quinta-feira, 26 de março de 2009

A Batalha da Baía das Mós


Em 1583 muito mudara para pior no ânimo dos homens, embora muito para melhor se tivessem mudado as condições de defesa da ilha. Pelo que parece ter-se provado que a alma vale pelo menos tanto como o corpo na hora de dar este ao manifesto. D. António mandara para a Terceira como regedor ao seu amigo Manuel da Silva, conde de Torres Vedras, com grandes poderes, até o de fazer moeda, que acabaram por causar pouca simpatia entre o povo e nenhuma em Ciprião de Figueiredo.

Além disso, as relações com São Miguel eram difíceis, como que se de inimigos se tratasse, o que de facto eram. Ambrósio de Aguiar, que tinha sido mandado como governador dos Açores, ficara-se ajuizadamente por aquela ilha, receando, e com razão, que na Terceira não lhe perdoassem o seu apego a Filipe II. Aliás essa lealdade ao castelhano quase lhe custara já a vida. Quando era do governo de Setúbal, e declarado apoainte da causa filipina, chegou a estar confessado e pronto para ir ao cepo da degola. Sorte sua foi que entretanto se deu o desastre de Alcântara, que definiu a vitória do rei estrangeiro e de que resultou a sua libertação e subida no conceito do soberano. Mutuamente Ambrósio e Ciprião se declararam traidores, tendo acabado um por ficar com o orgulho de a vitória lhe haver dado a razão dos fortes, e o outro com a honra de ter sido leal a quem a consciência lhe ditava que fosse, embora por esse tempo já estivesse longe dos Açores, acompanhando D. António nas suas últimas andanças.

Dentro da ilha, a presença de muitos franceses e alguns ingleses mais serviu para dividi-la do que para fortalecê-la. Chegou a haver gravíssimos conflitos entre lusos e francos, com demora de resolução e contagem de mortos como se de verdadeira batalha campal se tratasse. Além disso, os soldados franceses iam pelos montes, que é como quem diz pelas aldeias, e roubavam quanto podiam, matando quando lhes apetecia. Foi então que houve oportunidade de algumas Briandas no masculino conseguirem tais feitos que, se verdadeiros, merecem a História, e, se falsos, justificam que se conte a lenda.

Um deles terá sido Melchior Cea, atacado na sua vinha por dois soldados de França. Um foi logo ali morto à pedrada, tendo o outro fugido, para voltar no dia seguinte com mais catorze. Melchior defendeu-se atrás dos muros até chegar socorro. Ele e os reforços mataram quatro assaltantes pela frente, e nove dos restantes quando estes deram as costas em fuga cautelosa de que nada aproveitaram. Os dois sobreviventes apanharam justo castigo, que não consta qual tenha sido.
De Sebastião Álvares, de Angra, se conta que, estando numa sua quinta da Terra Chã, foi atacado por mais de vinte franceses. Tendo sido ajudado por dois escravos e um filho, este, subindo ao telhado, atirou de lá uma bomba de fogo sobre a quadrilha, que tanto assustou e atarantou os assaltantes que dezoito foram mortos pelos defensores, reforçados por ferozes cães de fila. Dizem as crónicas, com conta ligeiramente errada, que os dois que escaparam contaram o caso na cidade, e que o mestre de campo, como merecido prémio para gente tão audaz, os poupou a mais trabalhos nesta vida mandando pendurá-los na forca.

Por isso aquele ataque na baía das Mós, muito perto do campo da Salga, não era de bons prenúncios, e isto apesar de aos fortes que Ciprião de Figueiredo mandara entretanto erguer pela ilha se haverem juntado trezentas bocas de fogo trazidas pelos franceses, e de alguém ter querido repetir a sorte das vacas, sendo estas em número muito mais dilatado, dizendo umas crónicas que cerca de mil, outras que o dobro. E, para piorar a sanha dos atacantes, D. Álvaro de Bazán, marquês de Santa Cruz, que um ano antes vencera ao largo de Vila Franca aquela que foi talvez a última batalha naval clássica, com abordagem e combates decisivos nos convés, queria não apenas salvar a honra do seu rei mas vingar a morte do sobrinho.

Como a confirmar que nem sempre bons princípios são garantia de bons fins, os da Terceira, comandados pelo conde Manuel da Silva, foram dando algum desbaste nos invasores, que no final da batalha deixaram uns setenta mortos no campo e levaram consigo uns trezentos feridos. Porém quando chegou a altura da actuação das vacas, os castelhanos, bem prevenidos do que sucedera dois anos antes, abriram alas, deixando-as passar em correria pelo meio. Depois cerraram fileiras novamente, e facilmente destruíram a resistência dos desalentados defensores, que acabaram por ver a vila de São Sebastião ser barbaramente saqueada naquele dia, e a nobre cidade de Angra durante os três seguintes.

