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A D. Juan Aguirre, Bispo de Bangassou
O Juanjo (Juan José Aguirre Muñoz) nasceu em Córdova, destinado a uma vida de bem-estar material. Mas, aos dezassete anos, decidiu ser missionário. Fomos companheiros em Moncada (Valência). Um dia, contei-lhe este conto, que publicara no jornal Açores. O Juanjo gostou. E, de vez em quando, pedia-me: “Cuéntame el cuento de las chocolatinas.” (“Conta-me o conto dos chocolates.”) E eu contava. E aqui o conto outra vez. Em Bangassou, num dos países mais pobres do Mundo, a República Centro-Africana, pode ser que ele o leia qualquer dia, e volte a gostar.
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Deixara um rasto de Bem na Sua passagem pelos povoados da Samaria, de Judá e da Galileia. Dera vista a cegos e devolvera os paralíticos aos caminhos; sarara os leprosos e até ressuscitara mortos. (Chorara por Lázaro, sabendo como fora doloroso que ele morresse. Teria corrido, a curá-lo, para evitar-lhe a agonia da morte. Mas tinha sido preciso que os homens presenciassem mais um milagre espantoso para que não duvidassem do Verbo de Deus.) Como Deus, tudo Lhe era eterno. O sofrimento e a dor confundiam-se já com a bem-aventurança no Céu. O agora de Deus não era o mesmo que o dos homens. Vinha dos tempos da Criação, estava no futuro, coexistia com o presente. Deus vivia o antes e o depois, sem antes e sem depois. No Seu Sermão da Montanha, Cristo, o Deus, via já todos os pobres no Seu Reino; os que choram, consolados; os famintos de justiça, saciados. Mas Jesus, o Homem, vivia no tempo. Assistia ao avolumar do tumor dos cancerosos, ao penoso caminhar dos cegos, à imobilidade dos paralíticos. Jesus sentia o antes e o depois, compreendia o medo e a dor, sabia que o agora, fulminante clarão da Eternidade, era todo o tempo que os homens conheciam.
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Naquela noite, tantos séculos depois de Se ter revelado na Samaria, Jesus descera à Terra sem que ninguém pudesse reconhecê-Lo. Era como se não fosse mais do que um homem solitário, razoavelmente vestido, passando por raros caminhantes que não O cumprimentavam. Deixara dito que todas as pessoas são Ele. E queria voltar a ver, com olhos humanos, o que fora aprendido da lição que dera. Gatos vadios e cães miseráveis, nessa noite bem alimentados por uns restos de fartura, desviavam-se calmamente para Ele passar. Todas as janelas exibiam estrelas de paz e mensagens de amor. As ruas coloriam-se de muitas luzes de harmonia e júbilo. Jesus estaria feliz, se as coisas também sentissem. Mas o caminhar solitário, do homem vulgar que parecia ser, bastaria para lembrar-Lhe todos os sós que sofriam, num mundo de homens, como se não houvesse Deus nem outros homens. Numa casa mais pobre do que as mais pobres que vira, Jesus deteve-Se. A porta, meio aberta, mostrava um pequenino mundo de miséria: um candeeiro de petróleo iluminava uma lâmpada apagada, uma mesa vazia, duas cadeiras, um armário envelhecido, um calendário antigo com uma Imaculada de Murillo, e uma mulher ainda jovem que fazia renda, sentada num catre tapado por cobertores muitas vezes remendados. Bateu suavemente, e entrou. A mulher, habituada a visitas de homens a meio da noite (que se iam tornando cada vez mais raras), estranhou a mansidão do chamamento e a dignidade que parecia brilhar no desconhecido. Os filhos dormiam num quarto ao lado. Era sempre preciso que dormissem àquela hora.
“O Senhor dever ter-se enganado, ao entrar aqui.” Nunca fora procurada por um homem com um olhar tão puro. Não se sentia à vontade com a presença Dele. “Sou uma pobre viúva…” Ia tentar explicar-se, mas Jesus suspendeu-lhe as palavras: “Eu sei.” E disse-o com tal segurança, que a mulher acreditou que Ele sabia tudo a seu respeito. “Os meus filhos deitaram-se com fome, sonhando com brinquedos e chocolates.” Também isso Ele sabia. E que todos os anos era assim e nunca despertavam para um dia mais feliz. “Podes dar-Me um copo de água?” A mulher não estranhou o pedido. E pareceu satisfeita por dar alguma coisa àquele homem. Jesus bebeu e despediu-se.
Pelas ruas novamente, caminhou mais triste. Já saciara uma multidão faminta com cinco pães e dois peixes. Mas esse milagre estava nos planos de Deus para que o Mundo acreditasse Nele. Àquela hora, milhões de crianças dormiam com fome ou choravam por pão e sem brinquedos. Não devia, escolhendo aquelas ao acaso, violar as leis da Natureza ou obrigar os homens a serem misericordiosos se não lhes apetecia a misericórdia. E foi, de porta em porta, pedir “brinquedos e chocolates para os filhos de uma viúva pobre.” Riam-se Dele. Ou, simplesmente, não O levando a sério, desculpavam-se por não terem algo a mais que dar. Numa igreja, onde acabavam de celebrar a Missa em Sua honra, Jesus entrou. Ali, estava entre os Seus. Subiu o templo devagar, e foi juntar-Se a um grupo que falava alegremente, na sacristia, da campanha pelos pobres nesse Natal. Receberam-No de boa vontade, e Ele pediu “brinquedos e chocolates para os filhos de uma viúva pobre”. Quiseram saber quem era ela, e Ele explicou. Ouviu: “Ah! essa mulher não presta!” Os homens continuavam a não perceber. Alguém, convidando-O a ficar, ofereceu: “Vamos fazer um brinde ao Menino!”
E Jesus, triste, de uma tristeza que ninguém compreenderia, despediu-Se: “Eu preferia brinquedos e chocolates.”