sábado, 22 de agosto de 2009

Evocação

Conteiras (fotografia de Rui Almeida, publicada em http://olhares.aeiou.pt/conteiras_foto399394.html)

De outros tempos, temos a poesia que ficou das coisas que passaram. O que foi mau esquece-se por já não ser, o que foi bom transfigura-se por já não poder ser.

A mãe que fechava, bem fechadas, as janelas do quarto térreo para que o Sol não denunciasse um novo dia e os filhos continuassem deitados, assim lhes enganando com o sono a fome, porque em casa não havia o que comer; a tísica que se mirrava, hálito com hálito da irmã, que lhe despia a camisa suada por agonia e fraqueza, trocando-a pela sua, enxuta, e colando sobre o seu corpo são o suor de enferma da quase moribunda; o “canto” dos homens a preço de desbarato, a dor, a fome, a miséria, toda a desumana condição humana…

Mas a alegria também! Talvez como rito de afugentar fantasmas, talvez como um esforço para despertar de um sonho dormido entre maus sonhos. Ou talvez que a alegria existisse por si mesma, como acto necessário, como razão suficiente.

A luz, como era diferente a luz! Doía, de bela, a cor dos cravos, das sécias, das despedidas-de-verão; era uma orgia saudável o cheiro da malva-rosa, da erva-luísa, da hortelã do quintal-jardim da minha tia Ermelinda.

O Sol a queimar, a queimar sempre, avolumando os frutos, anunciando a ceifa, num prenúncio de fartura que se cumpria em vinhas e pomares, hortas e searas.

A alegria simples de viver. O prazer de estar vivo. Um “haja saúde” que bastava como desejo e cumprimento. “Saúde e a graça de Deus.” Tudo o mais tinha o sabor inesperado das coisas supérfluas.

E as crianças, brilhando ao Sol (ah! Se Renoir as pintara!...), vigiavam nas longas tardes grandes capachos de trigo, para que as outras o não mascassem como “gama”, para que as galinhas o não comessem. Ou vendiam, por esquinas e travessas, a troco de botões – as “marcas” – os “chupos”, flores da conteira (Hedichium gardnerianum), enquanto a vida vivia.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Santa Maria, Uma Declaração de Amor

São Lourenço, ilha de Santa Maria (fotografia de Ana Loura)

Considero-me um privilegiado quando me chamam mariense. Porque, como filho destas ilhas, tenho a sorte de ter pai e mãe. Foi meu pai São Miguel, minha mãe, Santa Maria. E, se pode ter-se dupla nacionalidade, por certo que poderá ter-se dupla “insularidade”.

Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilégio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatro por São Pedro, na casa do Sr. Armando Monteiro, e seis meses na Ribeira do Engenho, numa casinha que era toda ao pé da porta e tinha o telhado à altura do caminho.

De São Miguel saí ainda de cabelos compridos, de que guardo uma vaga memória mas somente do dia em que mos cortaram, já em São Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, só sei o que me contava minha mãe. Tempo esse em que uma criança de dois anos podia andar pelas ruas e ir até longe, no longe relativo do tamanho do corpo, sem deixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroça ou de um carro de bois.

Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas lições recebi! Recordo a sabedoria de um povo a quem vi cavar um poço antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas tão simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto à semelhança de pequenos menires, onde o gado ia roçar-se placidamente. A minha definição como pessoa começou a fazer-se com estes e com outros ensinamentos casuais ou espontâneos, sem pedagogia diplomada.

Pode parecer um contra-senso considerar um privilégio ter vivido em Santana, porque aquela era uma das aldeias mais rurais de Portugal. Nem havia sequer uma canada razoável que lhe fosse caminho. A que existia servia, em parte, como leito de uma ribeira, onde aflorava a rocha irregular posta a descoberto pela erosão. Durante séculos, foi a única via que levava a Vila do Porto. Maior isolamento do que aquele é difícil de imaginar. Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodígios da superação.

De súbito, tudo mudou em 1945. Em Santana propriamente não, porque ela ficou imutável na sua rústica ancestralidade. Mas, mesmo ali ao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referência, porque até na religião os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus. Ia-se e vinha-se usando atalhos desenhados por milhões de passadas, cortados aqui e ali por muros que era preciso saltar. A aldeia isolada ficara a poucos minutos de um mundo novo e impensável. Mas aquela gente recebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Sol que gretava o solo árido no Verão, depois de secos os lameiros do Inverno. Aquela gente, que resistira à angústia da fome, numa penúria humilhante e indigna da condição humana. Como um pouco por toda a ilha, aliás. Mas que manteve uma dignidade bíblica, porque a dignidade é um estado de espírito mais do que uma afirmação social.