Melhor sorte não teve o conde Manuel da Silva. Julgando os da Terceira, e parece que com razão, que ele queria fugir da ilha, tê-lo-iam prontamente matado se à mão de semear e degolar o apanhassem. Mas menos mal não lhe queriam os invasores, porque fora ele que se lhes opusera como chefe enquanto pôde a sua pouca coragem. Andou escondido por montes e valhacoutos, até que os castelhanos o prenderam e pouco depois o juntaram ao número dos mortos.

sábado, 21 de março de 2009

A Batalha da Salga


(Continuando pela Terceira, aqui vai uma versão possível da batalha da Salga, destinada ao livro Terceira, Terra de Bravos, a publicar pela Ver Açor. As narrativas do combate não são coincidentes, pelo que há que escolher a que pareça mais lógica. Toiros bravos é que não houve lá, de certeza absoluta.)


Estando já Portugal dominado por Filipe II, resistia apenas a Terceira pela causa de D. António, e com ela, embora com pouca força para argumentos guerreiros, as demais ilhas que, por estarem na continuação da viagem para quem vinha do Reino, se diziam de Baixo. Como aquela, também dita de Jesus Cristo, era tida por bastião respeitável, veio tentar vergá-la à vontade da majestade estrangeira um dos seus melhores capitães, D. Pedro Valdez. Ora, para maior certeza na vitória, este deveria esperar pelos navios que traziam D. Lopo de Figueiroa e a sua gente de armas, mas um primo convenceu-o a conquistar a ilha sem outra ajuda, tanto mais que lhe dissera um homem do Faial que a Terceira era por El-Rei Filipe, não havendo nela mais que quatro gatos capazes de combater por D. António. Em breve saberia, com duras penas, que os gatos afinal eram muito mais que quatro.

Era o dia 25 de Julho de 1581. A tropa castelhana desembarcou na baía da Casa da Salga, e facilmente saiu vencedora nas primeiras escaramuças. Não temos informação de como souberam da sua beleza ou de como a viram, mas consta que o troféu do saque que, só de imaginado, mais apeteceu à soldadesca foi Brianda Pereira, mulher muito formosa, cujo marido e um filho foram feridos gravemente, tendo-lhes sido saqueada a casa. Em vez de pranto e orações, Brianda terá querido vingar a ofensa ao marido, ao filho e à casa, incitando homens e mulheres a atirarem-se aos castelhanos como se estes fossem mouros e os de terra São Tiago, cuja festa nesse dia a Igreja celebrava.

Embora maior o número dos que defendiam do que o daqueles que atacavam, a tropa invasora estava mais bem armada e treinada para os jogos guerreiros do que os de terra, a maior parte dos quais pouco mais sabia do que de rabiças de arado e cabos de enxadas. Pelo meio deles se movia Frei Pedro da Madre de Deus, qual cavaleiro do Apocalipse, que entre bênçãos e maldições se tornara um verdadeiro mestre de campo. Dizem umas crónicas que empunhava uma espada, outras afirmam que era uma bandeira. Vendo o frade que aos que defendiam a honra da ilha e de D. António tanto faltavam forças como armas, ainda para mais que os castelhanos já lhes haviam roubado algumas, aconselhou Ciprião de Figueiredo a que fizesse juntar a maior quantidade de vacas que fosse possível, para acudirem aos homens que sozinhos se não podiam valer. Postas cerca de cento e cinquenta delas em fila mais ou menos ordenada em terrenos sobre a baía, logo os defensores, deitando abaixo um muro, as assustaram tão de surpresa, com aguilhoadas e fogo de arcabuzes, que umas oitenta se lançaram como loucas pela ladeira abaixo. Sem ter outro lugar para onde fugir e sem saber como proteger-se da carga da vacaria, os castelhanos foram-se deitando ao mar, enquanto muitos iam deixando já os corpos pelo caminho. Foi tal a pressa de salvar a vida que quase nenhuns se preveniram contra a morte. Havia quem não soubesse nadar, pelo de nada servia querer ir pelos seus próprios pés e mãos para os navios; e havia os que estavam tão pesados pelas armas e armaduras que de modo algum podiam manter o nariz à tona de água. Por isso foram ali mortos sem dó humano nem piedade cristã, ainda que alguns, esquecidos da prosápia e da sua condição fidalga, tivessem implorado o perdão que, caso se trocassem as posições de vitória e de derrota, certamente não estariam dispostos a conceder. Entre eles um sobrinho do marquês de Santa Cruz e o tal primo de D. Pedro Valdez que o convencera a atacar sem precauções maiores do que as poucas que teve.

