do tumor dos cancerosos, ao penoso caminhar dos cegos, à imobilidade dos para­líticos. Jesus sentia o antes e o depois, compreendia o medo e a dor, sabia que o agora, fulminante clarão da Eternidade, era todo o tempo que os homens conheciam.
*     *     *
Naquela noite, tantos séculos depois de Se ter revelado na Samaria, Jesus descera à Terra sem que ninguém pudesse reconhecê-Lo. Era como se não fosse mais do que um homem solitário, razoavelmente vestido, passando por raros caminhantes que não O cumprimentavam. Dei­xara dito que todas as pessoas são Ele. E queria voltar a ver, com olhos humanos, o que fora aprendido da lição que dera. Gatos vadios e cães miseráveis, nessa noite bem alimentados por uns restos de fartura, desviavam-se calmamente para Ele passar. Todas as janelas exibiam estrelas de paz e mensagens de amor. As ruas coloriam­-se de muitas luzes de harmonia e júbilo. Jesus estaria feliz, se as coisas também sentissem. Mas o caminhar solitário, do homem vulgar que parecia ser, bastaria para lembrar-Lhe todos os sós que sofriam, num mundo de homens, como se não houvesse Deus nem outros homens. Numa casa mais pobre do que as mais pobres que vira, Jesus deteve-Se. A ­porta, meio aberta, mostrava um pequenino mundo de miséria: um candeeiro de petróleo iluminava uma lâmpada apagada, uma mesa vazia, duas cadeiras, um armário envelhecido, um calendá­rio antigo com uma Imaculada de Murillo, e uma mulher ainda jovem que fazia renda, sentada num catre tapado por cobertores muitas vezes remendados. Bateu suavemente, e entrou. A mulher, habituada a visitas de homens a meio da noite (que se iam tornando cada vez mais raras), estranhou a mansidão do chamamento e a dignidade que parecia brilhar no des­conhecido. Os filhos dormiam num quarto ao lado. Era sempre prec­iso que dormissem àquela hora.

“O Senhor dever ter-se enganado, ao entrar aqui.” Nunca fora procurada por um homem com um olhar tão puro. Não se sentia à vontade com a presença Dele. “Sou uma pobre viúva…” Ia tentar explicar-se, mas Jesus suspendeu-lhe as palavras: “Eu sei.” E disse-o com tal segurança, que a mulher acreditou que Ele sabia tudo a seu respeito. “Os meus filhos deitaram-se com fome, sonhando com brinquedos e chocolates.” Também isso Ele sabia. E que todos os anos era assim e nunca des­pertavam para um dia mais feliz. “Podes dar-Me um copo de água?” A mulher não estranhou o pedido. E pareceu satisfeita por dar alguma coisa àquele homem. Jesus bebeu e despediu-se.

Pelas ruas novamente, caminhou mais triste. Já saciara uma multi­dão faminta com cinco pães e dois peixes. Mas esse milagre estava nos planos de Deus para que o Mundo acreditasse Nele. Àquela hora, milhões de crianças dormiam com fome ou choravam por pão e sem brinquedos. Não devia, escolhendo aquelas ao acaso, violar as leis da Natureza ou obrigar os homens a serem misericordiosos se não lhes apetecia a misericórdia. E foi, de porta em porta, pedir “brinquedos e chocolates para os filhos de uma viúva pobre.” Riam-se Dele. Ou, simplesmente, não O levando a sério, desculpavam-se por não terem algo a mais que dar. Numa igreja, onde acabavam de celebrar a Missa em Sua honra, Jesus entrou. Ali, estava entre os Seus. Subiu o templo devagar, e foi juntar­-Se a um grupo que falava alegremente, na sacristia, da campanha pelos pobres nesse Natal. Receberam-No de boa vontade, e Ele pediu “brinquedos e chocolates para os filhos de uma viúva pobre”. Quiseram saber quem era ela, e Ele explicou. Ouviu: “Ah! essa mulher não presta!” Os homens continuavam a não perceber. Alguém, convidando-O a ficar, ofereceu: “Vamos fazer um brinde ao Menino!”

E Jesus, triste, de uma tristeza que ninguém compreenderia, despediu-Se: “Eu preferia brinquedos e chocolates.”