A nossa casa nunca fora chamada casa antes de lá morarmos. E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos não podia trabalhar. Não o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade de as mães não terem falta do que pôr na mesa à hora de comer. Apesar disso, não lamento nada da minha infância.

Fui pastor de cabras, de ovelhas e de vacas. Cavalguei em pêlo e sem esporas nem freio, como os índios. Nunca ninguém me ensinou a ter medo do dia nem da noite. Fui cowboy ou índio na mata de Monserrate e nas do Aeroporto. Mas não estraguei nenhuma árvore, nem os meus companheiros de aventuras. Contei histórias ao meu amigo Elias, e contava-me ele outra por cada uma das minhas. Matávamos o menor número possível de personagens, quer fossem índios ou bandidos. Apenas o essencial para haver vencedores e vencidos.

Entretanto, ia aprendendo em livros ou num quadro preto. Primeiro na escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1ª classe, a D. Doroteia, na 2.ª, a D. Úrsula, na 3.ª, a D. Francisca, na 4.ª. Continuam a ser das minhas heroínas preferidas. Fizeram o milagre de me ensinar a ler, de explicar que povo somos e a que terra pertencemos. Depois veio o Externato. Juntei à minha lista de heróis e de heroínas mais uns quantos predestinados para o bem e a sabedoria. Passei a pertencer também à geração do Cavaleiro Andante, sem dúvida a mais prodigiosa publicação juvenil que houve em Portugal. Não tínhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o José Guilherme Correia que mo emprestava sempre. E alguns livros também, como o José Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei há meio século. Foi assim que pude ler Emílio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.

E havia o Clube Asas do Atlântico. O Asas! Nunca ninguém me pôs na rua nem mostrou desagrado pela minha presença. Nem imaginavam o bem que me estavam fazendo. Ali ouvíamos os relatos do futebol e do hóquei das nossas alegrias patrióticas. E era onde eu tinha à disposição os principais jornais que se publicavam em Portugal. Um dos mais bem escritos era A Bola, e por isso, ao mesmo tempo que a rivalidade entre o Sporting e o Benfica era um dos principais factores de unidade dos Portugueses, o desporto, contado naquele jornal que mudou tanto que se pode considerar extinto, era também uma lição de cultura.

Não longe, o campo dos jogos épicos do futebol romântico de dois defesas, três médios e cinco avançados. Com o mítico Badjana a dar os últimos pontapés na bola, jogando pela equipa da Direcção do Serviço de Obras, onde meu pai trabalhava. Depois veio outro clube, o de Gonçalo Velho, para o qual minha mãe e minha irmã bordaram os primeiros emblemas.

No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlântida Cine. O seu porteiro deixava muitas vezes as crianças entrarem sem pagar bilhete. Por isso o Sr. Cardoso faz parte da minha lista de heróis particulares. E o grito “ó Cardoso, apaga a luz” ainda ecoa nas minhas recordações como o anúncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver.

Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se é certo que sem uma fé sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo à maneira do Padre Artur é o testemunho do bem na Terra.

Mas qualquer pedaço de mundo vale pelo que vale a sua gente. A do meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma geração em que havia na ilha mais forasteiros do que naturais dela. Sorte nossa que a maior parte dos que em Santa Maria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortúnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonçalo Velho é sempre um momento de festa que dificilmente tem semelhança quando as amizades foram feitas por outras bandas.

O próprio aeroporto, começado a construir durante a guerra, acabou por ser um lugar de passagem para a paz. Se, em 1918, Franklin Delano Roosevelt escolheu Ponta Delgada para apoio ao transporte de tropas a caminho da Europa, por aquelas pistas passaram sobretudo soldados de regresso a casa. O nome de código da operação, “Green Project”, era ele mesmo uma declaração de esperança numa nova era.