Diz António Herrera, talvez com algum patriotismo, que dos castelhanos morreram uns quatrocentos soldados e alguns chefes. Mas consta que teriam desembarcado cerca de mil e que não foram muito mais de meio cento os que puderam ver seu corpos alçados aos convés com a alma dentro. Na ilha chorou-se menos de trinta mortos, e no dia seguinte celebrou-se ofício divino a agradecer por todos os outros e pelas vidas que na ilha estiveram em perigo e se salvaram.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Angra


Angra, a magnífica. Mais do que uma urbe monumental, uma cidade que é um monumento. Que cabe na paisagem de um olhar quando vista do alto da Memória. No obelisco que lá está, no lugar do primeiro forte que vigiou a cidade, presta-se homenagem a D. Pedro IV, que nela ganhou força para lutar pela liberdade. Angra renascentista e cosmopolita. Ligação entre o Velho Mundo e o Novo, entre a cultura europeia, que ia despertando de uma quase letargia de séculos, e a milenar sabedoria dos povos do Oriente. E, antes de na corte de D. João II se saber que o sonho da Índia se cumprira, soube-o Angra, por uma razão triste. Tentando salvar o irmão, que vinha doente, Vasco da Gama saíra de Cabo Verde, numa caravela ligeira que ali alugara. E, porque os ventos tornavam mais breve a viagem até à Terceira do que a ida para o Reino, a ela se dirigiu. Comandando o que restava da armada, seguiu para Lisboa Nicolau Coelho, a avisar El-Rei do sucesso da expedição. Se Paulo da Gama chegou ainda vivo, estava moribundo já. Segundo algumas vagas notícias antigas, talvez tenha sido sepultado no convento de São Francisco. Se assim foi, ninguém cuidou dos seus restos mortais quando no mesmo lugar se construiu o novo convento, que agora é museu da história da cidade, da ilha e da sua gente.

Angra, a vigilante dos mares, sede da Provedoria das Armadas. Riquezas imensas passaram pelo seu porto, muitas línguas se falaram nas suas ruas. Traçadas a direito e em largura, como nenhumas outras dos Açores, segundo plano inicial de Álvaro Martins Homem, quando o século XV estava ainda longe de acabar. Havia milhentas angras no Império, mas desta cidade bastava dizer Angra para se saber de qual delas se falava. O resto do nome que hoje lhe pertence haveria de ser-lhe concedido como se de uma condecoração por bravura se tratasse.

Angra não se mede em quilómetros quadrados nem em número de habitantes. A sua grandeza está, sempre esteve, na grandeza da sua gente. Do heroísmo, da alegria, da fraternidade.

Foi há muitos anos que os meus olhos estrearam, maravilhados, a visão desta cidade, a mais antiga dos Açores. Nesse tempo, a costa Norte de S. Miguel era como que um prolongamento cultural da Ilha de Jesus, porque nos aparelhos de T.S.F. aqui só se ouvia praticamente o Rádio Clube de Angra. Mas a primeira visita que fiz, pouco depois de ter posto os pés em terra e deixado a ligeira bagagem numa pensão da Rua de Jesus, não foi ao Rádio Clube nem ao esplendor do palácio dos Capitães-Generais. Nem a um qualquer, ao acaso, dos monumentos da idade de oiro e do oiro da cidade que dominou o Atlântico. Como peregrino a cumprir um voto ou um sonho que vinha dos tempos da infância, apressei-me a ir à Sé. Extasiei-me com aquela abundante beleza que transbordava dos altares rutilantes para dentro da própria alma. Depois disso, ao longo dos anos, fiz dela uma visita habitual sempre que passei em Angra do Heroísmo. Ainda que, em vez de vários dias, fosse essa passagem de umas horas somente. Por isso, quando a catedral que resistiu sem danos irreparáveis ao sismo de 1980 ardeu quase por completo, um pouco de mim se esvaiu no fumo do incêndio. Entretanto, e até que os escombros fossem limpos e a maior parte da cidade reconstruída, quando tive de voltar a Angra evitei o mais possível passar entre os montes de pedras que recordavam tristemente aquele doloroso primeiro dia do ano.

Angra do Heroísmo não requer guia nem mapa. De qualquer ponto dela se avista, como referência segura, uma torre ou o Monte Brasil. E, se houver engano no caminho mais curto, tanto melhor. Talvez se passe por uma casa antiga, ou por uma ruela secular, que nos falam da cidade num silêncio tão eloquente quanto os nobres solares dos homens ou as belíssimas igrejas de Deus.

Mas Angra não se acaba onde o mar começa. Aí é que está, ou por aí é que se fez, o principal da sua história. Quase sempre gloriosa, mas também trágica. Como um náufrago que morre na praia, muitos navios soçobraram à vista do Monte Brasil ou do Cais de Pipas. Abundam por ali os restos dessa aventura trágico-marítima que o Velho do Restelo sabiamente profetizou.