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Os Nós e os outros

Mosteiro de Nossa de Guadalupe (origem da fotografia: http://www.spainonline.com/)

Sentado na beira do tanque em frente ao mosteiro de Nossa Senhora de Guadalupe, Don Antonio Mayoral. Numa esplêndida tarde que tardava em acabar, o Sol morria. Falou-me dos Republicanos. E mostrou-me o indicador direito, torto, rígido, como um mapa feito de cicatrizes. Disse: “Foram eles que me fizeram isto…” Certamente haveria mostrado aquele dedo centenas ou milhares de vezes, e dito centenas ou milhares de vezes “foram eles que me fizeram isto”. Perguntei-lhe: “Já pensou que também fez isso a eles?” E com Don Antonio fiquei triste quando, tristemente, como se nunca tivesse pensado que havia eles no mesmo lado do sofrimento, respondeu: “É verdade…”


quarta-feira, 11 de maio de 2011

Crítica de Cinema (ficção)

Anschluss. Alice no País das Martavilhas, 1942 Oskar Kokoschka

Os Caídos, de Thorsten Borg

Thorsten Borg, um bom nome para um concurso de televisão. A pergunta poderia ser: “Onde nasceu o realizador Thorsten Borg? a) Alemanha; b) Brasil; c) Áustria; d) Estados Unidos. Embora por um acaso forçado, a resposta certa é b).

O pai, Hagen Borg, alemão e ariano, foi perseguido pelo nazismo. Fotógrafo amador, natural de Aachen, a Aix-la-Chapelle de Carlos Magno, onde vivia, era filho de um realizador menor neo-realista. Hagen fotografou sobretudo gente e cenários o mais possível semelhantes àqueles que o pai filmara. A exposição de meia centena das suas fotografias no início da Primavera de 1938 – uma sucessão de mendigos, bêbados, casebres e cemitérios – lançou sobre si a maldição. A má consciência nazista, que dias antes impusera a “Anschluss” à frágil Áustria, terá entendido a exposição como uma crítica miserabilista ao seu conceito de raça superior. A Gestapo queimou as fotografias, vasculhou a casa à procura de outras, que também destruiu, e passou a vigiar os seus dias e as suas noites. Mas Hagen Borg escondera as cópias, livrando-as assim do fogo do nazismo. E, sob um ténue crescente de Verão, ele e a mulher escaparam à vigilância e atravessaram a pé a fronteira com a Bélgica, indo até Plombières. Poucas semanas mais tarde, chegariam ao Rio Grande do Sul. Hagen levava uma maleta com as fotografias, a mulher levava no seio a filha mais velha. Thorsten teria de esperar ainda uns pares de anos pela sua oportunidade de nascer.

A ideia para o guião é melhor que o filme. A história – o realizador tentou contar uma história, embora pareça que não – nasce das personagens e dos cenários da exposição maldita. O momento em que as figuras e as paisagens fotografadas ganham vida é a sétima arte no seu estado mais puro. Por isso é difícil desculpar a maior parte do resto.

Thorsten Borg reconstitui a exposição de Aachen. Depois, dando um grande plano de cada fotografia, transforma os retratos de pessoas em personagens reais. Os casebres animam-se pelo movimento do fumo, um cão que ladra ou um gato que se espreguiça ao sol. Um sol que mais se subentende do que se percebe, porque o preto e branco da película é uma espécie de preto e cinzento. Monotonia quebrada pelo inesperado clarão do rebentamento da granada de um obus, supostamente na sua cor real. (Influência da menina do casaquinho vermelho, de “A Lista de Schindler”, de Spieldeberg? Talvez.) Com este clarão se anuncia a melhor sequência de “Os Caídos”, que parece inspirada numa das mais arrepiantes da “Vergonha”, de Bergman. Num dos casebres estão, aterrorizados, um casal de idade indefinida, um mendigo cego e uma surda. Mas aquele rebentamento e os que se lhe seguem são a prova de que o cinema nos habituou a um irrealismo que já não dispensamos. O clarão não é acompanhado pelo barulho da explosão, que só se ouve alguns segundos depois. À medida que o relâmpago das explosões aumenta de intensidade, tornando-se quase insuportável, o tempo até ao estrondo vai diminuindo com o encurtar da distância. Esta falta de sincronismo entre o clarão e o som é a tal realidade a que o cinema, que faz coincidir relâmpago e trovão, nos desabituou. A surda estremece a cada clarão, mas o cego só fica apavorado com os estrondos, que não a perturbam. Ambos haviam procurado a companhia do casal para estarem menos sós nos seus medos. O marido e a mulher permanecem abraçados, tremendo, como que querendo livrar-se de um frio gélido, com os olhos escondidos nos ombros um do outro. Nas últimas imagens da sequência, clarão e estrondo são simultâneos, e o casebre desaparece.