Foi neste ambiente, um dos espaços nacionais onde mais se concentravam pessoas com ensino superior ou com uma cultura acima da média, que começou a germinar a minha vontade de fazer das palavras escritas um uso para além da obrigação de alguma carta familiar. Sem Santa Maria, sobretudo sem o seu Externato, eu teria ficado pela 4.ª classe, tal como todos os rapazes que nasceram na Maia, em São Miguel, no mesmo ano que eu. Por um desses acasos que são difíceis de explicar, cresci logo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antes de completar seis anos, perguntei a meu pai como é que se faziam versos. Ele era um improvisador de quadras e de histórias como poucos conheci na vida. Chegou a fazer o negócio de uma burra cantando ao desafio. E, nos intervalos do almoço, contava casos a homens da sua idade, mas tão interessados como crianças. Vi muitos filmes pelos seus olhos, ou ouvi-os da sua boca. Ele levou a sério a minha pergunta sobre poesia, e respondeu como se deve sempre responder a uma criança: dizendo a verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criança será um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que só guardo a memória de uns longos caracóis loiros. Sei que começava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: “Sou Daniel/ da ilha de São Miguel”.

Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Mãe também. E nela vivia então um poeta que fez parte do meu imaginário, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Araújo. Não tive a sorte de ser seu aluno, mas a ânsia de alcançar um estatuto semelhante ao seu foi talvez o maior impulso que me levou a dedicar-me à escrita.

Mas Santa Maria veio a ser para mim cenário de drama também. Numa certa manhã, os responsáveis pela Direcção do Serviço de Obras estavam reunidos para despedir pessoal. O critério escolhido foi o de optar pelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque éramos só minha irmã e eu. Minha irmã não estudara porque as propinas equivaliam a um terço do ordenado de meu pai. Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou não o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramática da 4.ª classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colégio, como chamávamos ao Externato.

O Miguel Corte-Real, esse homem da linhagem dos primeiros povoadores e a quem Santa Maria muito deve, não concordou com a ideia, alegando que eu estudava, e que meu pai e minha mãe, costureira, se sacrificavam a trabalhar mais do que podiam para eu ter aquele privilégio. Estava a questão por decidir quando chegou um funcionário com uma notícia dramaticamente irónica. Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida.

(Texto lido no colóquio Santa Maria nas rotas do Atlântico, promovido no dia 9 de Agosto pela Fundação Luso-Americana, sob a responsabilidade de Mário Mesquita)

sábado, 1 de agosto de 2009

A Ribeira do Calhau

Em primeiro plano, à esquerda, o início do atalho da Ribeira do Calhau (fotografia de Sérgio Lourenço)

A paz da tarde, o mar apaziguado a trepar as pedras com indolência e sem convicção. As algas num vaivém de cabeleiras verdes e castanhas. Mais adiante, a Ribeira do Calhau, corrente fresca, saborosa, com o sabor das entranhas do basalto, do musgo e das labaças, nascendo aos pés do rochedo, de curso breve como um voo de borboleta. Começa e acaba em trinta metros de vida. Ainda lá estão as pedras que foram lavadouro de muitas gerações, abandonadas, sem préstimo, fora do lugar algumas, recordação todas elas. Onde a que minha mãe preferia?...
Longo era o caminho para ali chegar. Mais longo ainda por ser difícil do que pelo longo tamanho dele. Um atalho apertado entre canas e ervas altas que, depois da chuva, se trocava frequentemente pela insegurança das pedras do Calhau. (Ter água em casa era um luxo. E, no Verão, para o necessário à família, formavam-se grupos à espera, de madrugada, em cada fonte que havia, de onde um fio delido enchia lentamente os potes de barro. Uma lentidão enervante, mas ninguém pensava que a vida, por vezes, quer ser vivida mais depressa. Ou talvez nós é que a estraguemos por não tomar, calmamente, o gosto ao tempo.)
A Ribeira do Calhau, quase sem tamanho, quase já mar quando nasce, vivia o suficiente para ser útil e acabava-se logo entre as pedras, sem uma grandeza aparente. Nunca uma cheia, nunca uma seca. A água a jorrar, paciente, numa monotonia embaladora, por um buraco que lhe media o caudal, como que um milagre no paredão da rocha. Ela soube de tudo, ela ouviu tudo sem indiscrições, as grandes dores e as grandes alegrias, as banalidades de conversas sem motivo. Ela soube de amores e desavenças, ela soube da vida e da morte.
Hoje, só o musgo e as labaças lhe falam de si, mais alguma cana que desça os rizomas na aventura de experimentar o prazer de mais água. Ou alguém que, andando às lapas ou à pesca, se curve, entre uma poalha de luz, a beber sem cobrança. Ou alguma alma, extraviada das convenções do viver, que ainda acredite que a solidão só dói quando há mais gente em redor.
Atalho da Ribeira do Calhau (fotografia de L. Filipe Braga)