Por isso, mais do que a nobreza dos seus palacetes e o esplendor doirado de templos como o da igreja do Colégio dos Jesuítas ou do convento de São Gonçalo, foi o destino marítimo da ilha de unir as Índias do Oriente e do Ocidente que fez com que a UNESCO declarasse Angra como Património da Humanidade. E, uma vez mais, a velha urbe viu serem-lhe restituídos os pergaminhos da glória de ser universal.

sábado, 7 de março de 2009

Dar de Beber


“Viste-me com sede, e deste-me de beber”.
Parece pouco para merecer o Céu. Mas Jesus falava a gente que compreendia o que Ele dizia. Numa terra árida, desértica, onde os oásis rareavam, uns goles de água podiam ser a diferença entre a vida e a morte.

Gino Bartali e Fausto Coppi foram os maiores ciclistas italianos das décadas de 1940 e 1950. Muitas vezes a vitória nas corridas em que participavam foi decidida pelos dois somente, enquanto os restantes se limitavam a disputar o 3º lugar. Nesse tempo não havia carros de apoio nem público nas estradas dos sítios ermos. Numa dessas ocasiões em que ambos seguiam a léguas do pelotão, Coppi estava sedento e não tinha água. Pensou pedi-la a Gino, mas temeu que este não lha desse. Sabendo-o enfraquecido, o adversário poderia acelerar e deixá-lo definitivamente para trás. Mas a sede foi mais forte que o temor. Fausto Coppi acabou por pedir água ao rival de sempre. Gino Bartali disse-lhe: “Dá-me a tua garrafa.” Fausto deu-lha. Gino vazou água da sua na dele, e devolveu-lha dizendo: “Se quiseres mais, tenho aqui.”

Fausto Coppi ganhou a corrida sobre a linha da meta. A primeira coisa que fez foi correr para Gino Bartali. Abraçou-o e disse: “Ganhei por causa de ti.” Gino limitou-se a responder: “ Se fosse eu, farias o mesmo.”

Nesse dia a corrida teve dois vencedores.

“Viste-me com sede, e deste-me de beber”. Quando Gino Bartali morreu, no ano 2000, deve ter sido recebido no Céu com estas palavras.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Escrever na Alma

(El Espolio - El Greco)
Um livro escreve-se palavra a palavra, linha a linha. No rascunho risca-se, apaga-se, experimenta-se o ritmo da frase, volta-se à palavra abandonada, troca-se-a por outra, indefinidas vezes, até que se encontre uma que pareça perfeita. Cada folha consente ser rasgada, usada de ambos os lados, rabiscada à toa enquanto se ensaiam as ideias. Um livro pode ter segunda edição, revista e aumentada.

A alma é feita de uma só folha. Que não tem verso, que nasce branca, imaculada, sem uma letra ou um rabisco. Escrever nela é como uma pintura a fresco, não pode errar-se. Não admite rasuras, que deixam marcas indeléveis. Não terá nunca uma segunda edição.

O Rodrigo nasceu assim, como todas as crianças. Ajudei a escrever-lhe na alma o roteiro da vida. Co-autor de uma obra em que Maria Alice, sua mãe, teve a responsabilidade do argumento principal. E em que muitos outros colaboraram. O resto da família, os amigos, a Sinfonia N.º 40 de Mozart, o primeiro livro, a música de Beethoven, os sapatos que “duraram 30 quilómetros”, o primeiro harmónio.

Por esse tempo escrevia eu O Espólio, uma novela breve. Punha sobre os joelhos umas capas grossas, que tinham dentro folhas daquelas que admitem tudo. Tinham sido antes cópias de actas das reuniões da Câmara ou das sessões da Assembleia Regional. Tinham sido qualquer outra coisa, com o verso em branco. E era aí que, enquanto a família via um programa de TV que eu espreitava de vez em quando, e ouvia, baixinho, o relato do futebol, ia escrevendo sem deixar de participar nos diálogos.

Tantos anos depois, o Rodrigo devolve-me o título como oferta de aniversário. Inesperada como é hábito desde que ele teve idade de festejar um ano mais de vida minha. E é assim, ou por estas e por outras, que ele se tornou também co-autor do que vai sendo escrito na minha alma. Porque a folha em branco com que nascemos não se esgota nunca.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Feliz Aniversário, Pai

Feliz aniversário, Pai.
Este é o teu blog. Está pronto a ser usado. Falta algumas configurações que vou adicionando conforme o meu tempo e o teu gosto.
Vês, não é assim tão difícil ter um blog.
Espero que gostes.

Rodrigo