Na sequência anterior, Thorsten Borg fizera-nos sentir piedade pelos donos da casa. Na fotografia da exposição, a família, que se benze, está completa à mesa – o casal e três filhos. No filme, a cena acaba quando o pai, concluída a oração, pega na colher. Na cena seguinte, os filhos são já dois somente. Depois, apenas um. Finalmente, só o homem e a mulher. Borg põe então o casal sozinho a sentar-se para comer uma meia dúzia de vezes, diminuindo sempre a sopa e o pão. Até que se chegam ambos à mesa vazia, benzem-se como habitualmente mas não rezam, e retiram-se. Nos fotogramas das imagens dos destroços do casebre, Thorsten Borg sobrepôs umas gotas (talvez lágrimas) que escorrem como se alguém chorasse sobre a película ou a própria tela.

O realizador deu vida também a um dos cemitérios. E dar vida a um cemitério é enchê-lo de mortos. Penosamente assiste-se ao enterro de várias das personagens das fotografias e do filme. Em cada funeral há um acompanhante a menos – o que imediatamente antes fora a enterrar.

O problema de “Os Caídos”… são vários. Da cor, ou da ausência dela, já foi dito. Para fazer um “travelling”, a câmara parece ficar à espera de que o cenário se mova. E os actores são muito melhores no seu papel de mortos do que no de vivos.

Quando, triunfantes, surgiram as há muito desejadas quatro letras, ENDE (fim), corri para a porta para ver se ainda havia Sol. Felizmente, havia. 

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Camões em duzentas e tal palavras



Se eu disser que ontem encontrei Camões, quem ouvir espanta-se até ao infinito ou chama-me doido. Corro o risco. Encontrei o vate, sim. “Um perdigão depenado”, como no filme de Leitão de Barros. Incapaz de fazer uma canção, uma endecha, uma estrofe que lhe não enxovalhe a fama. Insisti. Dei-lhe a minha palavra de que não venderia o autógrafo. Que valeria uma fortuna maior do que ele ganhou a poetar a vida inteira. Seria um insulto. O original, guardo-o ciosamente. A transcrição vai abaixo. Talvez com falhas. A sua caligrafia é mais difícil de entender que a do Vergílio Ferreira.

Sam taes os dões na Lingua Portugueza,
Tam forte, femenil, e tam fermosa,
Como erão na latina. Tal belleza,
Despois na nossa posta, é mais famosa.
Mas a patria christã da-me a certeza
D’esta sentença fea e desditosa:
Se eu vivera outra vez, morria à mingua,
Pois ja ninguém entende a minha lingua.

Forão sutis mudanças a mudalla,
A pouco e pouco sempre em crecimento,
Que ja eu nam consigo bem uzalla
Porque foi mui disforme tal augmento.
Mas inda assi nam deixarei de amalla
Que a lingua tãobem é um sintimento.
E por tanto da lingua estar ja morto,
Eu sinto, por ser morto, algum conforto.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A Academia Popular da Língua

Fac-símile da carta original de Pero Vaz de Caminha quando do aportamento da expedição de Cabral em terras brasileiras. (imagem de domínio público)






Houve um tempo em que muito mais que agora se estimava a Língua Portuguesa. Por isso no 2º Ciclo do Liceu se estudava a sua evolução e os seus autores mais notáveis, desde os gentis trovadores ao magnífico Aquilino. Mas nessa viagem que acompanhava a cronologia estava um dos tropeços do programa. O percurso teria sido mais fácil se feito ao contrário, começando na linguagem familiar dos contemporâneos e acabando no suave trovar dos antigos. E assim, sem mais penas que as necessárias, teríamos ido do morrer de amor de Ana e Simão até ao “moiro d’amor” de D. Dinis, passando pelo “moura e pereça” de Luís Vaz.

Faz parte da natureza da Língua evoluir. Nem o Latim deixou de mudar quando se tornou numa língua dita morta, pois continua vivo na herança directa das sete línguas latinas e seus dialectos, nas várias que receberam dele grande parte do léxico e até na taxonomia. Mas os legionários que Roma recrutara nos quatro cantos do Império, e que nos trouxeram uma língua já algo distinta da que se falava no Lácio, tê-la-ão feito evoluir? Ou corromperam-na, conforme pensava Vénus pela pena de Camões? E, se talvez nenhum deles falasse da mesma maneira que por esse tempo Cícero escrevia ao seu amigo Ático, ainda falariam Latim?

Foi nessa transfiguração da língua do Lácio que continuou a ser forjado o Português. De celtas e outros povos tinham ficado vocábulos que permaneceriam até hoje, e mais tarde se lhe iriam juntando muitos de árabes, guaranis, chineses, quimbundos, de todos os povos com quem aprendemos novidades, fosse a do ornamental azulejo ou a do exótico maracujá, a do reconfortante chá ou a da pobre senzala. E por onde íamos também íamos ajudando a cumprir esse fadário das línguas, o de serem mudáveis. Mas se a Língua não é imutável no léxico, tão-pouco o são em si mesmas as palavras que o constituem, até porque desse pecado original é que todas nascem e se desenvolvem. E é também nessa inconstância que os apoiantes do Acordo Ortográfico encontram abrigo para a defesa das suas posições. Mas será legítimo impor regras politicamente legisladas ao que por sua natureza é património colectivo e responsabilidade partilhada da nação? A primeira grande intromissão do poder político nas leis que regem a Língua aconteceu com a iconoclasta República, que não se limitou a mudar de rei para presidente, mas mudou também a bandeira, o hino, a moeda e a própria ortografia, tendo tentado mesmo intervir no espírito religioso popular. Como se do Portugal com quase oito séculos nada pudesse ficar para memória futura.

Sim, esta língua tem vindo a mudar sempre, desde que o Latim perdeu as declinações e se adaptou ao rude falar dos legionários e dos povos conquistados, tornando-se no latim dito bárbaro ou vulgar. E todas essas mudanças e as que aconteceram depois se deveram à necessidade de facilitar a comunicação, a características naturais da fonação ou a erros dos falantes, que de tão repetidos passaram a ser norma. Mas esta alteração da norma não surgia por acaso nem por geração espontânea. Os portugueses enamorados não adormeceram numa qualquer noite morrendo de soydade pela mulher amada, para despertarem na manhã seguinte com a saudade tão viva como na véspera. Diferentes formas para a escrita, ou a própria prosódia, da mesma palavra têm coexistido sem conflito durante décadas, talvez séculos. Segundo os escrivães de D. Manuel I, o poderoso rei ora regulava o comércio do “assucar”, ora oferecia umas quantas arrobas de “açucar” a quem lhe aprouvesse. Ainda no mesmo século, o XVI, não faltou quem satisfizesse a gulodice com doces torrões de “assuquere”. Mas, no século XVII, já não havia dúvidas. E todas as palavras que em Árabe começassem como aquela (as’sukkar) haveriam de ficar no Português com o princípio em “aç”, como açucena ou açude. Por vezes, ao fim de muito tempo de tal coexistência, os dicionaristas – definitivos sancionadores do padrão da Língua –, vencidos pela persistência de diferentes grafias, registavam as variantes. E assim temos, por exemplo, “disfrutar” e “desfrutar”, ou “lâmpada”, “lampa” e “alâmpada”, todas elas de curso legal segundo os dicionários. (São vários os casos da prótese do artigo com o substantivo, alguns mesmo da preposição com o verbo. E foi muito comum a escrita de preposições, copulativas e artigos juntando-os às palavras que regiam. Ainda no século XVIII acontecia, v.g. “o padre tirando-o com toda areverencia, o entregava com toda a decencia” – Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia, transcrição de Alícia Duhá Lose. Ou “todas asindulgências que osenhor capelão”, “efoi corista en oanno demil equinhentos” – relatório do vigário do Cartaxo sobre o estado em que ficou o concelho depois do terramoto de 1755, transcrição do autor.)

Para a evolução da Língua, no princípio foi o povo, que nunca se demitiu dessa função. Para a fixação da norma, embora muitas vezes transitória, terão servido de modelo cronistas de El-Rei, poetas e escritores como Camões ou Vieira, Camilo ou Herculano. O século XX tornou-se sobretudo o tempo do império dos jornais, para a grafia, e da rádio e da televisão, para a prosódia. Acerca desta surge uma das polémicas do Acordo. Há os que dizem que a alteração da grafia talvez a altere também, e há os que o negam. Se do futuro nada se pode afirmar, do passado temos exemplos variados de como a grafia muitas vezes condiciona a pronúncia. Dois casos recentes são “paisagem” e “saudade”. Aquela, que deriva de “país”, embora por via do Francês, escrevia-se com trema para que a raiz fosse respeitada – “PAÏSAGEM”. E “saudade”, também para desfazer o ditongo, tinha direito a trema igualmente – “SAÜDADE”. Desaparecido um e outro, poucos são os que ainda dizem “pa-i-za-jem”, enquanto que alguns já pronunciam “sau-da-de”. A nossa “idéia” já foi assim, acentuada como ainda é a brasileira. O que se justificava pela diferença prosódica em relação ao mesmo ditongo, em “cheia” ou “areia”, por exemplo. Eis, pois, outro caso em que a perda do acento exerceu influência em alguns falantes do português de Portugal. E, se a pronúncia do Norte tivesse persistido na prosódia nacional, pois então o Porto certamente haveria de ser uma “NAÇAÕ”, tendo-se mantido o til sobre a vogal final, que aí era o seu lugar. Curiosamente, foi ainda assim que foi escrito no referido Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia.

Quanto ao “e” em sílaba inicial, tem-se tornado uma vítima do sistema… É frequente não ser lido com o som de “i” em casos em que assim deveria ser. Por exemplo “Emanuel” que, no entanto, já se escreveu “Immanuel” ou “Imanuel”, acontecendo o contrário com “igreja”, que já foi “egreja”. Prova de que “Emanuel” sempre foi para ser dito “IMANUEL” e “igreja” já seria assim, mesmo quando era “egreja” devido à sua origem greco-latina.

O grande argumento dos defensores do Acordo é o da conveniência de harmonizar o Português em todo o espaço onde se o fala. Mas não serão as ausências de uns velhinhos “pês” ou de uns inocentes “cês” que facilitarão a comunicação com quem tiver aprendido Português depois de adulto. A maior dificuldade está relacionada com a riquíssima diferença do léxico e da prosódia dos países lusófonos em relação a Portugal. Com essas características o Acordo, obviamente, não se atreve a bulir. E felizmente não poderia fazê-lo, ainda que o tivesse querido. Por isso apenas resolve uma ínfima e superficial parte do problema. Tanto mais que, permitindo grafias duplas, acaba por criar alguma confusão entre prosódia (pessoal ou de grupo social) e ortografia. Os jornais que aderiram de imediato às novas regras têm demonstrado isso mesmo.

Nenhuma mudança repentina é fácil de aceitar. Uma experiência curiosa, e de certo modo extravagante, foi feita por Juan Ramón Jiménez, que chegou a usar sempre a letra “z”, para representar a fricativa dental surda, e o “j” em vez do “g” gutural. E se isto não adulterou a qualidade da tradução de Tagore, feita por Zenóbia, sua mulher, e por ele, tão-pouco trouxe algo de novo à língua castelhana, que de modo algum se interessou por tal simplificação. O pior incómodo, no entanto, era de natureza estética. Porque a estética também é um hábito.

Enfim, a República, que tirou à Língua o “p” de Egipto e o devolveu em 1945, agora que o apagou novamente bem poderia voltar a pô-lo no seu lugar. Por razões muito faladas já. E que nos fosse permitido continuar a distinguir os olhos dos ouvidos (óptico e ótico), ou que o “c” segurasse o tecto, contra todas as dúvidas… Porque o que é novo nem sempre é melhor do que o antigo.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Dia do Filho



(Mensagem enviada a Daniel Abrunheiro, a propósito do tema que nela consta)
Meu Caro

A tua homenagem à Mãe está demasiado bela para que eu nada diga. Se na escrita se pode ser sublime, tu foste, neste caso. Mas para uma Mãe nada é nunca demais. E com a Mãe tudo pode acontecer, até o que chega a assemelhar-se a ficção de novela barata ou a romance com pouca imaginação.

Eu também tive Mãe. Mãe milagrosa. Mãe capaz do impossível. Dela nasci numa casinha abaixo daquela que pertencia ao meu avô, seu pai. Numa noite de tempestade, com os vagalhões a rebentarem a trinta metros de distância e os relâmpagos a caírem como se fosse ao lado. Outra luz que não a deles, só a do azeite de gata, que era o combustível possível desse tempo de guerra ainda. Enquanto na Europa continental os dois lados do conflito se esmeravam nos pormenores finais da morte, mais um milagre da vida acontecia.

O maior milagre da minha Mãe, que era ela ser como era, durou até um ano em que nada fazia pensar que fosse o seu último. E aconteceram coisas estranhas, que só por ela ser Mãe podem ter acontecido. E em que eu, se me contassem de qualquer outra, não acreditaria. Estava-se por Janeiro ou Fevereiro, e a minha irmã preocupada já porque em Agosto iria uns dias para Santa Maria. Queria ter a certeza de que a nossa Mãe ficava bem. Ela disse que a minha irmã não se preocupasse – morreria antes de Agosto. Minha irmã, céptica quanto a presságios, não acreditou. Para ter a certeza de que ela estava de perfeita saúde, como parecia, quis que fosse internada por um dia ou dois, no Hospital do Espírito Santo, para fazer exames completos. Entrou sem qualquer doença, saiu de lá para morrer mais perto de nós. Porque foi apanhada por uma infecção hospitalar que o organismo suportou bem, mas não resistiu a uma segunda. Foi preciso até privá-la da fala para que pudesse respirar.

Depois… depois já era Julho. O último dia de Julho, com um sol esplêndido. Eu tinha estado com ela até meio da tarde. Chamaram-me à pressa. Pareceu-me praticamente morta. Disseram-lhe que eu estava ali. Ela abriu os olhos. Ainda conseguiu erguer um pouco a cabeça, para me beijar. Fez o sorriso mais belo que terei visto na minha vida inteira. Percebi que os seus lábios se moviam a dizer a mesma saudação de sempre: “Meu querido filho!” E morreu, como nos tais romances, como nos filmes. Primeiro um sono profundo, breve, depois o derradeiro, o para sempre. Era Julho, quase Agosto. Uma tarde linda, sem nuvens, sem outras sombras. A minha sobrinha Lurdes estava ao pé de mim. Abraçámo-nos a chorar.

O relógio da cozinha da Lurdes parou às 7h 24m. A hora exacta a que minha Mãe morreu. Não era preciso que Ele me dissesse, assim, que a minha Mãe era um anjo. Eu sempre o soube.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ahmed Ben Kassin (8)



Com certeza já todos os amigos que aqui têm vindo perceberam que Ahmed Ben Kassin é um poeta que eu mesmo criei. Penso, no entanto, ser já tempo de o deixar regressar à ficção de onde saiu. Por isso este poema será o último da série. Uma mensagem angustiada dirigida aos conquistadores de Granada, os reis que, depois desse feito, receberam o título de “Católicos”.


Isabel e Fernando

Dois leões lutaram pela mesma corça,
E vieram dois cães sarnentos e roubaram-na.
Por isso já Isabel pode lavar a camisa na água de Albaicín
E o rei pode beber das lágrimas de Aynadamar.

Vede, ó príncipes, com que cuidado foi posta cada pedra,
Em Granada, a esplêndida, e plantada cada rosa.
Uma mãe não veste a filha com mais carinho.
Contemplai os versos dos poetas
Que ornamentam as paredes da Alhambra,
E as palavras do Alcorão que as tornam veneráveis.
Granada curvou a cerviz perante a força das vossas armas.
Mas respeitai os vencidos e a memória dos que pereceram.
Perante as pedras e as rosas de Granada,
Dizei ao menos: “Como eles a amaram!”

Notas:

A luta dos dois leões refere-se à guerra entre El Zagal e Boabdil, seu sobrinho, que roubara o trono ao pai, Muley Assam, que morrera em 1585 e contra o qual também lutara. Os dois cães sarnentos são Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
A referência à camisa de Isabel alude à lenda de que ela fizera o voto de não mudar a camisa enquanto Granada não fosse conquistada.
Nas “lágrimas de Aynadamar” há um jogo de palavras, porque Aynadamar é composta por “Ayn” (“olho”, com o significado de nascente), e “damar” significa “lágrimas, talvez como referência à maneira como surge a água nessas fontes que abastecem a zona alta de Granada, Albaicín, coração da cidade velha. Em Espanha, tal como no continente português, “olho” é com frequência sinónimo de nascente. Por exemplo no caso do começo do Guadiana (Ojos de Guadiana) ou numa nascente da zona do Cartaxo, chamada Olho do Senhor, ou Olho de Cristo, ou Olho do Senhor Santo Cristo.